Ódio de pássaros


Akim tinha 7 anos quando nasceu Kabel, filho do segundo casamento de sua mãe Lilith com Duplhos, um respeitado lenhador da aldeia Kapla. Ficou muito enciumado, como é natural entre as crianças que ganham um irmão. Sentia-se abandonado por Lilith que, segundo acreditava, direcionava todos os cuidados e carinhos para o irmãozinho recém-nascido. Já não gostava muito de Duplhos, seu padrasto, e não suportava vê-lo brincando com Kabel, enchendo-lhe de mimos. Aquela cena tocava em seu coração profundamente, fazendo lembrar-se da sua triste infância sem pai; nunca o conhecera, sequer sabia se ainda era vivo. Sabia, no entanto, que se chamava Unnos e que, por violar leis da aldeia, fora banido. Lilith nunca lhe contara que o crime de Unnos foi tê-la violentado por inúmeras vezes até ser denunciado ao Conselho de Anciães.

Akim andava emburrado pelos cantos e quando sua mãe lhe chamava para ver Kabel, saía correndo para a floresta. Passava horas maquinando terríveis pensamentos, parado à beira do Desfiladeiro da Serpente, olhando para a linha do horizonte. Muitas vezes só voltava para casa ao anoitecer.

Lilith, preocupada, sempre procurava fazer-lhe um carinho, confortá-lo.

— Meu filho, mamãe te ama, não fique assim!

Apontando para o pequenino irmão, Akim respondia em tom agressivo:

— A senhora só se importa com essa coisa!

Duplhos tentava inutilmente conformar o menino, gostaria de conquistá-lo, tentava ensinar-lhe a assobiar, imitar pássaros, técnica que dominava com maestria. Porém, seu esforço era inútil. Akim parecia decidido a não aceitá-lo jamais, dizia odiar pássaros. Ficava ali, por muito tempo, parado à beira do Desfiladeiro da Serpente.

O tempo passava e Kabel desenvolvia-se rapidamente. Começou a falar e andar muito cedo, antes de completar doze meses. Era uma criança bonita e inteligente, criada com muito carinho. Duplhos era um pai dedicado e orgulhava-se muito de seu pequeno filho. Ensinava-lhe a arte de assobiar e imitar pássaros, impressionando-o a tamanha facilidade com que a criança aprendia. Quando completou três anos, Kabel já sabia imitar todos os pássaros da floresta, superando seu pai. 
Lilith ficava orgulhosa.

— Meu filhinho parece um pássaro!

Kabel abria os pequenos braços, assobiava: "fiiiit, fiiit, fiiiu", e saía correndo pelo campo.

— Eu não pareço, mamãe. Eu sou um passarinho cantador!

Akim, já com dez anos, mostrava-se conformado com a presença do irmão. Na verdade, fingia gostar dele e até aproximava-se de Duplhos, porém jamais aceitava aprender a imitar pássaros. Nutria pelas aves grande ódio, fazia-lhes de alvo principal nas caçadas. Não se alimentava delas, apenas as abatia, deixando o bornal repleto para, em seguida, atirar os corpos no Desfiladeiro da Serpente.

Na tentativa de conquistar, definitivamente, a amizade de Akim, Duplhos sempre se oferecia para ir caçar em sua companhia. Akim nunca aceitava. Como poderia sair para caçar com um homem que adora pássaros? Caçar gazelas, coelhos, não tem graça, pensava ele. Dizia preferir caçar sozinho, talvez querendo esconder sua obsessão em eliminar pássaros, talvez temendo ser repreendido pelo seu hábito.

O pequeno Kabel, ao contrário do irmão, sonhava chegar o dia em que poderia caçar com o pai. Ficava choroso quando Duplhos dizia que ainda era muito criança para entrar na floresta.

— Quando meu menino completar sete anos, iremos caçar juntos!

Aquela promessa enchia seu coração de alegria. Kabel abria seus pequenos braços, assobiava: "fiiiit, fiiit, fiiiu" e saía correndo pelo campo.

— Vou voar pela floresta como um pássaro!

Chegado o dia do aniversário de sete anos de Kabel, ele estava eufórico. Esperara aquele dia ansiosamente, não porque estivesse interessado em presentes, que certamente ganharia, mas porque chegara o dia em que, finalmente, iria caçar em companhia do pai. Lilith não gostava nada da idéia, porém não se opôs, não suportaria tirar do rosto de Kabel aquele sorriso de felicidade plena. 

Prepararam-se, então, para a caçada. Dividiram as funções: Duplhos portava o rifle, enquanto o pequeno aniversariante carregava munição para a arma e um punhado de frutos, que lhes serviria de lanche. Na hora da partida, para surpresa de todos, Akim, com um estranho sorriso nos lábios, apoderou-se de sua espingarda e ofereceu-se para ir junto. Duplhos encarou tal atitude com um misto de estranheza e contentamento. Acreditava que, já sendo um rapaz, Akim havia esquecido o ciúme que sentia quando criança. Assim, partiram os três em direção à floresta. 

Lilith ficou ansiosa e preocupada, um mau pressentimento atormentava-lhe o espírito. Passou todo o dia olhando para a estrada, na expectativa da volta do marido e dos filhos. Sua aflição aumentava à medida que as horas passavam. Já estava chorosa vendo a proximidade da noite e nada dos três aparecerem. Os olhos não saíam da direção da floresta quando, de repente, viu surgir alguém ao longe; era Akim. Aumentou seu desespero vê-lo correndo sozinho em direção à casa. Correu ao seu encontro aos gritos:

— O que aconteceu, meu filho? Diga-me, por favor! Onde está Duplhos? Onde está Kabel?

Akim, exausto e cheio de arranhões, mal conseguia responder.

— Um urso, mamãe! Um urso pardo!

O desespero em Lilith aumentava.

_ Diga, meu filho! Diga! Onde está Duplhos? Onde está Kabel?

Akim soluçava quase sem voz.

— Um urso! Um urso pardo! Um urso!

Lilith, angustiada, perdeu os sentidos. Foi socorrida por vizinhos que presenciavam a cena. Quando voltou a si, ficou sabendo da versão contada por Akim aos aldeães. Um grande urso pardo teria aparecido, repentinamente, passando a persegui-los. Akim ainda teve tempo de disparar sua arma contra o animal feroz, atingindo-o de raspão. A perseguição continuou e Duplhos, no intuito de proteger a vida de Akim e Kabel, resolveu desviar para si a atenção da fera. Emitiu um forte assobio, alcançando seu objetivo. O urso partiu em sua direção e o encurralou à beira do Desfiladeiro da Serpente. Ainda segundo Akim, Duplhos, para não morrer nas garras do urso, estranhamente emitiu um canto de pássaro - "tchiiiu, tchiiiu, tchiiiu" -, e saltou do precipício num vôo sem volta. O pequeno Kabel, ao perceber o gesto enlouquecido de Duplhos, correu em direção ao penhasco, nem se importando com o urso. Passou muito próximo ao animal, quase sendo atingido pelas suas garras. Abriu os pequenos braços, assobiou - "fiiiit, fiiit, fiiiu" - e, como se quisesse alcançar o pai, atirou-se no desfiladeiro.

Diante do que fora relatado por Akim, um grupo de homens da aldeia se reuniu para sair em busca de Duplhos e Kabel. Todos acharam aquela estória muito estranha. Urso pardo naquelas bandas da floresta? O último tinha sido visto há mais de dez anos, ainda no início do povoamento da aldeia. Com a chegada das pessoas naquela região, os ursos haviam se refugiado nas longínquas montanhas do sul. Mas, por via das dúvidas, os homens partiram, fortemente armados, à procura dos desaparecidos. Passaram toda a noite e a manhã do dia seguinte na floresta. À beira do Desfiladeiro da Serpente, encontraram marcas de sangue entre as folhagens e deduziram ser do urso atingido por Akim. Nem sinal de Duplhos e seu pequeno filho. Estariam seus corpos no fundo da garganta da Serpente? Isso ninguém nunca saberia; nenhum daqueles homens ousaria descer aquele abismo inacessível e tão profundo, que parecia ir até o centro da terra.

Ao ver os homens regressarem sem seus marido e filho, Lilith teve uma forte crise de choro, não conseguia se controlar, gritava desesperada. Perdeu novamente os sentidos, só acordando dois dias depois. Quando voltou a si, estava com um ar estranho, não falava e parecia mentalmente perturbada. Não conhecia ninguém a sua volta, nem mesmo Akim. Era como se tivesse acionado algum mecanismo de defesa, em seu cérebro, que a protegia da realidade. Ficava todo o tempo recolhida no seu quarto, olhando pela janela. De vez em quando, apontava em direção à floresta e sorria, outras vezes, lágrimas corriam dos seus olhos.

Akim, diante do triste estado da mãe, sentia-se cada vez mais abandonado. Lamentava, profundamente, não ter os carinhos de Lilith, principalmente agora que eram só os dois. Não havia mais Duplhos, não havia mais Kabel e nem assim conseguia ter só para ele o carinho da mãe, que sequer o reconhecia. Os dias passavam e Lilith permanecia naquele estado patético: olhava pela janela do quarto e apontava em direção à floresta; olhava, olhava, apontava...

Numa bela manhã de sol, Akim acordou assustado. Parecia ouvir cantos de pássaros vindo dos aposentos de sua mãe.

— Será que estou tendo um pesadelo?

Levantou-se apressadamente e correu para verificar o que estava acontecendo. Encontrou Lilith de pé, em frente à janela, assobiando e estendendo os braços em direção à floresta. Ficou espantado ao perceber que dois pássaros, num vôo rasante, saíam da mata e pousavam em seus dedos. Lilith sorria feliz enquanto os pássaros, em suas mãos, cantavam: "tchiiiu, tchiiiu, tchiiiu" , "fiiiit, fiiit, fiiiu" e voltavam para a floresta.

Possuído por uma fúria incontrolável, Akim fez ecoar um grito pavoroso. Empunhou sua espingarda e partiu para a floresta no intuito de eliminar os pássaros. Pensava estar perdendo sua pontaria, pois não conseguia alvejá-los. Passava todo o dia na floresta, só voltava à tardinha. Exausto, caía no sono e, para seu desespero, acordava na manhã seguinte e presenciava a mesma cena: Lilith de pé, em frente à janela do quarto, assobiando e estendendo os braços em direção à floresta. Dois pássaros, num vôo rasante, saíam da mata e pousavam em seus dedos. Lilith sorria feliz enquanto os pássaros, em suas mãos, cantavam: "tchiiiu, tchiiiu, tchiiiu" , "fiiiit, fiiit, fiiiu" e voltavam para a floresta.

Empunhando sua arma, Akim entrava na floresta e passava a perseguir os pássaros, gritando, pavorosamente, sem nunca, porém, conseguir acertá-los. Por vários dias, aconteceu a mesma coisa, até que, numa manhã, Akim entrou na floresta e nunca mais voltou.

Os pássaros continuaram a cantar, todas as manhãs, para Lilith: "tchiiiu, tchiiiu, tchiiiu" , "fiiiit, fiiit, fiiiu"; e ela ficava muito feliz, mesmo permanecendo incomunicável com as pessoas. Quanto a Akim, há quem afirme que, freqüentemente, caçadores ouvem seus gritos pavorosos ecoarem pela floresta. No entanto, ninguém jamais voltou a ver o jovem que tinha ódio de pássaros.

Elenildo Pereira
Enviado por Elenildo Pereira em 30/05/2008
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