Um homem só

        — E essa dor que não passa! – resmungou o velho Noel.

O dia não estava pra peixe. Lancei minha isca pela nãoseilésima vez, e nada. A superfície do lago era como um enorme espelho emoldurado de verde a refletir o azul do céu; lindo, mas peixe que é bom... Olhando para o velho, na popa da canoa, puxei conversa:

— Pegou alguma coisa, seu Noel?

Como já esperava, o velho ficou com aquele ar distante; parecia olhar para a própria testa, como se nela estivesse escrito o que ia dizer. Sabia que ele, como de costume, não iria responder minha pergunta, mas contar-me uma de suas estórias; adorava ouvi-las. Na verdade, admirava muito aquele homem. Em sua simplicidade, não conseguia esconder a imensa cultura que carregava. Trazia consigo um triste ar de mistério e uma constante reclamação contra uma dor indefinida que o atormentava. Gostaria de ser outra pessoa ou, quem sabe, poder passar essa dor maldita para algum inimigo – costumava dizer sem nunca, no entanto, esclarecer detalhes sobre tal dor. Pouco se sabia do seu passado, assunto que ele também evitava. Acredito que, por respeitar o silêncio acerca de sua vida, eu era o seu único amigo; aquele que conseguia tirá-lo de sua solitária morada para o que parecia ser sua única diversão: uma boa pescaria. Mesmo que não fisgasse sequer um peixe, a satisfação era garantida junto a seu Noel e seus causos. Naquela manhã, tudo parecia igual; com o mesmo olhar distante, usando as costumeiras frases de abertura, meu amigo pescador iniciou:

Filho, esta é a estória mais misteriosa e intrigante que você já ouviu na vida. Não espero que acredite, mas é a mais pura verdade; escute com bastante atenção.

Numa pequena cidade do interior viviam Leon e Virgínia, dois jovens apaixonados com um sonho comum aos jovens apaixonados: casar, ter filhos, ser feliz. Porém, muitas barreiras erguiam-se entre casal e seu sonho. Nenhuma, no entanto, podia ser comparada a oposição intransigente do pastor Diogo Albuquerque, pai de Virgínia. Para evitar o romance da filha, o velho recorria aos mais absurdos artifícios. Apesar de ostentar uma imagem de homem religioso, seu discurso e a bíblia inseparável sob o braço esquerdo em nada combinavam com seus atos. Estava viva na cabeça de todos a lembrança da madrugada chuvosa em que a cidade pulou da cama com os gritos apavorados de dona Gabriela Marisqueira. Subindo a Ladeira da Prefeitura, a pobre mulher anunciava, encharcada de chuva e prantos: “está morto! O rapazinho está morto!”. Quem foi até o mangue pôde ver a cena chocante que levou dona Gabriela a quase afogar-se em lágrimas: completamente despido, sobre uma poça de sangue, Leon foi encontrado à beira da maré. Chamavam a atenção de todos, causando repulsa, dois longos e profundos cortes transversais que desenhavam uma sangrenta cruz; ia do tórax ao abdome. Um médico foi chamado e logo constatou que o rapaz fora vítima de cruel tortura. Não estava morto, como imaginara a velha marisqueira, mas seu estado era muito grave. Ficou internado por sete semanas, das quais duas em estado de total inconsciência. Apesar de nada ficar provado, todas as suspeitas apontavam para o velho Diogo; era público o ódio que o pastor nutria pelo rapaz; todos acreditavam ter um dedo dele naquele atentado. Leon, por sua vez, mesmo depois de recuperado, em nada pôde ajudar no esclarecimento do caso. Lembrava que, na noite do ocorrido, fora ao cinema com Virgínia. Após a sessão, acabara de despedir-se da moça na esquina da rua. Quando já empunhava a chave para abrir o carro, estrategicamente estacionado na rua ao lado, um objeto pesado saltara do breu da noite atingindo-o na cabeça. Depois disso, só as luzes do hospital a iluminar seu despertar de duas semanas de escuridão em meio a pesadelos que não conseguia recordar.

Alegando falta de provas, o delegado da cidade, uma das poucas ovelhas que freqüentavam a igreja do suspeito pastor, deu o caso por encerrado. Não tendo outros inimigos, Leon estava convencido do envolvimento do pai da namorada no atentado que sofrera. No entanto, não deixando intimidar-se, insistiu no romance com Virgínia. Durante o tempo em que Leon esteve no hospital, sempre que conseguia fugir aos olhos do pai, ela ia visitá-lo. Sendo filho único, herdeiro de pais já falecidos, Leon tinha a namorada como pessoa mais importante de sua vida; só por ela lutou pela recuperação, sobrevivendo à tortura que o deixara marcado na pele e na alma. O sofrimento daqueles dias aproximou ainda mais o casal que, em nome do amor que sentiam, decidiram firmar um pacto: não permitiriam que nada nem ninguém interferissem no propósito de ficarem juntos.  Nada, nem ninguém! – repetiam um para o outro.

Alguns meses depois, um ato tresloucado do pastor, em plena luz do dia, confirmaria a suspeita recaída sobre ele. Encontrando a filha com o namorado no meio da feira, tomado de um ciúme doentio, apoderou-se do machado de um açougueiro. Não fossem os gritos dos feirantes, Leon teria sido atingido mortalmente pelas costas. Mas, esquivando-se do golpe, num movimento ágil, conseguiu tirar o machado das mãos do agressor, sem que ambos sofressem sequer um arranhão. Com um brilho possesso nos olhos, o pastor encarou o rapaz. “Nem com a minha morte ela será sua.” – falou em tom de ameaça para, logo em seguida, tomar o caminho de casa aos gritos: “ela é minha! É minha!”. Minutos depois, o velho Diogo apareceria na delegacia com a mão esquerda enrolada num pano ensangüentado. Dela, decepara dois dedos propositadamente e acusava Leon pelo ato. O delegado, mesmo sendo amigo pessoal do pastor, nada pôde fazer. Em seu delírio, o velho ignorara as muitas testemunhas em favor do rapaz. Frustrado, diante da impotência contra Leon, o pai voltou-se violentamente contra a filha. “Você é minha, menina! É minha!” - os ouvidos de toda a vizinhança testemunharam seus berros insanos no meio da noite. Os gritos naquela casa eram comuns, principalmente depois que Virgínia começara a namorar. Porém, naquela noite, algo diferente parecia acontecer por lá. Pela primeira vez, podia-se ouvir dona Raquel partir em defesa da filha. Logo ela que, num misto de medo e respeito pelo marido, jamais ousara enfrentá-lo. “Não faça isso! Em nome de Deus, afaste-se da menina!” – implorava a voz dolente da mãe, sufocada pelos berros enlouquecidos do marido: “filha minha, jamais será de ninguém.” Gritos e prantos atravessavam as dependências da casa indo ecoar na rua desperta. Minutos depois, um silêncio angustiante semeava dúvidas na cabeça dos curiosos: o que teria acontecido? Nem mesmo a luz da manhã revelaria todos os detalhes. Pôde-se verificar, no entanto, a gravidade do ocorrido pelo seu efeito: o velho Diogo, recolhido por uma ambulância, veio a falecer no hospital, minutos depois, de um ataque cardíaco fulminante; dona Raquel, que já não era de muitas palavras, em estado de choque, recolheu-se em mudez absoluta; Virgínia, como se fugindo do mundo, trancafiou-se na solidão da casa; nem mesmo de Leon aceitava visitas, deixando o rapaz em desespero. Foram longos dias de sofrimento, parado em frente ao portão da casa, na tentativa de falar com a amada em clausura. Não entendendo o porquê de tanta rejeição, o incansável jovem jamais desistiu. Lançava seus gritos contra a janela da moça, lembrando o pacto assumido pelos dois. “Nada, nem ninguém. Nada, nem ninguém.” – repetia exaustivamente. O triste pesadelo pareceu chegar ao fim no dia em que, alguns quilos mais magra e totalmente pálida, Leon viu Virgínia surgir na porta da casa. Andando com dificuldade, caminhou em sua direção, envolvendo-o num abraço emocionado. “Perdão! Perdão!” – falou com voz trêmula. Colocando o indicador sobre seus lábios, Leon consolou-a, enxugando-lhe as lágrimas: “não precisa dizer nada. Está tudo bem agora. Nada, nem ninguém! Lembra?”. Virgínia respondeu que sim com um pálido e breve sorriso. Ficaram ali, por algum tempo, tão carinhosamente abraçados, que nem repararam na chuva fina que começava a cair.

Após dizer estas palavras, ouvi Seu Noel respirar profundamente; parecia tomar fôlego para prosseguir com a estória.

— E essa dor que não passa - voltou a reclamar, espremendo as palavras entre os dentes. 

Recolheu o anzol, colocou nova isca, tornou a respirar profundamente e, após alguns segundos em silêncio, continuou:

— Com a morte do pastor Diogo, o casal alimentava esperanças de que, finalmente, viveriam seu amor, livres da perseguição. Foram até a igreja e marcaram o casamento para o domingo mais próximo. Porém, o pior da trágica e misteriosa estória de Leon e Virgínia ainda estava por vir.

A mãe da moça, depois de um rigoroso tratamento psicológico, recuperou a fala. Porém, já não parecia a mesma pessoa. Assumindo um ar arrogante e austero, passou a culpar Virgínia pela viuvez. Como se possuída pelo espírito obcecado do marido, herdou do morto a posição contrária ao casamento da filha. Transformou-se na principal oponente do casal, tentando a todo custo evitar aquele matrimônio. Inventava estórias terríveis no intuito de fazer com que o noivo desistisse de casar com sua filha. A última cartada, acontecera às vésperas do casamento. Depois de solicitar a presença de Leon para uma conversa, sem o conhecimento de Virgínia, entregou-lhe um envelope amarelo. “Abra-o e terás motivo suficiente para desistir de Virgínia” – disse ela com uma forte expressão de maldade estampada no rosto. Desconfiando se tratar de mais uma das intrigas da futura sogra, Leon deixou a casa de dona Raquel sem dar-lhe atenção, em absoluto silêncio. Porém, levava nas mãos o referido envelope e na cabeça as palavras da velha. A curiosidade quase o traiu; chegou a abrir o envelope. Lembrou, porém, do pacto que fizera com sua amada: “nada, nem ninguém!” – pensou em voz alta. Resolveu, então, rasgar o documento que supostamente o faria desistir da noiva.

O amor do casal parecia resistir a tudo e a todos, culminando na realização do grande sonho. Exatamente três meses depois da morte do pastor Diogo, na pequena igreja da cidade, cheia de bancos vazios, uns poucos amigos presenciaram o enlace. Nem mesmo a ausência de dona Raquel ofuscava o brilho de Virgínia. Ela era belíssima e, naquela manhã de domingo, vestida de noiva, estava simplesmente encantadora. Após a cerimônia, foi oferecida uma recepção no clube social da cidade. A exemplo da igreja, o salão vazio parecia maior que de costume.

Passava das 11h quando o casal abandonou a festa; saíram às escondidas, pela porta dos fundos, como manda a tradição. Estavam loucos para chegar à praia de Flores, onde passariam a lua-de-mel. Aquele dia foi esperado, com muita ansiedade, durante cinco longos anos. E, finalmente, lá estavam, a caminho de Flores.

O sol de domingo brilhava vigoroso; a estrada parecia alongar-se propositadamente, como se adiando a chegada. Enquanto dirigia, Leon olhava para Virgínia que, cansada dos preparativos que antecederam ao casamento, cochilava no banco ao lado. O dedicado esposo, tencionando enxugar fios de suor que banhavam a face da jovem adormecida, puxou do bolso do paletó um florido lenço de algodão. Junto com o lenço, como se fossem pétalas, pedaços de papel saltaram do bolso de Leon. Reconhecendo aqueles retalhos amarelos, uma leve dor invadiu a cabeça confusa do rapaz. Não entendia como chegaram ali; tinha certeza de tê-los descartado no dia anterior.  De repente, contrastando com o intenso sol de verão que há pouco brilhava, uma imensa nuvem negra surgiu ameaçadora. No mesmo momento, a estrada, acostumada a forte fluxo de veículos, transformou-se num deserto sombrio. Estranhando a súbita mudança, Leon dividia o olhar entre Virgínia, o horizonte à sua frente e os retrovisores; alimentava a esperança de ver surgir vivalma que afugentasse a angústia que já começava a invadir seu peito. Uma forte chuva desabou sobre a estrada vazia, reduzindo a visão a poucos metros. Os limpadores lutavam em vão contra os vigorosos pingos que formavam uma lente espessa de água sobre o pára-brisa, obrigando Leon a diminuir a velocidade. De súbito, tomou grande susto ao passar por um vulto que caminhava perigosamente no acostamento. Pela silhueta, deduziu ser uma pessoa usando uma escura capa de chuva; por pouco não a atropelara. Que tipo de louco se arriscaria desse jeito – pensou, evitando gritar para não despertar Virgínia. Aliviou ainda mais a pressão do pé no acelerador tornando a marcha mais lenta. Como se obedecendo ao mesmo comando, a chuva também diminuiu. As linhas da sinalização horizontal, hora brancas e intermitentes, hora amarelas e contínuas, há pouco ocultas pela água, já podiam ser vistas a passar sob o carro. Olhando fixamente para frente, Leon pôde perceber o momento exato em que outra silhueta humana surgiu no acostamento. Pelo caminhar parecia ser um homem que, a exemplo do vulto que há pouco quase atropelara, também usava uma escura capa de chuva. Um único homem, a pé, no meio da chuva, numa estrada vazia, e nada de carros, estranhava Leon, enquanto velava o sono da amada no banco ao lado. À medida que se aproximava daquela figura misteriosa, sentia seu coração bater descompassado; uma grande expectativa invadia seu peito. Não sabia exatamente o que, mas sentia que algo estava para acontecer. De súbito, como se atraído pelo barulho do motor, o homem parou; num movimento quase automático, girou sobre os calcanhares, encarando o carro de frente. O capuz que usava sobre a cabeça, no entanto, não permitia que seu rosto fosse visto. Leon foi tomado de grande aflição quando notou que o homem, erguendo o braço esquerdo, sinalizava para que ele parasse. O motorista assustado não pensou duas vezes: enfiando o pé no acelerador, tratou de deixar para trás aquele estranho andarilho. Passou a seu lado em alta velocidade, tendo tempo, porém, de observar que, na mão estendida, aquele homem segurava um objeto cuja impossibilidade de identificar deixou-o extremamente curioso. Virgínia, mesmo com o forte arranque do carro, não despertara, apenas mudara de posição. Com o rosto voltado para a janela, impossibilitava Leon de ver a sua face, deixando para o esposo assustado apenas a imagem dos negros e sedosos cachos da cabeleira. Não olhar para a face de Virgínia fez com que Leon se sentisse ainda mais solitário em meio aquele deserto cinza e chuvoso. Uma forte angústia corroeu sua alma desesperada, colocando em seus olhos um brilho alucinado. Ao alongar a visão na estrada, novamente vislumbrou um andarilho; era idêntico àquele que há pouco deixará para trás. Não pode ser o mesmo, pensou. Será que estou enlouquecendo? O que faço agora? Milhares de dúvidas invadiram sua mente confusa. Decidiu, porém, que desta vez tomaria atitude diferente, já que a fuga em alta velocidade pareceu nada adiantar. Diminuiu, então, a marcha e fixou o olhar naquele homem de capa. Já previa, como se adivinhasse, o movimento sobre os calcanhares, o rosto indecifrável oculto sob o capuz, o aceno com a mão esquerda. E assim aconteceu, sendo que, desta vez, Leon pôde identificar, boquiaberto, o objeto que o andarilho segurava na mão estendida: um envelope amarelo vivo que, sobre o chumbo da tarde chuvosa, destacava-se no deprimente quadro da paisagem. Outro detalhe, porém, chamou ainda mais a atenção de Leon: o andarilho possuía apenas três dedos na mão que acenava.

A mente fustigada de Leon, neste momento, mergulhou num abismo insano; nada mais fazia sentido. Por mais que andasse em frente, a cena era a mesma. Num intrigante processo de auto-reprodução, a bisonha figura do andarilho multiplicava-se pela estrada, sempre embalando ao vento, com sua mão mutilada, aquele envelope amarelo. Maior foi o espanto de Leon quando, ao olhar para o lado, deparou com o banco vazio; Virgínia havia desaparecido. Num movimento automático, pisou forte no freio, perdendo o controle do carro. Com a pista molhada e escorregadia, o veículo só parou ao chocar-se contra um barranco no acostamento. Leon bateu violentamente a cabeça no pára-brisa, quase perdendo os sentidos. Isso não está acontecendo comigo. Só pode ser um pesadelo, gritava para sua imagem refletida no retrovisor interno, enquanto um fio de sangue dividia sua face. Com esforço, conseguiu sair do carro. Olhava para todos os lados freneticamente, na esperança de encontrar Virgínia. A seu lado, uma placa indicava: km 77.

De repente, no meio do temporal, algo lhe chamou a atenção: ao longe, uma sombra delineava-se lentamente sob a chuva. O som de passos fundia-se ao murmúrio dos pingos sobre a estrada. Duas figuras de contornos humanos pareciam compor a nebulosa imagem que, enquanto se aproximava, revelava-se nitidamente aos olhos desesperados de Leon. Virgínia! Virgínia! – gritou.  Era ela, mas não estava sozinha. O estranho andarilho a conduzia, subjugada sob pulso forte. Com sua mão direita, segurava-a violentamente pelos cabelos. Entre os três dedos da outra mão, trazia o envelope amarelo. Isso é um pesadelo! O velho Diogo! Como pode ser? – tentava entender o atônito rapaz. Mantendo o rosto oculto sob o negro capuz, a bizarra figura deixou ecoar uma gargalhada sinistra para, logo em seguida, aproximar-se de Leon, colocando-lhe nas mãos o envelope.

— Abra! É pra você! – ordenou o homem

Olhando para as lágrimas que banhavam a face de Virgínia, sentindo-se impotente diante daquela estranha experiência, o pobre homem abriu o envelope. Com as mãos dominadas por um irrefreável tremor, desfez as dobras do papel onde pôde ler: Virgínia é minha!

Nesse mesmo momento, estático, Leon assistiu ao pior do seu pesadelo. De um dos bolsos da capa, o estranho sacou um reluzente punhal. Num movimento rápido, ergue-o sobre a cabeça. O brilho prateado do punhal cortou o chumbo do dia como um raio; o golpe certeiro, atingiu Virgínia no peito. Com a ponta do punhal, em meio a gargalhadas e gemidos, o cruel assassino riscava a pele de sua vítima, imprimindo-lhe no tórax uma sinistra cruz de sangue. Voltando-se para Leon, entregou-lhe o punhal ensangüentado. Levou as mãos até o capuz que lhe escondia o rosto e, aos poucos, foi deixando revelar sua identidade. O pobre rapaz, atormentado, já imaginava quem veria surgir sob aquela capa. O velho Diogo, tenho certeza, apesar de nada fazer sentido, apesar de saber que aquele demônio está morto, só pode ser ele. Deus, por que não acordo deste pesadelo? Sentindo o calor do sangue da amada sobre a fria lâmina do punhal, Leon preparava-se para deferir um golpe sobre o algoz a sua frente. Teve seu plano de vingança frustrado, ficando sem ação, ao fitar nos olhos o inimigo. Como se diante de um espelho, não era a figura do velho Diogo que encarava, mas sua própria face. Confuso, viu seu próprio rosto revelar-se sob o negro capuz. Com gosto de sangue em sua boca, assistiu àquela sua idêntica figura tomar-lhe das mãos o punhal, dirigir-se até Virgínia e voltar a golpeá-la repetidamente, urrando como um animal feroz. Encostado ao carro, atônito, Leon presenciou aquele quadro bizarro e inconcebível. Quis mover-se, suas pernas não o obedeciam; tentou gritar, seus lábios cerraram-se em mudez. Impotente e tomado de pavor, ouviu seu algoz ecoar gargalhadas soturnas enquanto a tétrica cena embaçava diante de seus olhos. Aos poucos, todos os sentidos de Leon foram exaurindo-se, até que tudo se transformou em silêncio e escuridão.

    Você está bem? Você está bem? – uma voz indagava, distante.

    É perigoso parar aqui! Você pode causar um acidente! – insistia a voz.

Dentro do carro, sob um sol escaldante, completamente encharcado de suor, Leon recobrava os sentidos. Abriu os olhos devagar e encarou um homem de barba imensa que gritava da janela:

 Você é louco, está bêbado?

— Virgínia! Virgínia! Onde está Virgínia? – indagou Leon, desesperado, segurando o homem pela abertura da camisa.

— Calma, amigo! Calma! Não sei de quem você está falando, exclamou o homem, enquanto tentava livrar-se da fúria de Leon.

— Virgínia! Virgínia! – repetia, amarrotando o rosto com as mãos.

O homem barbudo, apontando uma imensa carreta estacionada à frente do carro, explicou que era apenas um caminhoneiro.

— Estava passando e fiquei preocupado quando o vi parado nesse trecho perigoso e resolvi ajudá-lo.

Enquanto o homem se explicava, lembranças terríveis voltavam à mente de Leon. Olhou para o relógio e constatou, perplexo, que era 2h da tarde de uma quarta-feira. Não pode ser, meu relógio deve estar com defeito. Perguntou, então, ao caminhoneiro que confirmou: quarta-feira, 2h da tarde. Havia três dias, portanto, desde a desventura daquele domingo. Leon fez soar um urro desesperado, olhava para todos os lados como se tentando encontrar-se. Percebeu, do outro lado da pista, uma pequena placa que marcava: km 100. Num impulso, ligou e carro e fez uma manobra perigosa, quase atropelando o caminhoneiro que o ajudara. Saiu em alta velocidade na direção contrária.

Chegando ao km 77, ficou decepcionado ao constatar que aquele local em nada lembrava o cenário do seu recente pesadelo. Correu em círculos pelo vasto terreno procurando algum vestígio que acendesse sua esperança de encontrar Virgínia. Já exausto de tanto correr, cair, levantar-se e voltar a cair, encostou-se ao pára-choque traseiro do carro. Nesse momento, percebeu que, alimentada por um fio avermelhado que escorria de dentro do porta-malas, uma poça formava-se embaixo do veículo.

Virgínia! Virgínia! – gritou alucinadamente. Num movimento quase automático, abriu o porta-malas para, no mesmo momento, apresentar a seus olhos uma imagem horripilante que, por toda a sua vida, jamais apagaria da memória: um lindo par de olhos verdes ainda abertos em meio a uma pavorosa expressão de horror e extremo sofrimento O corpo de Virgínia, completamente despido, apresentava inúmeras perfurações. Ao lado, embrulhado num sangrento vestido de noiva, as vísceras da morta, que pareciam ter sido violentamente extraídas por uma abertura disforme na altura do abdome. Em prantos, Leon resolveu sepultar seu amor sob uma laranjeira florida à beira da estrada. Estava certo de que ninguém acreditaria na sua delirante desventura. Decidiu que jamais voltaria a sua cidade natal; não saberia encarar os amigos contando estória tão absurda. Assim, tragicamente, chegou ao fim o romance de Leon e Virgínia: ela morta, ele isolado do mundo, sem poder compartilhar com ninguém a sua dor.

Ao pronunciar estas últimas palavras, o velho Noel tinha a voz embargada. Achei estranho, pois ele sempre costumava narrar suas estórias de forma isenta. No entanto, naquela manhã, carregava um semblante combalido que o traía, deixando transparecer certo envolvimento. Cabisbaixo, parecia esconder os olhos sob a aba do chapéu. Lágrimas, lágrimas, escondia lágrimas. Pelo resto da manhã, fiquei em silêncio observando meu amigo pescador que, por sua vez, também nada falava. Nem mesmo da sua dor ele reclamava. Por diversas vezes, tive vontade de perguntar o porquê daquele ar melancólico instalado em sua face, mas não tive coragem.

Perto do meio dia, voltamos para casa. Durante todo o percurso reinou o silêncio enquanto um cheiro de angústia espalhava-se no ar. O que teria o velho Noel a ver com a estória absurda que acabara de contar? Entendi que aquele momento não era o mais apropriado para tal indagação. Porém, estava decidido que perguntaria posteriormente, numa ocasião mais oportuna. Minha curiosidade tornou-se ainda maior quando, ao se despedir de mim, na curva da estrada, meu velho amigo foi além do costumeiro aperto de mão de outros dias. Puxou-me pelo braço envolvendo-me num forte abraço fraterno para, em seguida, sem pronunciar uma palavra, dar-me as costas e partir.

Entrei em casa acompanhado da interrogação que insistia em martelar minha cabeça: qual seria a ligação entre o velho Noel e a estória infeliz do casal Virgínia e Leon? Para minha surpresa, a resposta chegou mais rápido do que eu poderia imaginar. Fiquei sabendo o porquê das lágrimas do velho pescador na noite daquele mesmo dia, depois da mais insólita experiência que já vivi: acabara de ir para cama; caía uma chuva fina e o vento assobiava na fresta da janela. Através do vidro, sonolento, observava os vaivéns dos galhos do eucalipto no jardim. No limite extremo entre sono e vigília, vi uma figura de mulher, ou sonhei com ela, até hoje não sei exatamente. Só sei que era muito bela e, apesar de uma profunda palidez, não suscitava medo. Passando ao lado de minha cama, esboçou um sorriso. Atravessou o quarto como se flutuasse; foi até a parede a minha frente e escreveu com os dedos, em letras garrafais, verdes como seus olhos, dentro de um coração: Leon e Virgínia. Acabou por pronunciar, repetidamente, uma única frase: Vá até ele! Vá até ele! Vá até ele! De súbito, saltei da cama; olhei em volta no afã de encontrar os escritos da parede. Em vão; nenhuma mancha de tinta; o velho papel de parede continuava lá, intacto. Lembrava-me, porém, daqueles nomes. Acreditei estar só sonhando, influenciado pelas lembranças da estória terrível que ouvira. Porém, mesmo depois de acordado, continuava a sentir a presença daquela mulher e suas palavras insistiam em caminhar dentro da minha cabeça: Vá até ele! Vá até ele! Vá até ele! Compreendi, então, que não conseguiria dormir se não fosse procurar o velho Noel. Precisava contar-lhe a experiência por que acabara de passar. Sem demora, parti em direção à pequena cabana, como se atendesse a um chamado.

A rua estava totalmente deserta e a fraca luz dos postes fundia-se à neblina. Um silêncio quase absoluto roçava meus ouvidos, permitindo que ouvisse o som dos meus próprios dentes a chocarem-se uns contra os outros. Em mim, um breve momento de hesitação; senti um gosto insosso de dúvida tocar minha boca: será que devo incomodar o velho Noel assim, no meio da noite? Afinal, nunca lhe fizera uma visita; não por falta de vontade, mas nunca o fizera de fato. Estava convicto, porém, de que ninguém, além dele, poderia devolver-me o sono roubado pela aparição daquela mulher.

Ao chegar à frente da casa do velho, fiquei surpreso por encontrar a porta entreaberta. Com cautela, empurrei-a um pouco mais; o que me permitiu ter uma visão quase geral da pequena sala.

                Seu Noel! Seu Noel! - chamei com voz firme.

Por alguns segundos, só silêncio.

                Seu Noel! O senhor está bem? - insisti.

Mais alguns segundos e ouvi o velho sussurrar:

                Estou aqui, no meu quarto. Venha até a mim.

Entrei no quarto e encontrei o velho Noel encolhido sob os lençóis da cama. Corri em sua direção e, colocando a mão sobre sua testa, senti sua pela fria e úmida como uma lápide sob o orvalho. Era grave o estado do velho; totalmente encharcado de suor, seu corpo tremia intensamente. Desvirtuando de todo aquele sofrimento, um sorriso habitava seus lábios. Olhando-me fixamente, deixou-me confuso ao afirmar que já me esperava.

                Ela esteve aqui! Esteve aqui! - disse-me ofegante.

Estendendo o braço com dificuldade, apontou para a parede a minhas costas. Acompanhando o indicador do velho Noel, conduzi meus olhos a testemunharem algo que jamais esqueci. Vi, desenhado na parede, um coração e, dentro dele, em letras verdes, a mesma inscrição que momentos antes imaginei ver no meu quarto: Leon e Virgínia. Estava atônito diante daquela enigmática experiência.

— Ela me perdoou! Nada nem ninguém! Nada nem ninguém! – repetia o velho.

Comecei então a montar aquele estranho quebra-cabeça. Ao girar a vista pelo pequeno aposento, pude visualizar a inscrição da parede, refletida num grande espelho que pendia da parede oposta. Lendo aquelas palavras invertidas pelo reflexo do espelho, percebi que o nome Leon era um anagrama perfeito de Noel, enquanto o nome de Virgínia aparecia como uma seqüência de letras que não faziam sentido. Ver o nome do velho pescador escrito naquela parede era para mim a prova de que Leon e Noel eram a mesma pessoa. Estava esclarecido o porquê das lágrimas do velho: ele narrara sua própria história. Porém, o aspecto indecifrável do nome de Virgínia, visto através do espelho, deixava-me uma forte sensação de que muito ainda havia para ser esclarecido. O que teria omitido o meu amigo pescador além do seu verdadeiro nome?

Em êxtase, caminhei em direção à cama. Segurando a mão febril do meu amigo, encarei-o fixamente; tinha muito a perguntar, mas as palavras me faltaram ao fitar aqueles olhos. Apesar de já tê-los visto por muitas vezes, naquele momento, pareciam-me olhos de um estranho. Cortando o silêncio da minha mudez, disse-me ofegante:

                É preciso que você saiba mais da verdade.

Apontando para uma pequena gaveta da cômoda ao lado da cama, pediu-me para abri-la. Curioso, atendi prontamente, encontrando duas chaves. Solicitou-me então que eu fosse até o galpão nos fundos da casa e que do porta-luvas de um antigo carro que lá estava, trouxesse todo o conteúdo. Carregando em uma das mãos as duas chaves e na outra uma pequena lanterna, caminhei apressado em direção ao meu objetivo. Ao ultrapassar a porta de trás da casa, fortemente protegida por uma longa travessa de madeira, fui açoitado pelo vento da noite que, misturado aos pingos da chuva forte que começava a cair, molhou todo o meu rosto. A água fria embaçou meus olhos e a lente da lanterna, diminuindo a luminosidade. Nunca soube que o velho possuísse um carro; no entanto, após percorrer os poucos metros que separavam a casa do galpão, bastou empurrar a pesada porta e lá estava ele. Na quase escuridão dos meus olhos embaçados, pude ver ali, na minha frente, totalmente coberto de poeira, um velho Cadilac azul turquesa. Testei uma das chaves, mas não consegui abrir a velha fechadura ressecada pelo tempo. Tentei a segunda e, com certo esforço, finalmente destravei a porta, fazendo com que as enferrujadas dobradiças lançassem no ar um longo gemido; senti uma dor aguda invadir o meu peito. A expectativa acerca do conteúdo daquele porta-luvas deixava-me aflito. Tendo acesso ao compartimento, fiquei ainda mais confuso diante do que encontrei: uma empoeirada carteira de couro e um velho envelope amarelo, caprichosamente remendado com fita adesiva. Fiquei tentado a abri-los, porém, não achei conveniente, preferindo levá-los até seu dono. Voltei para o quarto carregando milhares de interrogações, disposto a despejá-las sobre o velho pescador. Porém, para a minha tristeza, Leon ou Noel, nem sei mais como chamá-lo, já não podia responder nenhuma pergunta. Tocando-o levemente, pude ver, pela rigidez do seu corpo, que a morte o alcançara.

Diante daquele corpo rijo sobre a cama, voltou o incômodo da dor aguda no peito. Acabara de perder meu velho companheiro de pescaria. Um forte sentimento de indignidade instalou-se em mim ao perceber que minha curiosidade superava a dor da perda do amigo. Com o envelope e a carteira nas mãos não hesitei em abri-los. Dentro da carteira, encontrei: uma certidão de casamento onde se podia ler: Leon Manfredini Vanucci e Virgínia Albuquerque Vanucci; um volumoso maço de notas, que desconhecia o valor, por serem de uma moeda há muito fora de circulação, e alguns cartões de crédito, todos com validade vencida há vários anos. No envelope remendado, um exame com resultado positivo, atestando terceiro mês de gravidez, em nome de Virgínia Albuquerque Novaes. Fiquei perplexo com todas aquelas informações. Ainda de posse das duas chaves, fui invadido por uma sensação estranha. Toda a trama narrada pelo velho voltava claramente à minha cabeça e começava a ganhar sentido. Uma força inexplicável conduziu-me de volta ao galpão. Se uma das chaves abre a porta do carro, a outra... - pensei em voz alta. Andei, decidido, em direção ao porta-malas do Cadilac azul. Por um momento, cheguei a vacilar, mas acabei por colocar a chave na fechadura. A decisão com que caminhei até ali parecia me abandonar; já não tinha certeza se queria realmente saber o que guardava aquele porta-malas; na verdade, acreditava já saber. Uma coruja lançou seu carpir agourento sobre o telhado. E essa dor que não passa! – sussurrei, transfigurando a feição. Por alguns minutos, fiquei estático segurando a chave com meus dedos trêmulos. Bastou um giro, um clique; um grito de pavor cortou a noite fria.

Elenildo Pereira
Enviado por Elenildo Pereira em 30/05/2008
Código do texto: T1011901