Aconteceu em 77...
Num tempo onde celular e computador inexistiam na vida social, as garotas usavam sandálias combinando com bolsas e sapatos altos; os saltos variavam entre os desconfortáveis Luís VI e os deliciosos e
´´ flutuantes ´´ Anabela...
Minha prima Esther fazia parte da tal famosa classe média; descobrira numa viagem ao Nordeste que sua ´´ classe´´ era inexistente,ou o sujeito passava fome ou era filho de coronel;estudava num colégio agregado a uma das Universidades mais famosas do país.
O Ensino Médio era formado pelos cursos profissionalizantes ; também divididos pelas áreas de Humanas,Exatas e Biológicas.
Esther era excelente aluna em Língua Portuguesa ,fato que a aproximou dos professores da área.
Seu desembaraço a fez ´´ mascote ´´da turma do Corpo Docente;tratava-se de um elo proibidissimo , o segredo de turma mais bem guardado do bairro.
Normalmente o grupo se reunia em saraus domésticos;com muita música, poesia, ´´bebericagens´´, bailinhos e namoricos proibidos.
O pai de Esther, Ilban, era um famoso empresário judeu; sua mãe era filha de pastor evangélico,trabalhava na edição de textos Gospel, criava mais duas crianças de pequenas de seu segundo casamento; crente fervorosa,vivia orando pela educação ´´ maluquinha´´ da filha, que optara em residir no apartamento paterno ;na Rua Itacolomy, pertinho do Campus Universitário.
A separação dos pais de Esther aconteceu meses após seu nascimento e foi um escândalo maior do que a ocasião em que Angélica, sua mãe, apresentou-se à sociedade judaica; mas o passar das horas e a desenvoltura da pequena Esther fez com que todos se acostumassem ao ´´ novo tempo´´.
Esther aprendeu a caligrafia da Escola Americana, vestia-se como uma burguesinha e usava tranças enroladas às fitas vermelhas e azuis ,combinando com as cores de seu uniforme.Quando moça, transformou-se em mulher alta, longilínea,quase sem curvas, mas de feminilidade e elegância inigualáveis...
Mil novecentos e setenta e sete marcava o ingresso da jovem loira no Colégio ;área de Humanas, muitos textos, idéias,festas e poesias;em outubro Esther foi passar quinze dias na residência materna;Ilban fora para terra de seus avós, Cairo.
Angélica morava numa viela tatuapeense na zona leste da cidade e para mostrar sua eficiência maternal na educação da filha contratara um motorista de praça para levá-la ao Campus; zona oeste paulistana.
Fazia frio e garoava quando as sirenes dispararam e as salas de aula de todos os andares agitaram-se nas enormes escadarias; todos gritavam ,´´ Revolução´´!
Esther passou pelas salas dos professores ,como um bebê que procurava explicações para ausência paterna naquele momento; posto que ,seu pai trabalhava a dois quarteirões dali e neste período de viagens a loja encontrara-se fechada.
Os ´´ amigos de turma e farra´´, os professores do Campus não estavam mais nas salas,todos os colegas se encurralavam em portões abarrotados de estudantes e funcionários querendo escapar das ruas, do caos e da cavalaria armada que invadiu o Campus gritando,
´´ Ordem´´...
Havia filas intermináveis nos orelhões;Esther era amiga da secretaria e tentou um telefonema no Diretório Acadêmico,em vão;também estava vazio.
Resolveu então perguntar qual ônibus pegar,quanto iria pagar e qual a porta que usaria para ingressar no meio de transporte;seria sua primeira viagem num coletivo!
Claro que pegou o ônibus errado ,foi parar em São Miguel Paulista!
A praça onde Esther desceu parecia a Selva Amazônica;pessoas de roupas coloridas comiam em marmitas e com as mãos ,embaixo das poucas árvores do matagal;gente mal encarada ´´ scaneava´´ centímetros da linda e elegante silhueta da mocinha; um frio na espinha uniu suas mãos em orações, nas duas religiosidades que faziam parte de seu cotidiano.
Angélica enviou sr. Anielo até o Campus e este voltara ao Tatuapé horas depois sem notícias da menina!
Uma ligação internacional foi realizada pelo famoso Dr. Iosef dizendo que Ilban jamais perdoaria tanta displicência!Onde estaria Esther?
A cabeça rodava, o corpo transpirava de paúra,os olhos pareciam idosos com nuvens e cortinas;num golpe emocional de puro desespero a mocinha caiu diante das marmitas e rostos desconhecidos na praça do matagal.
Dizem que :
-´´Os anjos andam a postos e sabe-se lá se não é verdade!?´´
Enfrente à praça passava ,nesta hora ,o táxi do sr. Anielo ,que residia a três quadras dali!
O fusca roxo tocava músicas sertanejas e os dedos do sr. Anielo acompanhavam os acordes no volante quando seus olhos buscaram a turba.
Sua curiosidade o fez estacionar , qual não foi seu espanto ao ver Esther; mais alva que a neve ;estendida ali no chão!Em São Miguel! Quem poderia explicar!?
Sr. Anielo tratou logo de carregar a jovem e levá-la ao Pronto Socorro do Hospital Cristo Rei, onde seu avô a atenderia raoidamente; posto que, justamente naquele dia estava de plantão!
Dr. Oliveira logo veio ao encontro da neta e pediu para enfermeira avisar Angelica que estava tudo bem.
Em breve tempo, chegaram ao hospital dezenas de pessoas apavoradas e enfartadas...Aquele início de revolução não foi para frente,mas fez sua marca na vida de muita gente!
Esther formou-se professora e casou-se com seu mestre em Aramaico; um gênio da Universidade Federal;ambos foram para o Cairo e vivem lá até hoje.
Angélica jamais saiu do Tatuapé e hoje toma conta do Coral Estadual Gospel e Vida.
Dr. Iosef deixou seu filho Ilban vez mais rico,com seu falecimento; mas o empresário jamais voltara a se casar; vive na ´´ponte aérea´´ São Paulo- Cairo, louco por um neto!
Sr. Anielo dedicou-se a transportes escolares;acabou por gerenciar uma frota de veículos do Colégio Penhense Nova Estrela.
A praça de São Miguel virou Parque Infantil e provavelmente os freqüentadores tenham aprendido a alimentar-se usando talheres ao invés das mãos!Pena porque inexiste algo mais ´´energético e festivo´´que fazer bolinho fofo entre os dedos!
Coisas do vovô Oliveira quando estava longe da vovó e deixava a gente se divertir ,fazendo bolinhos gorduchos de feijão e farinha a moda nordestina!kkkkkkk