A cobra amarela

George Luiz - A cobra amarela

Leônidas olhou o carro parado com desgosto. Acabara de ligar para o seguro e fora informado de que teria que esperar, no mínimo, uns quarenta minutos.

A estrada de terra onde enguiçara não apresentava qualquer sinal de transito sequer de pedestres. Para que tinha ido até lá ? Sabia bem a resposta. Esta-va quebrado, sem trabalho.Um arquiteto freelancer tem que aceitar qualquer oportunidade que surja. Não adiantava tentar falar com o doutor Marcondes.

Sabia que só os caseiros estariam lhe esperando na ausência do proprietário do terreno. O telefone fixo estava com problemas na região e ele não tinha o celular dos caseiros. Resolveu caminhar. Uma curva suave estendia-se a sua frente. Leônidas caminhava sem pressa sob o sol forte.A estrada era margea-da naquele trecho por uma cerca viva de cedrinho à sua esquerda e pelo ma- to inculto a sua direita. E a mais ou menos uns dez metros ele a viu.

Estava enrodilhada sobre a estrada. Parecia tomar um tranqüilo banho de sol. Sua cor foi o que lhe chamou mais a atenção. Era um amarelo vivo, sem qual-quer mancha ou desenho. Passou por ela a uma distancia respeitável, não e-ra exatamente um admirador de cobras. Mas,ao faze-lo, sentiu que ela o olha- va fixamente com suas pupilas escuras.A língua bi-partida do réptil movimen-tava-se rápida para dentro e para fora da boca ameaçadora. Até que ela desenrolou-se e deslisou para o mato em movimentos sinuosos. Só então ele teve como avaliar seu cumprimento. Devia ter pouco mais de um metro.

A casa dos caseiros surgiu na curva seguinte, Ficava perto de uma velha ar-vore, um ipê rosa. Um cão perdigueiro latiu para ele mas não o ameaçou. Pelo contrário, caminhou amistoso até ele. O caseiro surgiu e ele o cumprimentou.

- Bom dia. Sou o arquiteto. Vim ver o terreno. Meu carro enguiçou perto daqui. Meu nome é Leônidas.

- Se chegue, doutor. Deve estar com sede. Quer um copo com água gela-dinha ?

- Quero sim, obrigado. Está muito quente hoje. Encontrei até uma cobra

enrodilhada tomando sol na estrada. Uma cobra amarela, quase doura-da.

- O senhor disse uma cobra amarela, moço ? De que tamanho ?

- Pelo meu cálculo deve ter um metro e vinte ou trinta, por aí.

- Ah ! Essa desgraçada ! Tem mais de dois meses que eu tento matar es-sa bicha, mas ela é muito esperta. O senhor diz que ela estava enrodi-lhada ?

- Isso mesmo.

- Pois olhe, doutor, o senhor teve sorte. Essa miserável é peçonhenta. Já picou e matou um porco do sítio do seu Antão e mandou um rapaz, o Be- to, que trabalha na venda para o hospital. Ele escapou por pouco. O ve- lho Joca do sitio Resedá diz que essa cobra tem parte com o demo !

- Bom, só posso lhe dizer que ela me olhou fixamente quando eu passei. E que ela tem um jeito assim assustador de encarar a gente.

- Mas ela está com os dias contados, doutor. Tem muita gente por aqui querendo acabar com ela. É uma cobra diferente, ninguém sabe dizer de que espécie ela é. Talvez seja até de outro país.

- De outro país ? Uma espécie estrangeira ? E se for, como será que veio para o Brasil ?

- O velho Joca diz que ela é africana, moço, que algum macumbeiro deve ter trazido ela do Congo, de avião.

- Puxa ! Que estória curiosa ! Bom, deixe eu fazer o reconhecimento do terreno para poder desenhar o projeto da casa.

O projeto de Leônidas foi aprovado e pago. O doutor Marcondes contratou-o para executar a obra. Como se tratava de um local fora da cidade e de aces-so um pouco difícil,o contrato oferecido pelo proprietário foi compensador pa- ra o arquiteto. Uma equipe foi reunida para a obra e um pequeno acampamen- to construído. Licinio, o caseiro, combinou com o doutor Marcondes uma re-muneração para que Jovina, sua mulher, cozinhasse para os operários. Mês-mo o terreno estando limpo e preparado,Licinio insistiu em tomar precauções contra a cobra amarela. Porque ela continuava viva e solta pelas redondezas.

A obra funcionava de segunda a sábado, dia em que os operários eram dis- pensados as onze horas da manhã.

- E então, meu amigo ? Soube que você está se tornando um arquiteto rural. Grandes fazendas, estábulos, cocheiras, currais...

- Não se esqueça dos tanques para banhos de carrapaticida...

- Deixe de querer gozar o Leônidas, Arnaldo.Eu vi o projeto dele para essa

- obra dele que você está tentando ridicularizar. Vai ficar um espetáculo depois de pronta. Eu não faria melhor e você, muito menos.

- Defenda seu amigo a vontade. Afinal, vocês se formaram na mesma tur-ma.

- Olhem, é um privilégio nos dias de hoje, projetar e construir alguma coi-as que não tem nada a ver com edifícios de apartamentos.E mais, o pro-

prietario, pelo menos até agora,não mexeu num detalhe do meu projeto.

- E o lugar, é bonito ?

- Muito. Uma combinação gostosa de planícies e pequenos morros. O cli-ma talvez seja um pouco seco. Mas o terreno tem uma nascente ótima. E quem quer que tenha sido seu primeiro dono, adorava árvores.

- E o atual ? Está deitado no vil metal ?

- Estou construindo o sonho dele em termos de moradia. Ele vai se apo-sentar e pelo que diz, vai criar cavalos de raça.

- Então você projetou também um conjunto de cocheiras ?

- Sim, trinta e seis cocheiras individuais e duas maiores do tipo materni-dade. Além de um espaço para medicar animais, etc.etc. Até o local pa-ra as capineiras tem que ser bem escolhido. Eu sempre tinha ouvido di-zerem que cavalos gostam de capim “ Napier “. Mas hoje fala-se muito em capins do tipo “coastcross”, “tifton”, alguns pegam de muda, outros através de sementeiras.

- E onde você aprendeu tudo isso ?

- Em parte visitando dois haras e em parte pesquisando em sites especia-lizados.

- Que beleza ! Quando eu penso nas vantagens que a internet nos trouxe sob esse aspecto, é fantástico !

- Tenho aprendido muita coisa. Dimensões de piquetes, réguas especiais para cercas, sistemas de bebedouros interligados que mantêm a água nas cocheiras sempre no mesmo nível...é um mundo, Arnaldo, acredite.

- Desculpe, Leônidas. Não está mais aqui quem quis gozar você.

- Ora, tudo bem ! Essa obra caiu do céu para mim. Pergunte aqui ao Caio se eu não estava chegando ao fundo do poço. Tinha pensado até em fa-zer um concurso público.

- Ainda bem que não fez, meu amigo. Não consigo imaginar você senta-do em frente a uma mesa de repartição pública. Você iria morrer de te-dio.

- Bem, há outras atividades menos desgastantes. O Borges, lembra dele ?

Tem projetado e construído vários postos para a Petrobrás. De qualquer forma, espero que este meu projeto,uma vez construído,suscite comen-tários favoráveis. Que me traga encomendas,já não digo de haras, mas de casas de campo, ou casas para condomínios campestres.

- Faço votos que isso aconteça, Leônidas. Você merece !

- É preciso aproveitar esse novo “boom” da construção civil. No setor de residências populares, econômicas, então, nem se fala !

- É verdade, Caio. Mas nada de tão gratificante como deve estar sendo para o Leônidas. É raro poder edificar superfícies maiores atualmente E

quando isso acontece, geralmente são fábricas, industrias...

- Bom, que tal pedirmos uma saideira ?Tenho que acordar cedo amanhã e detesto dormir muito pouco.

- Por mim, tudo bem. Também preciso dormir cedo. E você, Leônidas ?

- Eu também. São quarenta e seis quilometros só de estrada, até eu che-gar na obra.

Mais de três meses tinham se passado. Com o fluxo contínuo de capital do proprietário,a obra caminhava muito bem. Leônidas tinha conseguido uma no- va obra, a reforma de dois apartamentos. Sua situação econômica melhorou sensivelmente. Ele trocou seu carro por um zero quilômetros. Ele se dividia agora, entre as três empreitadas. Mas o xodó do arquiteto era a casa com o pequeno haras. O doutor Marcondes estava entusiasmado. Via crescer o seu sonho e já pensava em que raça de cavalos criaria. Pensava em cavalos de esporte.Soube então,da existência da raça denominada Brasileiro de Hipismo que fazia sucesso nas competições de salto,tanto no Brasil, como no exterior com resultados expressivos. Leônidas lembrou-o que se iria criar essa raça, deveria ter um bom redondel e uma carreira para saltos em liberdade. Com isso a obra ficou completa. As capineiras estavam funcionando bem.Só a ração e a alfafa seriam compradas fora.

Com o passar do tempo, o arquiteto tornou-se cada vez mais entusiasmado e favorável ao projeto do doutor Marcondes. Uma das alas de cocheiras estava pronta. O pequeno depósito de medicamentos, as salas para equipamento hí-pico, as chamadas “ reservas” para selas, cabeçadas, arreios em geral, tam-bém. Foi construído um sistema simples de vasos comunicantes, com bóias, que forneceria a água para os animais beberem. A casa principal, a residen-cia futura do doutor Marcondes, ainda levaria uns seis meses para ficar pron-ta. Uma paisagista tinha sido contratada para decorar o conjunto.

E então, a cobra amarela reapareceu.

Com o envolvimento na execução do projeto, Leônidas tinha esquecido da te-mida serpente. Mas agora ela se fez presente, audaciosa, atrevida, picando um dos operários. Socorrido a tempo, ele foi salvo de uma morte dolorosa. Só que seus companheiros ameaçaram deixar a obra, afinal, estavam morando em barracas de lona impermeável e temiam ser picados pelo perigoso réptil.

Leônidas conversou com Licinio.

- Temos que fazer alguma coisa com urgência, Licinio. Esta cobra vai acabar prejudicando seriamente a obra. Não sei como apareceu por aqui, mas temos que mata-la.

- Só vejo um jeito de fazer isso, doutor.

- Sim ? E qual é ?

- Chamar o velho Joca para resolver o problema.

- Como assim ?

- Com feitiço, doutor. Acho que é a única maneira.

- Você está me dizendo que ele vai enfeitiçar a cobra ? Mas o que quere-moa é mata-la, Licinio.

- Isso mesmo, doutor Leônidas. Mas primeiro é preciso atrair a endemoni-nhada ! E o Joca sabe como. Por que não falamos com ele ?

Assim fizeram e o velho Joca concordou em realizar o trabalho.Pediu, é claro, uma pequena gratificação com a qual, Leônidas concordou.

- Só tem um porém, doutor.

- Que porém, Joca ?

- Vou precisar de uma moça, virgem para poder atrair a cobra.

- Sabia que não ia ser tão fácil ! E onde vamos arranjar essa virgem ?

- Ora, doutor ! Temos uma, bem a mão. É só ela concordar.

- Uma moça, virgem, a mão ? E quem é ?

- É a irmã mais nova do Beto.

- O Beto da venda, que já foi picado pela cobra ?

- Ele mesmo.

- E como você pode garantir que a garota é virgem ?

- Ah, essa eu garanto. Se ela desse antes de casar, os pais a punham pa-ra fora de casa. E antes a surravam pra valer.

- Que idade ela tem ?

- Está com quinze. A idade certa para atrair a cobra.

- E quem vai pedir isso a ela ? O que ela terá que fazer ?

- Nada de errado, doutor. E eu mesmo falo com ela e com os pais dela. E tem mais, ela vai ajudar a matar uma cobra que quase mandou o irmão dela para a terra dos pés juntos.

- Está bem, Joca. Se você mesmo vai falar com ela...

O velho Joca se encarregou de falar com Ariana e com os pais dela. Os três concordaram com a coisa.Era preciso realizar o trabalho numa noite de quar-to minguante, o que aconteceria dali a cinco dias. Leônidas pediu para estar presente. Queria ver o que aconteceria. Joca concordou.

Na noite do “ trabalho “, Ariana vestiu uma saia branca e uma blusa vermelha e decotada. Eram as cores que fariam a cobra vir até ela. Bebeu também um gole mínimo de cachaça, só o bastante para funcionar o feitiço. As onze da noite, uma cadeira de braços foi colocada junto da casa de caseiro. Os ope-rarios já estavam dormindo em suas barracas. Ariana benzeu-se e sentou-se na cadeira. Era uma garota bem bonita. Vista assim, sob a pouca iluminação do local, parecia quase irreal. Por volta da meia noite, alguma coisa pareceu movimentar-se junto do ipê rosa. Leônidas sentiu um arrepio percorrer seu corpo. Mesmo na pouca claridade podia-se ver, junto ao chão, dois pontos lu-minosos que se moviam. Eram os olhos do terrível réptil. A cobra avançou em direção a cadeira. Ariana levantou-se e, como se movida por alguma força pri-mitiva e obscura, começou a dançar. A cobra amarela foi postar-se junto a e-la, bem à sua frente. Ninguém ousava interferir com a cena.A virgem dançava como se estivesse em transe. Avançava e recuava em direção à serpente em movimentos de incrível sensualidade. A cobra parecia, rastejando, querer a-companhar os movimentos de Ariana.Aquele estranho balé não poderia durar para sempre. Após alguns minutos a moça parou. A cobra permaneceu imo-vel. Então, com um movimento que pareceu durar uma eternidade, Ariana pe- gou uma foice de longo cabo que estivera ali,apoiada à cadeira desde o inicio daquele estranho pás de deux, e num gesto rápido, decepou a cabeça da ser-pente. A cobra amarela estava morta.

George Luiz
Enviado por George Luiz em 21/06/2008
Código do texto: T1044843
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