DIÁRIO DE UM AIDÉTICO

                                          *** Capítulos de 01 a 03***

                                                             I

O quarto permanece escuro... Chove muito! Por todos os cantos só se ouvem gritos, choro, preces de mulheres desoladas, que sentadas em um banco de madeira, cobrem-se com um fino manto de lã, na tentativa de suportar o clima gélido do corredor.

A melancolia, como aura, varre a alma e a mente daquelas pessoas, fazendo-as clamarem por paz... Uma figura alta, de cabelos grisalhos, postada a alguns metros, com metade de um cigarro entre os dedos da mão direita, acompanha tudo com certo incômodo.

A porta do quarto se abre, entram algumas pessoas e novamente se fecha... Minutos depois, é escancarada, para que a maca possa invadir o corredor e levar o doente, um jovem de 23 anos, que arqueja, antevendo o trágico fim.

Uma das mulheres se levanta, possivelmente a mãe, toca-lhe na face, tenta dizer-lhe algo; dominada pelo momento, cai em desespero, sendo contida pelo médico, outro jovem, da mesma idade de seu filho.

A maca prossegue seu trajeto, todos se erguem para ver o pobre garoto passar. Abrem-se as portas do CTI, os equipamentos o aguardam. Entubado, o rapaz tenta, mais uma vez, resistir à morte, este mal que o envolve, com sagaz voracidade e sem qualquer ressentimento.

Olhando-o pelo vidro, a mãe reza, à espera de um milagre; oferece sua vida em troca da dele. Mas o céu está reticente. O menino deve mesmo partir!

O tempo corre, o relógio digital da sala de espera marca 20h.

Cada vez mais pessoas chegam, todas se aglomeram, esperando o pior... E o que seria o pior? A própria MORTE!

O rapaz, com os cabelos ralos, a pele embriagada por uma altissonância ignescente, absorve cada molécula de oxigênio - enviada pela moderna aparelhagem - como se fosse um enorme presente divino. Seus olhos, intumescidos, transportam-no a um enorme jardim, todo florido, com aroma de rosas selvagens. No céu azul, cumprimentam-no os pássaros... Tudo lhe traz a sensação de liberdade que a sociedade não consegue recriar com todo o dinheiro que lhe corre nas veias.

O equipamento que lhe marca os batimentos cardíacos apita, a correria aumenta, todos tentam evitar o inevitável: sua morte! O que era temor, torna-se realidade em poucos minutos.

A mãe do garoto surta pela dor, sendo contida pelos braços fortes daquela figura alta, de cabelos grisalhos, seu ex-marido, a quem não via há mais de 20 anos e que, por obrigação, encontrava-se ao seu lado, sem que qualquer lágrima caísse sob o envelhecido rosto, pela morte de um dos filhos.

Cabisbaixo, o médico responsável pelo plantão recolhe-se ao consultório após assinar o motivo do falecimento.

No dia seguinte...

A mãe do falecido garoto, ao entrar pela primeira vez no quarto do filho que tanto amava, encontra sobre a cama, em meio aos cobertores, um pequeno diário. O rapaz o havia deixado antes de voltar ao hospital pela última vez.

Sentada, passa a manuseá-lo na esperança de trazer o filho de volta, pelo menos nas lembranças. Na primeira página, o susto. Nela continha a seguinte frase: "Diário de um Aidético". 


                                                  II

Não contendo as lágrimas, ela deixa o diário sobre a cama, afasta-se até a janela, visualiza os longos terrenos circundantes, como se estivesse à procura do filho, que agora fenece como as flores no inverno.

Tudo parece comover-se diante de seu desespero... O sol, em luto, esconde-se atrás de grandes nuvens. Os pássaros não voam; acomodados nos galhos das árvores, esperam o momento certo de partir.

Por um instante, toda aquela apatia cai por terra ante a chegada de um pequeno menino, de uns 8 anos, que corta os terrenos com sua bola de futebol.

Acompanhado pelos olhos semicerrados daquela triste mãe, o menino senta-se ao chão, olha todos os cantos, como se ali também estivesse à procura de alguém. Passam-se os minutos...Para disfarçar a impaciência, ele pega a bola e faz algumas embaixadas e, numa delas, olha para a janela do quarto onde estava a mulher.

Seus olhos se cruzam. Desnorteada, a mulher não entende o garoto, que lhe acena com um largo sorriso.

Movida por um oceano intrínseco de ansiedade, ela corre até a porta, almeja falar com aquele menino, dizer-lhe algo, talvez abraçá-lo, e sabe lá mais o quê... Quando chega ao terreno e o vê diante de si, fecha os olhos, pensa estar enlouquecendo... Recobra os sentidos após ouvir a criança perguntar: _Mãe! Já fez o bolo de que lhe pedi?

Ao abrir os olhos, não havia mais ninguém...O menino havia partido com o vento, rompido a lei da racionalidade e bagunçado sua mórbida e frágil linha psíquica.

Caída ao chão, verte-se em lágrimas. 

                                                   III

Dias se passam...

A casa está tão triste quanto antes. A pobre senhora fecha-se para o mundo, esquece-se de si, de sua família e entrega-se, aos poucos, a uma violenta depressão. Dificilmente conseguirá sair deste estágio - é o que pensam seus outros filhos, uma vez que o finado garoto era o descendente que mais amava, despertava interesse... Não que não apreciasse os demais, pelo contrário, tinha estima por todos, entretanto, o que se foi era o caçula, aquele que mais mimou, deu seu tempo para cuidar.

Tinha vontade de voltar ao quarto dele, fechado desde o momento daquela visão. Desejava ver o restante do diário, saber o que ele tanto escondia nas páginas daquele livro - seu fiel e mudo confidente!

_Mãe, o que está acontecendo? Faz mais de dez dias que a senhora não vê o sol. O que espera de tudo isso? Quer morrer...? Meu irmão se foi, mas estamos aqui e, como ele, precisamos muito de seu amor, afeto. Por favor, enxergue-nos!- suplica a filha mais velha, tocando-lhe o ombro direito, enquanto ela lavava a louça do café. _Mãe...- insiste a moça._ Mããããe...

Infelizmente ela não estava ali, sua mente a transportara para uma outra dimensão, longe da dor e do sofrimento - personagens atrozes desse folhetim.

O filho do meio se aproxima, beija-lhe a face e tenta lhe dizer algumas palavras amigas.

A mulher termina de lavar a louça, desliga a torneira, joga o guardanapo sobre a mesa e dirige-se ao quarto do garoto. Não agüenta tanta pressão e entrega-se à curiosidade... Ao abrir a porta, sente o aroma da morte oscular sua  alma. Todos  seus gestos são acompanhados pelos filhos, há pouco ignorados.

Ao sentar-se na cama, ela retira o diário debaixo dos cobertores, abraça-o com força, como se fosse o garoto, desfazendo-se em lamentações. Vendo o objeto, o filho mais velho questiona:

_Um diário? De quem é? De meu irmão?

A mulher apenas soluça.

_Deixe-me vê-lo, mãe, por favor!- pede a filha.

A mulher entrega-lhe o livro. Ao abri-lo na página três, a moça surpreende-se com os seguintes dizeres:

"Dedico este livro ao meu filho, que nascerá em três meses...”

* Continue lendo - capítulos 4 a 06:
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