COMO DAR ADEUS AO COMPANHEIRO: ALTERNATIVA UM

Vinte minutos depois, o corpo já estava frio e ela ainda não sabia o que fazer. Lá fora uma garoa fina e os dez graus de uma típica tarde de inverno não animavam nenhum passeio ou atleta de final de semana. Ideal para a remoção pretendida, remoção do tipo sem testemunhas. No entanto, talvez fosse melhor esperar a noite cair e cobrir a empreita. Nada mais desagradável do que ser flagrado removendo um cadáver. Ninguém é compreensivo nessas horas. A primeira idéia que as pessoas têm, nestas horas, ao avistarem uma situação destas é de que se fez coisa errada, fora da lei e da ordem. Algo como atentar aos princípios da boa convivência social. Mas o que fazer... o grande companheiro, de doze anos de estrada, lá estirado, duro... uma lástima. Enquanto se servia de uma dose sentiu uma lágrima solitária rolar pela face. Pensou se tinha uma pá. Nunca pensara nisso antes. Talvez tivesse de parar numa daquelas lojas que ficam abertas até às dez da noite para comprar uma, mas era bom revirar a garagem. Talvez... quem sabe. Sempre é melhor procurar do que na hora de guardar a pá nova, se descobrir que já tem uma lá. Não ia querer ter duas. Definitivamente não. Tempo não faltava, aliás tinha de sobra. Estava sem apetite e o morto é que não ia lembrar de pedir sua janta. Como era sistemático o danado. Sempre na hora certa, como se tivesse despertador na barriga. Mesmo se encontrasse a pá, o que veremos que não teve a felicidade de fazer, teria de sair do condomínio. Não ia poder cavar nos jardins ou canteiros à vista dos vizinhos. Passar pela portaria seria fácil, afinal para que servem os porta malas. De qualquer maneira é melhor se tomar mais uma dose, ou duas ou três... Era cedo e a madrugada estava longe. Foi buscar o Guia da cidade para escolher um local pelo qual pudesse passar vez por outra. Primeiro para saber se tinham desenterrado e, de qualquer forma, prestar alguma reverência. Por mais chato que se tornara nos últimos tempos, foi seu companheiro por tantos anos. Passadas algumas horas, totalmente embriagada, foi ao quarto, juntou as coisas dele numa caixa e caiu num choro intenso. Podemos dizer que a ficha caiu... Mas o que tinha de ser feito, era melhor fazer. Removeu o cadáver, arrastando-o com enorme dificuldade pelo carpete até que, finalmente, alojou-o no carro. A embriagues parecia ter aumentado o peso dele ou ela precisava voltar para a academia. De qualquer maneira seus braços estavam fracos. Parou para respirar um pouco, recobrar o fôlego. Afinal, ao passar pela portaria ia ter de abaixar o vidro escuro para que o porteiro a visse. Uma dessas novas medidas de segurança implantadas e ela não ia poder parecer esbaforida. Após alguns minutos, pôs o carro em marcha e foi-se para a missão final. Passou pela já dita loja e adquiriu uma pá. O caixa estranhou aquela compra, naquele horário e ela sorriu amarelo, desejando sair de lá o mais rapidamente possível. Chegando ao local escolhido, deu três voltas na praça e certificou-se de que não havia alma viva por lá. Quanto às outras almas, estas pouco importavam. Inicio-se a escavação. Nunca pensou que isso pudesse ser tão estafante. Nos filmes não era assim, na verdade parecia muito mais fácil do que estava sendo. Buraco pronto... bem, pronto mesmo, não estava. Deve ser por isso que estas coisas sempre terminam em cova rasa, pela dificuldade de se fazer e pelo tempo necessário. Deve ser sim, sem dúvida. De qualquer maneira, depois de olhar em volta, de novo, foi lá buscar. Abriu a parte traseira e foi lidar com aquele peso enorme, levantar, arrastar e acomodar na cova. Um trabalhão. A esta altura estava suada, suja e até tinha se machucado. Uma cena lamentável. Foi neste instante, juntamente com a primeira pá de terra, que apareceu uma viatura policial. “Minha senhora?” “Minha senhora: o que a senhora está fazendo ai?” “”Eu??” Ao aproximar-se, o policial logo viu que coisa certa não podia ser. Espantou-se: “Isso é coisa que se faça?” “Vamos para a delegacia!”; “Mas, mas...”; “Sem mais nem menos, ou a senhora nos acompanha numa boa ou vou ter de algemá-la....” ; “Moacyr!! ô Moacyr!!.... vem aqui e fica guardando o local enquanto eu levo essa dona pra delega e mando reforço....” Esperou, sentada em uma sala fria, até que o Delegado mandasse chamá-la: “A senhora não sabe que não se pode enterrar nada em praça pública?.... nem cachorro!”

Ocirema Solrac
Enviado por Ocirema Solrac em 13/07/2008
Código do texto: T1078454
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