"Somos vivas, enfim" - Publicado no "O Livro Negro dos Vampiros"

Noite fria. Lua alta. Afastadas de toda a repressão que sofremos do mundo. Seguindo nosso caminho. Segunda metade do século XIX. Época de preconceitos, repressão exacerbada e da moral hipócrita!

- Não adianta Sofia, está emperrada – resmungou a mulher pálida, cansada da longa caminhada que antecedeu a chegada no cemitério.

-Mas viemos de tão longe, superamos tantos obstáculos – murmurei - Não vamos desistir aqui! Deve haver um jeito. Temos que abrir!

- Está enferrujada! - disse Juliana, mulher forte, porém não a ponto de abrir uma porta fechada há séculos.

Era um crematório antigo. Cheiro de cadáveres envelhecidos no ar. Aroma de cinzas humanas; um sabor hipnótico.

- Mas precisamos entrar. Se nos unirmos, conseguiremos! Vamos procurar um pedaço de tronco! Deve ter algum aqui – redargüi ansiosa.

- Está bem, Sofia – disse Bertha.

Elas me conheciam por Sofia, mas, na verdade, meu nome era Alitzah. Minha mãe dizia que este nome significava “jubilosa”.

Começamos então a procurar algo para abrir a porta e de súbito, Bertha logo grita:

- Encontrei!

Não sei como aquilo poderia estar lá, mas servia perfeitamente! Alguém já tentara abrir a porta, e esqueceu ali, talvez por não ter conseguido êxito em abri-la... Mas não havia tempo para pensar nisso. Sim! Um bastão de ferro! Foi fácil. Encaixei a ferramenta, como deve ser usada, forçando-a para baixo, a fim de quebrar as correntes enferrujadas e sujas. Um estrondo... A porta abriu, derrubando sua poeira em cima de mim, rangendo... caindo...se desfazendo.

Todas se entreolharam satisfeitas e adentraram nas dependências do salão.

O odor... Como, por tantos anos, é possível sentir cheiro de morte?

Andamos, vasculhando todos os cantos do local, observando admiradas a grandeza das salas e gavetas que seguiam em direção de onde deveria ficar o fogo, o fogo que dava fim ao corpo morto do ser que tinha desejo de ao pó retornar, no sentido mais pleno da expressão.

- Deve haver um porão aqui – disse eu olhando ao redor - Esses lugares tendem a ter passagens subterrâneas, sabem? Para os rituais proibidos... Virginia, me ajude a procurar!

Ela veio prontamente. Virginia era muda, mas se comunicava com o olhar de uma maneira que ninguém fazia! Ela parecia farejar a entrada...

Todas me serviam. Éramos de uma sociedade composta apenas por mulheres, que abandonaram tudo para encontrar sua paz interior, fazer sua vontade, encontrar a paz no prazer e as respostas para as loucuras internas do ser, a busca da realização de desejos obscuros. E nesta noite iríamos evocar algo soberbo. Algo profano, mais profano do que nossas mentes sedentas por vida.

Desde quando conseguimos por magia essa arte vampírica, ela nos persegue. Essa sede... E não pretendíamos mais matar estupradores, mendigos e ladrões, nos porões do palácio da rainha Vitória para nos saciarmos, pois se continuássemos, o lugar ficaria infestado de corpos. O mal imperava muito no mundo ultimamente e isto tinha que mudar.

Decidimos então abrir o Livro dos Mortos e realizar o culto proibido. Um culto antigo. Que desperta coisas adormecidas, coisas estas com desejos obscuros. Seres etéreos, conhecidos pelos humanos como demônios e por nós como anjos.

Juliana relutou um pouco quando dei a idéia, mas não tínhamos mais nada a perder. Andávamos por anos a sós. Caminhando por cidades, sendo expulsas escorraçadas.

Virginia veio correndo em minha direção e apontava para a lateral do corredor escuro – ela encontrou...

Fui a sua direção e vislumbrei uma entrada com as madeiras quebradas. Uma porta no chão que de certo daria ao porão que procurávamos.

Descemos. Um cheiro diferente... enxofre? Talvez. Um misto de poeira com cinzas humanas, com umidade...

Começamos os preparativos. Marie deixou os cavalos amarrados mais próximos para que não se perdessem dali e assim nos servirem para a volta. Se é que haveria volta daquela noite.

Incendiamos tochas para iluminar o local. Anke acendeu os incensos de mirra e estendeu o tapete negro da entrada do porão até o altar antigo, uma pedra de mármore branco, fria, límpida como o olhar de Manuela, que assustada trazia os olhos vivos e serpenteantes.

Vestiram suas capas brancas, com exceção de mim, que esperava por Antonieta, que trazia o manto negro de cetim, numa urna, junto com um óleo aromatizante e as velas. Ela me banhou com um pouco do óleo de verbena e com pétalas de rosas brancas.

Éramos em 13 mulheres. Cada uma com sua função no rito. Seu arquétipo. Cada uma com seu desejo de libertação.

- Que se inicie o culto! – gritou Stefanie.

Deitei-me no altar e me deixei levar pelo som dos tambores tocados pelas mãos brutas de Margareth. Um arrepio me percorreu a espinha. Fechei os olhos e comecei a dizer palavras que me vinham à mente, aquelas que decorei do Livro dos Mortos: Abisheka, Aedom, Athanaton, Etéreo, Supla, Asakku! – repetia freneticamente, cada vez mais forte e em alto som.

Até que elas começaram a entoar o cântico comigo, numa voz uma e bela!

Eu estava ficando louca, surda. Só ouvia nossas vozes e o som do tambor cada vez mais sem sentido, cada vez mais forte, intenso, vozes desejosas, como se todas soubessem o que diziam.

Abisheka, Aedom, Athanaton, Etéreo, Supla, Asakku!

De súbito um estrondo ensurdecedor.

Fora um trovão?

Não. Era a porta que ruiu com toda força. Teria sido o vento? Os cavalos estão agitados, mas não parávamos, não podíamos parar! Continuamos de olhos fechados, em transe, entoando o mantra.

Eis que a porta se abre e olhos vermelhos como pequenas brasas surgem da escuridão. Olhos brilhantes como vaga-lumes de sangue na cor vermelho rubi.

Desta escuridão surgem homens nus. Muitos. Creio que cerca de 27 ou mais. Vinham como num bloco humano, escondendo ou protegendo alguém no meio deles.

Os cavalos! Alguns dos homens traziam suas cabeças e também baldes de prata com sangue deles! E eu ali, acorrentada, nua por baixo do manto negro, banhada em suor e óleo, deitada no mármore frio.

Eis que grito:

- Athanaton Asakku!!!

Dentre os homens um vulto surge de sobressalto. Corpo esbelto, pêlos densos, olhar pálido, vazio e intenso. Saltou por sobre mim!

Enfim, ele veio! Veio para mim!Para mim! E eu estou aqui, para ele e por ele!

Como parte do ritual, olhei em seus olhos profundamente e perguntei seu nome.

Ele nada fez além de me encarar com um sorriso de canto de lábio, e era medonho. Indaguei novamente, mas antes que eu o terminasse arrancou minhas correntes dos braços, deixando com as pernas presas, rasga meu manto com as garras afiadas de seus dedos e me deixa nua e com frio.

Fareja-me o corpo todo e até pensei ouvi-lo rosnar.

Uma onda de desejo misturada com medo me percorreu dos pés até a nuca. Frenesi...

O som dos tambores prosseguia. O fogo do incinerador fora aceso e cada homem possuía na arte do sexo uma de minhas seguidoras. Às vezes mais de um. Eles faziam-nas beber sangue.

Eu tinha velas ao meu redor colocadas por eles. E eram grandes e incandescentes.

Senti a língua áspera em meus pés e subindo até meus lábios. Então ao pé de meu ouvido, ele finalmente sussurrou: Lupus Severus!

Este era seu nome. Senti sua mordida profana e profunda em minha virilha arrancando um pouco do líquido escarlate que me corre nas veias.

Em seguida me oferece seu pulso, e eu sutilmente mordi docemente, mas logo de forma voraz, quase lhe arrancando a pele tamanha delícia era seu sabor.

- Quem te alimenta é seu deus – diz o anjo.

E eu era sua deusa e escrava adorada.

Deusas venerados pelos servos que agora nos banhavam com o sangue dos animais sacrificados e também nosso sangue. O líquido escorria em nossa pele branca e nos causava ainda mais loucura lasciva, e desejo luxurioso. E em minha pele escorria com o suor, misturado a ele e ao cheiro de prazer que inundava o lugar.

Já não se percebia o aroma da morte. O perfume agora era bem mais agradável e enfeitiçante. Era sangue, com volúpia e vida!

O calor da chama aumentava conforme os orgasmos seguiam. E tudo seria sem fim. O som era composto de gritos e gemidos, cânticos e tambores, crepitar das chamas e sussurros.

Tudo isso me enlouquecia, fui perdendo os sentidos, e despertava cada vez que ouvia os sons que ele emitia. Assistia ele se realizando em mim e eu nele.

Éramos deuses de si e de todos.

A noite sem fim seguia e os corpos descansavam exaustos enquanto eu e ele ainda dançávamos no frenesi do instante eterno, no entusiasmo de nossos corpos nunca cansados, movidos apenas pelas almas insanas e insaciáveis. Eu poderia morrer ali, com ele, mas ele não permitiria, esse ato não terá fim. Essa dança jamais acabará. O tormento será para sempre prazer. A dor se transmutará em êxtase. O êxtase em morte, e esta em vida. Seguiremos por todas as eras contra a censura sem sentido.

E esta era uma parte do livro que eu não contei a ninguém antes de chegar aqui. Esta parte do Livro dos Mortos omiti porque, dentre todas nós, eu era a única capaz de amá-lo de verdade como anjo e demônio, como meu e do mundo. Eu era a única capaz de sofrer com ele por todas as noites. Capaz de sorrir ao olhar suas presas famintas. Era a única em quem ele confiaria e seria o que realmente é. A que se prostaria por completo para sua alma.

E dali seguimos, sem fim, na dança, na sede, nos cânticos, na dor e no amor de ser um vampiro.

Libertas quae sera tamen.

Abhisheka: (masculino) Nome técnico da Iniciação Tântrica. Ordenação

Aedom: Palavra pertencente à língua de ouro dos Mestres da Luz. Significa Aflição Mística.

Asakku: Demônios

Athanaton: (grego, Thanatos = Morte) Imortal.

Lupus: Lobo (latim)

Severus: Severo (latim)

Libertas quae sera tamen: Liberdade ainda que tardia.

Emilia Ract
Enviado por Emilia Ract em 05/08/2008
Reeditado em 08/09/2008
Código do texto: T1114596
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