Mistério em Ipanema

George Luiz - Mistério em Ipanema

A porta do elevador fez o mesmo ruído irritante. Era preciso lubrificar as dobradiças, com certeza. Ela desceu até o térreo. Àquela hora não havia movimento no edifício. Além disso, ela sabia que o porteiro da noite tomava seu lanche, religiosamente entre as onze e meia e a meia noite.. Já na rua, ela caminhou rápido os poucos metros que a separavam de seu carro, estacionado junto ao meio-fio. Foi diretamente para casa. Ainda tinha em sua retina a imagem de Simone, morta sobre o piso do banheiro.

Se havia alguma coisa que o delegado Afrânio Moreira detestava, era certamente a política nacional. Para um homem inteligente e íntegro, o triste espetáculo proporcionado pelo congresso brasileiro nestes dias, especialmente pelo senado, era mesmo de embrulhar o estômago.

Teresa, sua mulher, chamou-o para o café da manhã. Eram oito horas.

-Experimente essa vitamina, querido. É fabricada em Itaipava.

-Sei. Mais uma de suas descobertas. Deve ter um sabor horrível...

-Não fale antes de provar.

-Humm, até que não é ruim.

-É ótima, tem uma combinação de frutas e cereais esplêndida.

O celular de Afrânio tocou.

-Sim, Gonçalves. Bom dia.

-Acho que o senhor vai ter um trabalho menos desinteressante, chefe.

-Por que, Gonçalves ?

-Bem, uma mulher foi morta em seu apartamento em Ipanema. Um crime que envolve o que o senhor adora, política...

-Como assim ? Quem é a vítima ?

-Aí é que está, chefe. Ela era apenas a filha de um político famoso. A imprensa vai gritar de felicidade.

-Muito bem. Vou já encontrar você no local. Me passe o endereço.

-O que foi, Afrânio ? Um homicídio diferente ?

-Sim, Teresa, por causa da vítima. A filha de um senador. Estou indo para o local do crime, Ipanema.

-Boa sorte, amor! Tenha muito cuidado com a mídia.

-Eu sei. Vai ser uma situação difícil. Até mais, querida.

O trânsito na Prudente de Morais já indicava que algo de diferente tinha acontecido. Além das duas viaturas policiais, muitos carros de reportagem se aglomeravam no quarteirão delimitado pela Maria Quitéria e a Garcia D´Avila. Afrânio passou indiferente pelos fotógrafos, cinegrafistas e repórteres. Os dois soldados da PM na portaria o reconheceram. Ele tomou o elevador social e subiu ao nono andar. Um PM montava guarda na porta do apartamento 901. Dentro dele, Afrânio foi recebido por seu auxiliar de confiança, o inspetor Gonçalves.

-E aí, Gonçalves ? A perícia já chegou ?

-Já, chefe. Ainda estão aqui. O pai da vítima está vindo de Brasília para cá. E temos um suspeito, ou melhor, uma suspeita.

-Uma suspeita ? Quem é ?

-Ainda não sei o nome, doutor Afrânio. Mas o porteiro me disse que a moça que foi morta era lésbica e tinha uma namorada firme que freqüentava o apartamento regularmente. Estamos investigando.

-Lésbica, não é ? E será que o senador sabia disso ?

-Ah, chefe...hoje em dia isso se tornou mais comum. Aposto como os pais dela sabiam. Parece que ela não escondia seu namoro dos vizinhos de edifício. Elas iam a praia juntas, saiam à noite, essas coisas...

-Mas não moravam juntas...

-Não, chefe, mas, segundo o porteiro, a namorada, às vezes, passava noites com ela.

-O nome da vítima é Simone, não é ? Ela trabalhava fora ?

-Tinha um escritório, chefe. Era consultora de moda.

-Isso é interessante. Devia ter contato com muitas mulheres de boa situação social. Já removeram o corpo ?

-Já, doutor Afrânio. Não queríamos que o pai dela ainda o encontrasse aqui. Telefonei para o IML. Eles prometem um laudo cadavérico para as próximas vinte e quatro horas.

-Você ainda não me disse como ela foi morta.

-Um tiro de revolver ou pistola chefe. Temos que esperar pela balística. A arma não foi encontrada.

-E o projétil ?

-Ainda está no corpo. Será removido durante a necrópsia.

-Sim, mas, pelo tamanho e formato do orifício, o que disse a perícia ?

-Os peritos acham que foi uma pistola. De calibre médio. Talvez uma 7.65. O tiro foi dado à queima-roupa.

-E impressões digitais ?

-Somente de quatro pessoas. Além da vítima temos de duas mulheres e as que são nitidamente de um homem. Nenhuma delas no corpo.

-E onde foram encontradas ?

-Pela localização, várias delas devem ser da faxineira. Logo saberemos, ela chega normalmente às nove para trabalhar. Há algumas em dois copos. Da vítima e de outra pessoa.

-Muito bem, Gonçalves. Como sempre, você atuou com eficiência. E o delegado da área ?

-Esteve aqui o delegado adjunto, chefe. Conhece bem o senhor. Disse-me que o titular certamente passará aqui mais tarde e se retirou. Há um detetive deles aqui ainda. Quer falar com ele?

-Falarei no devido tempo. Mas pode apostar que o delegado titular vai deixar o problema em nossas mãos. Não vai ser bobo de pegar um abacaxi desses para tentar deslindar, a filha de um senador... Quanto ao som de um tiro de pistola, no silêncio da madrugada ? Não foi ouvido por ninguém ?

-Aparentemente não, chefe. Pode ser que tenham utilizado um silenciador. Pelo menos é uma hipótese.

-Uma arma com silenciador. Mas nesse caso, parece coisa de profissio-nal, não acha ? A não ser que o crime tenha sido planejado com muita frieza. E no entanto, parece ter sido um homicídio passional.

-Acho que os peritos terminaram, doutor Afrânio. Quer falar com eles ?

-Quero.

Os peritos não tinham encontrado quaisquer outros indícios relevantes. Confirmaram para Afrânio as informações que o inspetor Gonçalves já lhe tinha dado. Forneceriam seu laudo impresso mais tarde.

-Hoje mesmo, rapazes ? Estamos lidando com um político de nome. Não quero aborrecimentos com ele.

-Deixe conosco, doutor Afrânio. O senhor terá nosso laudo até o final da tarde. É uma promessa.

-Mas e a origem do projétil, esses detalhes ?

-Não se preocupe. Daqui estamos indo ao IML a bala estará logo em nossas mãos.

-Está bem. Obrigado pela presteza de vocês.

-Disponha de nós, doutor.

-Vamos ver, Gonçalves. Não sou um leitor de notícias políticas. O que você sabe me dizer a respeito desse senador ?

-É do grupo do governo, chefe. Vai ter como nos cobrar uma solução rápida para o caso. Tem como exercer pressão.

-Sim, mas sua reputação ? Já esteve envolvido em alguma marmelada ou foi suspeito disso ?

-Bem, doutor Afrânio. Parece que o homem tem um processo correndo no senado, em relação a algumas verbas aplicadas em seu estado de origem. Acho que sobre superfaturamento. Obras em rodovias.

-Você é uma enciclopédia viva, Gonçalves ! É sempre válido consultar você. Aliás, tanto Gonçalves como Google começam com a letra G .

-Pare com isso, chefe. O senhor sabe que sou encabulado. Uma hora e meia depois, o senador Álvaro Cruz chegou ao apartamento. Era um homem de seus cinquenta e tantos anos, bem vestido e bem apessoado.

Cumprimentou Afrânio com um ar de superioridade. Este retribuiu educadamente.

-Sinto muito pelo que aconteceu, senador. Deve ser muito difícil perder uma filha. E desse modo brutal !

-É verdade. Mas ela parece ter querido isso.

-Como ?

-Levando a vida que levava era quase natural um desfecho desse gênero, não acha ?

-Não sei opinar, senador. Inclusive porque não tenho filhos. Em todo caso, gostaria que me dissesse tudo o que possa me esclarecer e ajudar sobre os hábitos, as atividades dela.

-Só posso lhe dizer que, sendo a única filha mulher, ela me frustrou desde a sua adolescência. A essa altura o senhor já deve saber da conduta sexual dela, não é ?

-Realmente, sei. Mas não estou aqui para expressar minha opinião a respeito de suas preferências sexuais e sim sobre as possíveis conseqüências delas. Até porque não julgo ninguém sob esse prisma.

-Não tenho o seu nível de tolerância, inspetor.

-Desculpe, Delegado. Delegado Afrânio Moreira a sua disposição. Sou o titular da delegacia de homicídios.

-Não houve intenção de lhe diminuir, delegado.

-Bem, o que pode me dizer no sentido de auxiliar minha investigação ? Conhece muitas pessoas que eram de seu relacionamento ?

-Muito poucas. Como sabe, resido em Brasília. Não tinha muito contato com Simone.

-E sua esposa ? Seus outros filhos ? Poderiam me ajudar nesse sentido ?

-Acho muito difícil. Meus outros dois filhos se fixaram em Brasília. O relacionamento deles com a irmã limitava-se praticamente a datas como aniversários, Natal, etc, quase formais.

-É curioso isso. Mas, passemos adiante. Quando foi a última vez que o senhor esteve com ela ?

-Que relevância tem isso para a sua investigação, delegado ?

-Bastante. Ela poderia, por exemplo, manifestar receio de alguma situação ou pessoa de suas relações. Temor de alguma coisa.

-Não. Asseguro-lhe que não. E acho mesmo que se tivesse, ela não me confiaria qualquer suspeita.

-Entendo. Nesse caso só me resta esperar, tanto o laudo da perícia a ser entregue a mim ainda hoje, como o laudo da necrópsia que deve estar pronto amanhã até o meio-dia, para continuar a investigação. Imagino que o senhor permaneça no Rio por alguns dias...

-Só até o funeral, delegado. Minha mulher chegará amanhã. Espero reassumir meu trabalho no congresso assim que me liberar dessa obrigação familiar. Até lá, estarei em casa de meu irmão Francisco cujo telefone vou lhe fornecer em seguida. Quanto aos objetos pessoais de Simone, minha mulher decidirá o que fazer com eles depois que tivermos permissão da polícia para isso. Peço-lhe que me mantenha informado sobre o andamento da investigação.

-Pois não. O senhor será informado, com certeza.

Após a saída do senador, o delegado Afrânio conversava com o inspetor Gonçalves.

-Doutor Afrânio ! Esse homem é uma geladeira ambulante !

-Deixe disso, Gonçalves. Acho até que você votou nele nas últimas eleições para o senado.

-Juro que não, chefe !

-Está bem. Vamos voltar para nossa delegacia. Nosso trabalho está feito neste caso por hoje. E estou ficando com fome.O que você encomendou ao restaurante para o meu almoço ?

-Língua ao molho madeira com batatas cozidas.

-Ao molho madeira ? Que generosidade !

-Agradeça a dona Teresa, chefe. Foi ela quem liberou esse prato.

-Mulheres ! Sempre vigiando nossos estômagos. Aposto que a sobremesa será uma pêra cozida.

-Adivinhou, chefe !

-Bem, vou andando. Fique aqui e interrogue minuciosamente a faxineira. Quando voltar à delegacia quero um relatório seu.

Eram quase cinco da tarde. O relatório circunstanciado da perícia acabara de chegar por e-mail. A arma tinha sido identificada, graças ao projétil retirado do corpo da vítima. Era mesmo uma pistola de calibre 7.65.

-E agora, Gonçalves ? Nosso suspeito é uma mulher. Você acha natural que ela tenha usado uma arma com esse calibre ? Não lhe parece mais uma arma masculina ?

-Ah, não sei, chefe. Se ela é uma lésbica, acho que uma Beretta de calibre 22, por exemplo, seria muito feminina para ela.

-Ora, Gonçalves.Que psicólogo sexual você está me saindo...De qualquer forma, precisamos encontrar essa namorada da vítima o mais depressa possível. O que você está fazendo a esse respeito ?

-Bem, doutor Afrânio. Já temos as digitais de três pessoas. As da Marisete, a doméstica, conferem. Estão em lugares convencionais. Quanto às outras duas, as de mulher devem ser mesmo da suspeita. Estão na sala de estar, no quarto , num copo, mas não no banheiro onde foi encontrado o corpo da vítima. As masculinas estão num copo e nos braços de uma poltrona. Já estamos fazendo um levantamento para tentar identificá-las.

-Bom, se a mulher, no caso, for inteligente e acho que é, vai se apresentar a nós espontaneamente nesses próximos dias.

-O senhor acha isso, chefe ? E se ela estiver com medo de ser indiciada e presa ?

-Ah, não acredito nisso, Gonçalves. E lhe digo mais, ela vai se apresentar a nós acompanhada de um bom advogado criminalista.

-E o homem ?

-O homem é meu palpite, Gonçalves.

-É mesmo, doutor Afrânio ? Por alguma razão especial ?

-Por pura especulação, Gonçalves.Mas, pensando bem, o modus operandi do criminoso me parece ser mais próprio de um homem. Ou então, de um homossexual de sexo masculino.

-Nossa, chefe ! Seu cérebro voa longe ! Um homossexual masculino ?

-Quem sabe? Não se esqueça que Simone era uma consultora de moda. Falando nisso, você tem que verificar com quem e para quem ela trabalhava. O problema é que ela parece ter sido uma pessoa muito discreta.

E faça com que tragam a faxineira até aqui para ser interrogada. Quero que você o faça pessoalmente. Extraia tudo que ela puder informar sobre sua patroa e sobre o dia anterior ao crime.

A noite chegou e o delegado Afranio voltou para sua própria casa. Até então, não dera qualquer declaração à imprensa. Não iria falar por falar.

-E aí, Afrânio ? Como está indo a investigação ?

-Devagar para o meu gosto, Teresa. Ainda estamos relativamente no escuro.

-E o senador ?

-Um iceberg hermético e inteligente. Não é nada fácil tirar alguma coisa dele.

-E a mãe da moça morta ?

-Essa ainda não chegou de Brasília. Só amanhã.

-Você acha que ela será mais esclarecedora ?

-Espero que sim. O senador tinha uma evidente repulsa pelo comportamento sexual da filha. E é fechado como uma ostra. Um típico político de tendência conservadora, mesmo ainda sendo relativamente jovem.

-Algum fato novo na necrópsia e no laudo dos seus famosos peritos ?

-Da perícia, apenas o que já tínhamos. A necrópsia só amanhã por volta do meio-dia. Mas descobri uma coisa importante hoje.

-O que, meu amor ?

-Detesto pêras cozidas...

Vera Linhares era uma mulher bem bonita. Pouquíssimas pessoas diriam que era uma lésbica. Tinha uma educação e um padrão de comportamento muito discretos. Vestia-se como qualquer mulher de classe, com elegância. Tinha como fazê-lo. Era rica. Excelente amazona, tinha muitas vitórias em torneios de hipismo e representara o Brasil algumas vezes quando era junior, sempre na modalidade de salto. Formara-se em arquitetura e era sócia de um pequeno mas sofisticado escritório de projetos e decorações no Leblon. Durante sua vida até os vinte e poucos anos, estava agora com trinta e três anos, tinha sido heterossexual. Mas dois sucessivos desgostos amorosos levaram-na a assumir uma nova postura. Mas não se masculinizara, na aparência ou na forma de ver as coisas. Continuara suave e atraente. Era muito cobiçada por homens de bom gosto.

O resultado da necrópsia chegara às mãos do delegado Afrânio. Nada de diferente do que já era esperado. A morte tinha sido a conseqüência do impacto do projétil no coração da vítima. Devia ter ocorrido quase instantaneamente.

Pelas duas horas da tarde o delegado recebeu um telefonema. Do outro lado da linha, falava um dos mais conceituados advogados criminalistas da cidade.

-Muito bem, doutor Arruda. Então o senhor deseja ver-me ainda hoje.

-Sim, doutor Afrânio. Mas ainda não estarei acompanhado de minha cliente.

-Não ? E por quê ?

-Prefiro preservá-la de qualquer especulação, doutor. Ela se apresentará no devido tempo, caso o senhor julgue necessário. Esse caso vai levantar muita poeira. Minha cliente tem um nome a zelar.

-Concordo com o senhor. Mas, pelo menos, o senhor poderia me garantir, em breve, um encontro com ela em terreno, digamos, neutro. Espero que confie em meu critério e minha discrição. Asseguro-lhe que não me deixarei influenciar pela posição que o pai da vítima ocupa no governo.

-Estou seguro disso, doutor Afrânio,o seu nome goza de um respeito indiscutível em nosso meio. Então? À que horas poderei procurá-lo ?

-Se lhe for conveniente, digamos às quatro horas.

-Perfeito ! Estarei aí nesse horário.

O delegado Afrânio refletia. Sem dúvida a intervenção do doutor Arruda no caso era muito importante. Um dos mais famosos advogados criminalistas do país não emprestaria seu nome e seu prestígio a uma pessoa qualquer.

-Bom, chefe. Vamos ter uma reunião importante aqui às quatro horas. E já são duas e meia.

-Não se preocupe, Gonçalves, tudo acontecerá na hora certa.

-Puxa ! Vou ficar de fora de uma reunião dessas. É duro isso!

-Ora, assim que terminar eu vou lhe relatar tudo, prometo.

-Vamos saber o nome da suspeita ?

-Com absoluta certeza, Gonçalves. Estive pensando aqui. Para o doutor Arruda representar essa pessoa, deve haver, pelo menos, alguma circunstância atenuante a favor dela. Mas aposto que ela vai alegar inocência.

-E a arma do crime, chefe? Será que vai aparecer logo ?

-É uma boa pergunta. Eu tenho a impressão de que esse crime não é tão simples como parece. Espero desdobramentos interessantes a partir da reunião com nosso ilustre criminalista.

-O senhor tem dúvidas sobre a autoria do homicídio, não é ?

-Tenho, Gonçalves. E não acredito absolutamente em crimes de morte sem um bom motivo. Ainda não temos um. Acho que teremos surpresas.

-Mas, chefe. Como poderíamos ter um motivo se ainda nem falamos com a suspeita ?

-Discordo de você, Gonçalves. Penso que, se realmente se trata de um crime passional, alguém, já teria falado sobre discussões, brigas, da vítima com alguém. Enfim, vamos aguardar essa reunião.

-Vou ficar roendo as unhas, chefe.

-Não se enerve à toa, Gonçalves. A verdade, seja qual for, virá à luz, mais cedo ou mais tarde.

-O senhor acaba sempre tendo razão, chefe. Vou tentar me acalmar.

Às quatro em ponto, Heleno Arruda entrou na delegacia de homicídios. Era um homem de meia idade, físico cuidado e vestia-se com apuro. Encaminhado à sala do delegado Afrânio, portava-se com o desembaraço de uma velha raposa experiente.

-Prazer em vê-lo, doutor Afrânio. O senhor está mais magro? Ou é impessão minha ?

-Sua observação está correta. Perdi um pouco mais de dez quilos.

-Está muito bem. Certamente esses quilos não lhe fizeram falta alguma.

-Transmitirei sua observação a Teresa, minha mulher. Ela é a responsável direta pelo meu estado físico.

-Se me permite, é uma mulher inteligente. A maioria de nós homens engorda após o casamento. Mas, deixe-me expor-lhe a razão de minha visita ao senhor.

-Fique à vontade. Estou aqui para ouvi-lo.

-É sobre esse triste crime que ocorreu em Ipanema.

-Eu já imaginava que fosse. Posso saber a quem o senhor representa ?

-Ao senhor, em confiança, eu direi tranqüilamente. Trata-se da senhorita Vera Linhares.

-Ah, uma esportista famosa ! Uma jovem mulher da melhor sociedade.

-Sim, que se envolveu, por acidente, num drama de terríveis conseqüências.

-Não lhe perguntarei se a considera inocente desse homicídio, doutor Arruda. Conheço bem a ética dos advogados criminalistas.

-Certamente, doutor Afrânio. Mas no presente caso, asseguro-lhe que minha cliente não cometeu esse crime. Tenho a certeza absoluta disso.

-O senhor diz isso com grande convicção.

-A convicção de quem conhece bem a pessoa em questão. O senhor acreditará em mim quando falar com ela, pessoalmente.

-Mesmo respeitando seu discernimento, doutor, tenho que acreditar nela e não no senhor.

-É isso mesmo. O senhor tem razão. Mas, atrevo-me a acreditar que suas investigações acabarão por ter como alvo um homem, não uma mulher.

-Vai me fornecer algum indício, doutor Arruda ?

-Vou lhe dar uma pista, doutor Afrânio. Como o senhor já deve saber, a vítima, embora muito jovem, era uma reputada conselheira de moda.

-Estou a par disso. E então?

-Imagino que o senhor esteja considerando esse homicídio como um crime de motivo passional.

-E o senhor acha que não é ?

-Não acho, doutor Afrânio. Eu sei que não é.

-Baseando-se nas declarações de sua cliente ?

-Nelas e em fatos relativamente recentes que aconteceram com a vítima. De momento, posso lhe dizer que o crime se relacionou a negócios.

-Bem, isso é, pelo menos surpreendente para mim.

-Muito bem, doutor. Posso lhe fazer uma sugestão?

-Faça, por favor.

-Em seu lugar eu procuraria por uma pessoa, um homem, intimamente ligado ao mercado da moda feminina.

-Vai declinar o nome dessa pessoa?

-Prefiro que o senhor o ouça de minha cliente.

-Quando? Tenho que encontrar a solução para esse homicídio logo. A mídia, o senador...

-Eu lhe telefonarei amanhã, doutor Afrânio.

-Pode marcar essa reunião para amanhã mesmo à noite ?

-Estou seguro que sim.

-Então ficarei lhe aguardando.

O doutor Arruda tinha partido. Em sua sala, Afrânio conversava com o inspetor Gonçalves.

-E aí, chefe ! Me diga como foi essa conversa.

-Muito interessante, Gonçalves. Acho que foi bem produtiva.

-Ele trouxe alguma coisa de novo para a investigação?

-Trouxe o que, eventualmente, pode ser até a solução.

-Sério?

-Sério. Segundo ele foi um homem quem cometeu o homicídio.

-Um homem, não é? E a cliente dele?

-A cliente dele, ele e eu nos reuniremos amanhã. Em terreno neutro, Gonçalves. Ele afirma que ela vai me dizer o nome do assassino.

-E o senhor acredita nisso ?

-Acredito que ela vai me dar o nome de uma pessoa. Quanto a essa pessoa ser ou não o autor do homicídio, aí já é outra estória.

-E a que horas vai acontecer isso, chefe ?

-Ele vai me ligar pela manhã para combinarmos a hora.

-Que coisa, chefe ! Já pensou se for mesmo a solução do crime ?

-Não vamos ficar ansiosos, Gonçalves. As coisas acontecerão em seu devido tempo. Não pretendo me estressar antes do tempo.

-O senhor está certo, doutor Afrânio, mas eu não teria essa sua calma.

-A experiência, Gonçalves. Quase vinte anos nessa luta serviram para me ensinar alguma coisa. Bem, acho que não me resta mais nada para resolver aqui hoje. E Teresa quer jantar fora e ir ver um filme.

-Pode ir tranqüilo, chefe. Eu ficarei aqui mais umas duas horas. Qualquer coisa, eu lhe aviso pelo celular.

-Ótimo, meu amigo. Então, até amanhã.

A delegacia de homicídios estava tendo um dia agitado. Para o delegado Afrânio Moreira isso foi até favorável. Trabalhando em outros casos, ele quase se esqueceu do telefonema do doutor Arruda. Mas o criminalista ligou às onze e trinta. Como tinham planejado,combinaram um encontro para às cinco da tarde no apartamento do pai de Vera Linhares. Ele estava viajando pela Europa e isso facilitava as coisas.

Afrânio compareceu pontualmente. O doutor Arruda o esperava em frente ao edifício. Ele fez-se anunciar pelo interfone e a mulher os autorizou a subir. A primeira impressão que temos de uma mulher sofisticada é importante. Vera causou no delegado uma impressão claramente favorável. Era fina, muito bem educada e se tinha preferências sexuais por pessoas do mesmo sexo, não demonstrava isso. Pelo contrário. Afrânio achou-a suave, feminina, exatamente o oposto do que poderia se esperar. Sentaram-se os três num pequeno e bem decorado escritório. Uma empregada veio chamada por Vera e esta perguntou aos dois homens o que gostariam de beber. Em tudo a cena lembrava uma reunião informal de negócios. Mas era preciso entrar no assunto. Heleno Arruda foi cortês mas incisivo.

-Senhorita Vera. Trouxe o doutor Afrânio Moreira, titular da delegacia de homicidios aqui, na tentativa de esclarecermos, através de suas declarações, o lamentável crime do Leblon.

-Estou pronta a dizer tudo o que sei e como me envolvi nessa estória.

-Comece do princípio, por favor, senhorita.

-Claro, doutor Afrânio. Posso lhe dizer que, como o senhor deve saber, estive envolvida amorosamente com a vítima, desde o ano passado. Em outras palavras, nós duas éramos amantes.

-Mas nunca viveram juntas...

-Não. Por razões pessoais, não me convinha essa situação. Gosto de preservar minha intimidade cotidiana e minha independência.

-Entendo.

-Eu imagino que o senhor, a mídia, as pessoas em geral, acreditem que se trata de um crime passional. Ciúmes, uma possível traição...

-De fato, é o que parecem indicar as circunstâncias.

-No entanto, posso lhe garantir que o motivo desse crime foi bem outro.

-Espero que possa me demonstrar o porque disso.

-Muito bem. Talvez o senhor já tenha ouvido falar nos festivais internacionais de moda que se realizam todos os anos no Rio e em São Paulo. Há uma grande movimentação da mídia, especialmente televisiva nesses eventos.

-Sim. Estou ciente disso.

-Simone era considerada, apesar de muito jovem, uma das melhores especialistas em moda no Brasil. Sua opiniões, como consultora profissional, eram importantes no mercado. Mais de uma grife importante utilizava seu julgamento sobre um tecido, a qualidade de um design novo, os complementos para um desfile, como jóias, calçados e tudo o mais.

-Entendo, seu julgamento pesava bastante, então. Agora, me explique o que isso tudo tem a ver com o crime.

-Bem, delegado, o assassino tinha sido recusado por ela como o fornecedor dos tecidos para a confecção de toda a coleção de um dos mais famosos criadores da moda brasileira. Isso aconteceu recentemente e há poucos meses do Rio Design Show deste ano.

-A senhorita está querendo dizer que o crime ocorreu por vingança?

-Sim.

-E quem é esse fornecedor de tecidos?

-Justino Gleizes.

-E como ele teria entrado no apartamento de Simone?

-Ela deve tê-lo deixado entrar mais cedo.

-Com que objetivo?

-Bem, o senhor acreditará ou não em minhas palavras. Justino pediu uma entrevista particular a Simone. Queria conversar sobre novos tecidos que estava importando da China. Achava que ainda estaria em tempo de usá-los para o próximo desfile.

-E ela ?

-Ela conversou comigo a esse respeito. Me disse que, embora estivesse tranqüila ao ter desaconselhado o uso dos tecidos de Justino pela grife que orientava como consultora, sentia-se no dever de dar-lhe uma nova oportunidade.

-E por isso aceitou falar com ele...

-Exatamente, doutor. Eu não a ouvi marcar essa entrevista, mas, com certeza deve ter feito isso.

-Uma entrevista em hora meio tardia, não acha ? À que horas a senhorita falou com a vítima na noite do crime ?

-Liguei para ela por volta das dez. Ela me disse que estava esperando por Justino.

-Ela tinha o hábito de dormir muito tarde ?

-Quase sempre. Também acordava tarde. Era o que pode se considerar uma notívaga.

-E a senhorita ? A que horas chegou no apartamento dela ?

-Às onze da noite, talvez onze e dez.

-E ela ?

-Ela já estava morta, delegado.

-Mas como ? Ela não lhe abriu a porta do apartamento ?

-Vou ser muito franca, doutor Afrânio. Eu não costumava me anunciar. Eu tinha as chaves, da portaria e do apartamento. Tínhamos uma intimidade muito grande uma com a outra.

-Entendo. Bem, senhorita. Para o momento, já tenho suas declarações.

-O senhor não vai investigar o Justino Gleizes ?

-Vou, certamente. Bem, doutor Arruda, sua cliente já me esclareceu muita coisa. Agradeço-lhe por sua colaboração.

-Era a minha obrigação, doutor Afrânio. Tenho plena certeza de que o senhor resolverá rapidamente o caso. Desejo-lhe sucesso.

Na manhã seguinte, o delegado de homicídios telefonou para Justino Gleizes e solicitou-lhe uma entrevista. O empresário não pareceu muito surpreso. Era evidente que esperava por isso. Nesse meio tempo, Afrânio voltou a estudar os dados sobre o caso.

-Então, chefe ? A mulher esclareceu tudo?

-Não sei, Gonçalves. Ela acusou um empresário, um tal Justino Gleizes. Mas há alguma coisa que, para mim ainda está obscura.

-O senador telefonou, doutor Afrânio. Quer saber se sua mulher já pode ir ao apartamento para ver e pegar os objetos de Simone.

-Você recolheu o copo com as impressões digitais ?

-Já estão aqui, chefe. Será que esse tal Justino vai colaborar conosco ?

-Espero que sim.Ou terei que obter um mandato judicial para colher suas impressões digitais. Eu estava aqui considerando, de acordo com o laudo do IML, a hora provável do homicídio. É um espaço de tempo aproximado o que os legista me forneceram. Pena que não seja mais preciso. Do jeito que se apresenta esse horário, com essa flexibilidade, o assassino tanto pode ser Justino como a amante de Simone. Você interrogou a faxineira ?

-Já, chefe. E também colhemos suas impressões digitais. Conferem com as que esperávamos ser dela. Ela me pareceu honesta em suas respostas, mas não trouxe qualquer dado novo para a solução do crime.

O escritório de Justino Gleizes era em Botafogo,uma casa antiga e ampla que também servia como depósito para os tecidos que importava. Afrânio foi recebido educadamente pelo empresário.

-Sente-se,por favor, doutor Afrânio.Posso lhe oferecer um suco, um cafezinho ?

-Não , obrigado. Não costumo tomar nada entre as refeições.

-Bem, imagino que sua vinda aqui tenha relação com a morte de Simone Cruz.

-Suposição correta a sua.

-Em quê posso ajudá-lo a esse respeito ?

-Gostaria que me dissesse, por exemplo, onde esteve na noite do crime, entre às dez e a meia-noite.

-Não vou esconder nada, doutor. Cheguei ao apartamento de Simone por volta das dez horas. Saí as dez e quarenta, aproximadamente e deixei-a viva, bem viva.

-Entendo. O senhor tinha relações comerciais com a vítima, segundo fui informado.

-Na verdade, estava prestes a fazer um acordo com ela. O fornecimento de alguns tecidos importados por mim da China. Seriam utilizados por uma grife que ela assessorava, num desfile de modas em São Paulo.

-Ou seja, o senhor não tem como confirmar essa sua afirmação.

-Realmente. Ainda não tínhamos assinado um papel, se é o que o senhor quer dizer. Mas asseguro-lhe que o acordo estava praticamente fechado.

-E agora, Simone está morta. Uma decepção para o senhor em termos de negócios.

-Uma grande frustração. Além do meu pesar pela morte de Simone, é claro. Que morte brutal !

-Pelo que sei essa frustração foi a segunda em seu relacionamento com a vítima...

-Como assim, doutor ?

-Bem, ela tinha recusado, anteriormente, seus tecidos para dois desfiles de modas o ano passado.

-O senhor está bem informado, parabéns ! Mas não pense que ficou qualquer mágoa ou rancor de minha parte pelo sucedido. Essas coisas acontecem com relativa freqüência no mundo dos negócios. E agora ela tinha aprovado meus produtos.

-O senhor tem alguma testemunha disso ?

-Meu caro delegado. Posso entender sua pergunta. Mas veja, numa área de negócios como a moda, a concorrência é obviamente muito grande. Daí, temos que ser cautelosos, sigilosos mesmo no que diz respeito aos contratos que efetuamos. Receio que, no caso, o senhor só possa contar com a minha palavra.

-De uma certa forma, isso é uma pena.

-Por que, doutor Afrânio ? Estarei, por acaso, sendo suspeito desse crime odioso ?

-Em princípio, sim. Como aliás, duas outras pessoas das relações da vítima. Não veja nada de pessoal nisso. É perfeitamente normal numa investigação como esta.

-Mas eu sou inocente !

-Tudo bem. Espero que o resultado das investigações comprove sua inocência. Agora vou lhe fazer uma pergunta direta. O senhor não está obrigado a respondê-la se não o desejar.

-Estou pronto a responder qualquer pergunta, doutor Afrânio.

-Na noite do homicídio, o senhor bebeu alguma coisa com a vítima ?

-Sim. Bebemos juntos um uísque com gelo.

-Temos um copo com impressões digitais, achado no apartamento. Não são da vítima. Seriam suas ?

-E se forem, delegado? Beber um uísque não significa matar alguém, não é verdade? Repito, doutor, estou inocente !

-Então não se opõe a fornecer suas digitais para confrontarmos com as do copo...

-Claro que não. Ouça, delegado. Se eu estivesse em seu lugar, já teria o responsável pelo assassinato, aliás, a responsável.

-E quem seria ?

-A amante de Simone, é claro!

-Ainda uma coisa, senhor Gleizes. O senhor possui uma arma de fogo?

-Sim, possuo. Está registrada como manda a lei. Guardo-a em meu cofre na minha residência. Está a sua disposição para examiná-la. É um revólver Taurus, calibre 38.

-Muito bem. De momento, não tenho mais nada a perguntar-lhe. Peço-lhe, contudo, que não saia da cidade sem nos informar previamente.

-Então sou mesmo um suspeito?

-Digamos que pode vir a tornar-se um. Acho que deve pensar bem a esse respeito. Vamos acompanhar sua postura e seus movimentos.

Na sala do delegado Afrânio Moreira, Marisete, a faxineira, mostrava-se pouco à vontade.

-Fique calma, Marisete. O doutor delegado só quer lhe fazer mais umas perguntas.

-Mas eu já disse tudo o que sabia ! Acham que eu menti?

-Nada disso! Investigação criminal é assim mesmo.

O doutor Afrânio voltou à sala.

-Bem, Marisete. O inspetor Gonçalves me disse que você se portou muito bem no interrogatório.

-Eu respondi direito tudo o que ele me perguntou, doutor.

-Eu sei disso. Mas preciso que você me esclareça mais algumas coisas.

-Que coisas, doutor ?

-Por exemplo, você nunca assistiu a alguma discussão de sua patroa com alguém, ouviu ela brigando pelo telefone, ou celular?

-Nunca, doutor. Dona Simone era uma pessoa calma, educada. Eu nunca ouvi nada mesmo.

-Você deve ter visto ela tomar café acompanhada algumas vezes...

-Ah, isso era problema dela, doutor! Eu era apenas a faxineira. Não me metia nesses assuntos.

-Está certa. Mas agora ela está morta, Marisete. Você pode, sem receio, nos dizer o que achava da vida amorosa de Simone. Fale sem constrangimento. Não vou usar o que você disser. Seja franca comigo.

-Bom, doutor. Eu achava aquilo um desperdício. Uma moça tão bonita como era a dona Simone, namorar outra mulher.

-As duas nunca discutiam? Brigavam?

-A outra era uma gata, doutor. Nem sei o nome dela. Ela é muito cuidadosa. Quando eu atendia o telefone ela nem dizia quem era. Dizia que era uma amiga da dona Simone, não dizia o próprio nome.

-Está certo, Marisete. Estou satisfeito com suas informações. Pode ir.

O calor aumentava na rua. Ali, na sala do delegado de homicídios, o ar condicionado mantinha a temperatura nos vinte e dois graus centígrados.

-E então, Gonçalves? Já poderíamos estar com esse homicídio solucionado, não acha ? Afinal, temos dois ótimos suspeitos...

-Eu preferia que fosse um só, doutor. Não gosto de ter que escolher um.

-Escolher...uma palavra, um verbo bem colocado. Tirar um entre dois, como num par ou ímpar. Em quem você aposta, Gonçalves?

-Se for me guiar pela escolha da arma, aposto no homem, chefe. Uma pistola automática de calibre 7.65 não me parece muito feminina. E se foi usado um silenciador, pior ainda. Não é trabalho de mulher.

-É um ponto a considerar, sem dúvida. Eu gostaria de saber a hora precisa do homicídio, Gonçalves. Se a tivéssemos, já saberíamos de tudo.

-E o motivo, doutor ? Como o senhor sempre diz, um crime de morte tem que ter um motivo.

-Exatamente. Mas, tanto pode ter sido um homicídio passional como um acerto de contas por razão de negócios frustrados. Mas, acho que tenho a solução agora.

-Tem, chefe ? Por favor me diga!

-A solução, Gonçalves é largar esse problema com você e ir jantar em minha casa. A Teresa está preparando um frango assado com um molho especial e arroz à tailandesa. Ela garante que é sensacional.

-Ora, doutor! O senhor fala de um jeito! Pensei que já tinha mesmo resolvido o caso.

-Nós o resolveremos, Gonçalves, fique tranqüilo.

Já em casa, Afrânio tomou conhecimento de um recado diferente. A mulher do Senador Cruz queria falar com ele e fornecia para isso, o número de seu próprio celular.

-Que coisa curiosa, Teresa. Como foi que ela falou ?

-Bem, ela me pareceu um pouco ansiosa. Insistiu que tinha informações importantes para fornecer a você. Pediu que você ligasse amanhã, pela manhã.

-Está certo. Vou fazer isso.

-E agora ? Está preparado para provar o arroz à tailandesa ? Sabe que é um arroz aromático ?

-Por Deus, Teresa ! Espero que o aroma não seja “musk”. Tenho horror a essa essência.

-Que idéia, Afrânio ! Imagine, arroz com aroma de musk...

-Ah, nunca se sabe o que os famosos chefs inventam. Esse arroz, por acaso é afrodisíaco ?

-Não, querido. É apenas um arroz bem saboroso. O aroma é de jasmim. Vamos, vá se lavar e venha para a mesa. Separei um tinto bem suave para bebermos no jantar.

-Mulher maravilhosa! Amo você!

Às nove horas da manhã seguinte, Afrânio ligou para o celular da senhora Amália Cruz. A esposa do senador foi clara. Desejava passar uma informação que julgava importante para a investigação do crime. Perguntou ao delegado se poderia passar ainda naquela manhã, pela delegacia. Insistiu em fazê-lo cedo. O delegado concordou prontamente.

-E agora, chefe ? O que poderá a mulher do senador ter de tão importante para nos contar?

-Não faço idéia, Gonçalves. Mas acredito que seja uma informação muito significativa.

-Tomara, chefe ! Estamos precisando mesmo disso.

Amália Cruz era uma mulher muito bem educada. De há muito seu marido dependia de seu tato, sua sólida formação e sua inteligência para apoiá-lo, ajudá-lo em sua carreira política e na vida, em geral. Agora, sentada na sala do doutor Afrânio Moreira, sua postura era, ao mesmo tempo, tímida e confiante.

-Muito bem, senhora Amália. Estou a sua disposição para receber suas informações. Quero, antes de tudo, lhe dizer, além de lhe apresentar minhas sinceras condolências pelo acontecido com sua filha, que o que me confidenciar será tratado com total discrição e só será usado com a prévia autorização sua.

-Eu lhe agradeço por isso, doutor Afrânio. Queria lhe esclarecer que, talvez por eu ser mulher e mãe, sempre tive um grau de tolerância mais flexível do que o do meu marido, com respeito à escolha sexual de minha filha Simone.

-Posso entender perfeitamente, senhora. Prossiga, por favor.

-Em resumo...Simone, apesar de sua vida amorosa dirigida preferencialmente a outras moças, nunca deixou de sentir atração por alguns homens.

-Ah ! Isso parece ser um ponto importante.

-Eu acredito que sim. Quando tive esse terrível choque causado por esse bárbaro assassinato, não imaginei que iria ouvir falar nesse empresário, esse Gleizes.

-Então a senhora o conhece ?

-Pessoalmente não. Mas já ouvira minha querida filha falar nele.

-E ?

-Para encurtar meu relato, doutor, Simone me disse que estava se apaixonando por esse homem.

-Que revelação surpreendente, dona Amália !

-Sim. Eu achei que o senhor deveria saber disso. É claro que meu marido não tinha conhecimento desse fato. O senhor compreende por causa de seu temperamento, de seu caráter radical, eu era obrigada a esconder-lhe muito do meu relacionamento com minha própria filha.

-Posso compreender suas razões.

-Enfim, o que o senhor acha desse crime ? Sobre quem recaem suas suspeitas ?

-Honestamente, senhora, ainda não tenho razões, indícios, provas, que me levem a poder acusar uma entre duas pessoas. O empresário ou a namorada de sua filha. Mas acredito, baseado em minha experiência, que, ou um desses dois cairá em alguma contradição e se denunciará, ou um fato novo, um indício, trará uma luz definitiva sobre o caso. A senhora vê, é um homicídio que pode ter um motivo pragmático ou emocional, ainda tenho que determinar isso.

-Posso lhe dizer o que eu acho, pessoalmente ?

-Por favor, diga.

-Acho que essa mulher, essa decoradora tão sofisticada, matou minha pobre filha por ciúmes.

-É certamente uma hipótese das que eu havia imaginado. Eu lhe agradeço por ter me revelado esse detalhe íntimo da vida de sua filha. O que a senhora me relatou aqui vai ser de grande ajuda para a investigação.

-Poderia me dizer de que forma ?

-Bem, posso lhe adiantar, confidencialmente, que o material de que disponho agora , me leva a querer realizar uma acareação entre os dois suspeitos, já que ambos tiveram razões e possibilidade de matar Simone.

-Só posso lhe desejar sucesso, doutor Afrânio. Eu amava minha filha e desejo que seu matador ou matadora pague pelo crime impiedoso que cometeu. Um assassinato covarde, cruel, cometido contra alguém que estava indefesa e inocentemente convidou o próprio carrasco ou carrasca, a entrar em sua própria casa.

-Eu agradeço, senhora, e lhe prometo me empenhar ao máximo, dentro de minhas limitações, para solucionar esse crime.

Entregue a suas próprias reflexões, o delegado Afrânio mal percebeu a entrada do inspetor Gonçalves em sua sala.

-Chefe, o senhor tem uma calma incrível. Eu estou aqui ansioso para saber o que a mulher do senador lhe disse e o senhor parece que está sonhando acordado !

-Refletindo, Gonçalves, tentando seguir uma linha de raciocínio coerente.

-Mas e a informação, chefe? O que ela revelou ao senhor?

-Justino Gleizes, Gonçalvee. Segundo a mãe da vítima, esta estava se apaixonando por ele. A própria Simone tinha dito isso à mãe.

-Incrível, doutor Afrânio ! Mas se ela era lésbica !

-Não seja ingênuo, Gonçalves. Já ouviu falar em bissexualidade ?

-É, parece que as coisas vão acontecendo nesse homicídio para complicar cada vez mais a nossa investigação. O que o senhor está pensando em fazer ?

-Estou pensando em fazer uma acareação entre os dois suspeitos, Gonçalves. O problema é que eles terão que ser intimados a isso. Eu preferia que eles comparecessem aqui para prestar novas declarações, por livre e espontânea vontade.

-Acha possível que isso aconteça, doutor ?

-Possível, sim. Provável, acho que não. Tenho que encontrar um jeito, um modo de provocar uma reação neles, talvez inventar um indício novo, uma pista falsa...não vai ser nada fácil.

-Que situação, chefe. Dois suspeitos bem à mão e estamos sem saber exatamente como agir.

-Paciência, Gonçalves. Talvez um deles abra a guarda.

No final da tarde, o doutor Arruda ligou para Afrânio:

-Boa tarde, doutor Afrânio. Não quero lhe incomodar, mas gostaria muito de saber como foi, ou está caminhando, sua investigação sobre Justino Gleizes.

-Nada de concreto ainda, doutor Arruda. Em minha entrevista com ele, as suas respostas aos meus questionamentos foram aparentemente satisfatórias, pelo menos por enquanto.

-Minha cliente está, naturalmente, ansiosa a esse respeito.

-Receio que nada possa dizer para tranqüilizá-la, doutor.

-Então ela continua sendo uma suspeita do crime?

-Prefiro dizer que ainda não tenho um suspeito definitivo.

-Bem, de qualquer forma, agradeço sua gentileza em me ouvir.

-Por nada, doutor Arruda. Espero ter logo informações mais precisas para lhe comunicar.

O corpo de Simone Cruz já tinha sido liberado e estava sendo transportado a Brasília, onde ocorreria o enterro. A imprensa começava a se impacientar. A falta de informações da polícia sobre a investigação do homicídio levou até um repórter mais imaginativo a levantar a hipótese de um crime político, talvez uma vingança contra o senador, pai da vítima. Finalmente, Afrânio resolveu falar. Mas sua razão para fazê-lo não foi o desejo de satisfazer a mídia e sim de provocar uma reação em um dos dois suspeitos. Entrevistado por uma emissora de televisão, ele declarou que um novo indício surgira. Descobrira a origem da arma usada para matar Simone Cruz e o caso estaria solucionado em uma questão de poucos dias.

-Chefe, o senhor é corajoso ! Estamos sem qualquer pista nova e o senhor lança essa bomba na imprensa !

-É uma tentativa válida, Gonçalves, você vai ver.

De fato a tentativa provou ser válida. Um conhecido contraventor estava preso há mais de um ano. Sabendo da necessidade da polícia em resolver o crime referente a Simone Cruz e das declarações do delegado Afrânio na televisão, ele acionou seu advogado e propôs um acordo. Revelaria a quem tinha vendido a arma usada no homicídio, em troca de uma pequena progressão em seu regime carcerário.

Essa barganha não foi necessária. O contraventor foi ameaçado de ser morto no próprio presídio. Pelo celular, devidamente escondido na cela, Justino Gleizes, ligara de um orelhão. O empresário dissera-lhe que , se contasse à policia a quem vendera a pistola, podia considerar-se um homem morto. E que seu carrasco seria um outro preso adequadamente remunerado. A pressão foi demasiada para o contraventor. Apavorado, ele confessou tudo.

Há casos criminais que só chegam a ser resolvidos pelo uso da astúcia. E o assassinato de Simone Cruz foi um deles. O grande erro do matador foi acreditar nas declarações do delegado Afrânio Moreira à imprensa. A partir daí, o caso estava resolvido. Restava conhecer o motivo do crime.

Confrontado com a acusação de ter comprado uma pistola automática semi-nova de calibre 7.65, Justino Gleizes negou o fato. Mas uma investigação em que a imprensa colaborou com a polícia, verificou que o empresário estava numa situação financeira precária. O motivo do crime tornou-se evidente. Ele tentara e estava conseguindo seduzir Simone. Mas esbarrara na correção, na honestidade da vítima como consultora de moda.

Justino Gleizes, desesperado por não conseguir fechar uma negociação com uma grande grife que ela representava, matara a moça, após uma discussão em seu apartamento. Ele terminou por confessar isso à policia.

-Chefe, eu estava certo ! A arma do crime não era apropriada para ser usada por uma mulher. Ainda mais com a possibilidade de ter sido usado um silenciador.

-Você estava certo, Gonçalves. Felizmente os fatos acabaram provando isso. O caso foi resolvido a contento. E o senador não poderá dizer que somos ineficientes...

-Nem a mídia, chefe. Os jornais de hoje estão cheios de elogios ao famoso delegado de homicídios, o doutor Afrânio Moreira.

-Menos, não é, Gonçalves ? Se em nosso próximo caso dessa importância eu cometer algum erro, a mídia me crucificará sem piedade. A memória das pessoas é sempre curta.

-Seu almoço chegou, doutor Afrânio. Risoto de camarão sete barbas.

-Camarão sete barbas ? Você não sabe que a pesca desse crustáceo está proibida? Eles estão no período de acasalamento. Isso me torna cúmplice de uma contravenção.

-Pode comer tranqüilo chefe, o dono do restaurante me informou que os camarões estavam congelados há quase um mês. O senhor está inocente dessa acusação.

-Ah ! Ainda bem, Gonçalves. Eu não iria dormir tranqüilo esta noite...pode mandar trazer meu almoço !

George Luiz
Enviado por George Luiz em 11/09/2008
Código do texto: T1173615
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