Presságios

George Luiz - Presságios

O carro derrapou na pista escorregadia. Chovia muito naquela tarde de agos-to. Bruna lembrou-se então do sonho que tivera na véspera. Procurou reunir as diversas situações, as lembranças fragmentadas. Estava em outro carro.

Não era ela quem dirigia. Não, claro que não ! Era Túlio quem estava na dire-ção. Ela sentava-se no banco do carona. Estavam deixando o estacionamento do prédio. Agora lembrava-se bem. Estavam indo a um motel. Tinham pouco tempo, uma hora, talvez. Seu marido chegaria do trabalho as seis e meia. De-pois lembrou-se de Túlio, nu no sonho. Ela acariciara seu pênis com tesão e gula. E então, em pleno motel, surgido do nada, Olavo, seu marido, olhava os dois com ódio. Tinha as feições transtornadas. Ela não sentira medo, o enfrentara. Ele sacou uma arma de sua pasta de trabalho,uma pistola de ca-

libre grosso e desfechara um tiro.

Suas lembranças do sonho terminavam aí. Em quem ou no que, teria pego a bala ? Bem, não adiantava ficar pensando nisso. Bruna parou o carro no esta-cionamento do shopping.Subiu ao segundo piso onde Regina e Abigail a espe-ravam.

- E aí, amiga ? Tempo horrível, não é mesmo ?

- Nossa ! O céu parecia de chumbo esta tarde. E quanta água...Vocês me esperaram muito ?

- Eu, uns dez minutos apenas e Abigail acabou de chegar.

- Que bom ! Detesto me fazer esperar.

- E então ? Como vai o seu romance proibido ?

- Ah, vocês não imaginam o sonho que tive essa noite. Um verdadeiro pe- sadelo !

- Consciência muito culpada, Bruna ?

- Não,até que não. Pelos meus critérios, não ando fazendo nada de mais. Afinal, eu amo o Túlio. E o desejo muito como macho.

- E mesmo que não o amasse,teria o direito de fazer sexo com ele, amiga.

A mulher já conquistou há muito tempo o prazer de transar com quem desejar.

- Mesmo quando é casada, Regina ?

- Claro ! Ou você acha que nossos homens são poços de virtude, incapa-

zes de nos por chifres ?

- Bem, de qualquer modo, eu tomo o maior cuidado para não ser flagra- da, entrando ou saindo de um carro, apartamento, ou de um motel.

- Tem medo de ser chamada de vadia ?

- Ah, isso eu não admito. Sou uma excelente esposa e dona de casa, a-lém de ganhar meu próprio dinheiro. E não é na cama de um motel que eu faturo minha grana. Ralo bastante .

- Falando nisso, já terminou aquele roteiro para o Roberto ?

- Quase. Aliás o Roberto é um tesão, vocês não acham ?

- É, mas dizem que muito bem casado.

- Não seja boba, Abigail. Assim que eu entregar o roteiro a ele, aposto que ele vai me levar para a cama. E se ele for gostoso como é bonito, não vai ser por uma vez só não.

- Mesmo amando o Túlio ?

- Claro, sei separar muito bem sexo de amor.

- Olhem o garçom chegando. O que vamos pedir ?

- Com essa chuva e a umidade,acho que vou beber uma caipiríssima, vod-ca e lima da Pérsia.

- Vou seguir sua pedida. E você, Regina ?

- Acompanho vocês duas.

Na chuvosa noite de sábado, a casa de Abigail Garcia fervilhava de gente. A chuva não impedira o brilho da festa. Mulheres fascinantes e homens en- cantadores conversavam, riam, bebiam e beliscavam salgadinhos. Era o ani-versário de Edmundo Garcia, o anfitrião. Entre tantos convidados, Bruna e O-lavo estavam presentes. Fazia frio, mas isso não fora o suficiente para que a beleza morena de Bruna deixasse de ser mostrada num vestido branco muito decotado.

- Olhe só o Olavo, Irene, Não parece um galo cercando sua galinha, pro-tegendo-a dos ataques dos gaviões ?

- É uma proteção inútil, querida ! Essa sabe dar,quando quer e para quem ela quiser, é linda, não acha ?

- Acho. Mas não deixa de ser uma safada !

- Você pensa isso dela ? Por acaso, seu marido já flertou com ela ?

- Meu marido sabe o que faz, Teresa. É um macho muito bem adestrado por mim.

- Então você o considera super fiel ?

- Fiel sim, Irene. Talvez mais por conveniência. Ele tem tudo o que quer e gosta, graças a mim.

- Mas ele trabalha, não é ?

- Trabalha mais para manter as aparências. Tem seu senso de dignidade.

- Você é muito apaixonada por ele, não ?

- Não vou negar que sou. Mas ele merece.É um bom marido, um ótimo pai

e além disso, com toda essa pinta de machão, faz tudo o que eu quero.

- Imagino que inclusive na cama...

- Principalmente na cama, querida. Ele me realiza muito como fêmea. Olhe, aí vem o Túlio Sampaio.

- Eu já tinha visto. Bastou seguir a direção do olhar da Bruna...Essa não consegue ocultar muito que está apaixonadíssima por ele.

- E o Olavo ?

- O Olavo, se quiser ficar com ela, vai ter que se conformar com isso. É um preço até razoável para ter uma mulher linda como ela.

- Você acredita em presságios ?

- As vezes, por que ?

- Porque acho que o casamento do Olavo com a Bruna ainda vai terminar em tragédia.

- Tragédia com direito a noticiário de TV e mídia impressa ?

- Pode zombar, amiga.Só não venha me dizer depois que eu não lhe avisei com antecedência.

- Não concordo com você. Se no inicio do século vinte e um,homens per-tencentes ao assim chamado society, matarem as esposas que lhes fo-rem infiéis, teremos um bom número de animados velórios...

Um homem bonito, de seus trinta e poucos anos, chegara até elas.

- Estavam falando de velórios em meio a uma festa como essa ?

- Nossa ! Que boa audição você tem, Túlio.

- Obrigado. As vezes isso é bom, as vezes nem tanto. Já lhes contei o que aconteceu com a Rosana ?

- Não ! Conte agora.

- Bem, ela estava com um amigo num motel e ouvia as vozes de um casal no apartamento contíguo.

- E ?

- Ela reconheceu a voz do próprio namorado.

- Bem, mas ela também estava com culpa no cartório, não é ?

- Segundo ela, não. Ela acha que pode e deve variar de parceiros de vez em quando, mas seus namorados, nunca.

- E que moral podemos tirar dessa pequena estória ?

- Nenhuma. Apenas a confirmação do que eu disse agora mesmo.

- Acho que bem pior teria sido um flagra visual.

- Num motel realmente bom seria muito difícil. A privacidade e a seguran- são perfeitas.

- Falando sobre você agora. Como vai de amores, Túlio ?

- Ah, eu sou um homem tranqüilo. Nada de mais a declarar.

- Tranqüilo ou muito discreto ?

- Tranqüilo, Teresa, digamos que navego em águas paradas.

- Não é bem isso que se comenta por aí.

- Comentários...o que seria de vocês mulheres se não tivessem o que co-mentar, baseadas em fatos ou meras conjeturas.

- Então acha que somos todas umas fofoqueiras ?

- Digamos que vocês fazem parte de uma seita.

- E que seita é essa ?

- A ARA .

- Nunca ouvi falar dessa seita.

- Nem eu, Irene. Por que não nos esclarece , Túlio?

- É uma seita bem brasileira. A Associação das Repórteres Amadoras.

- Debochado !

- Vocês já provaram as coxinhas de frango com catupiry ? Estão uma delicia, quentinhas, saborosas.

- Pensei que você preferisse outras coxas.

- Que maldade, Teresa, o Túlio acabou de declarar que sua vida é tranqui-la, quase monótona.

- Sei. É provavelmente por isso que uma certa morena de vestido decota-do, branco,não tira os olhos de nós três,mesmo estando junto do marido dela. Estaria vigiando alguém ?

Duas horas depois, a festa estava terminando. Alguns casais voltavam para casa. Outros tinham resolvido fechar a noite em boates com musica ao vivo.

E alguns iam transar, em apartamentos ou motéis. Bruna e Olavo estavam no carro, rumando para casa.

- Você está nervoso. Não gostou da festa ?

- Não são as festas que me deixam inquieto.

- Não ? E o que é , então ?

- Acho que você sabe muito bem. Ou terei que explicar ?

- Olhe, se é ciúme, não se justifica. Passei a noite toda junto de você. Só fui uma vez ao toalete e mais nada.

- Não se faça de santinha, Bruna. Pensa que eu sou cego ? Você, pratica-mente não tirou os olhos do Túlio.

- Ora, você está obcecado, querido.

- Não me venha com essa !

- Ouça. Se eu quisesse trair você, isso não seria problema. Você passa os dias trabalhando fora de casa. Tem sorte por eu não querer.

- Você está diferente comigo, Bruna.

- Em que ? Continuo a ser uma boa dona de casa, apesar de meu traba-lho. Você me tem na cama quase sempre que quer. Só não posso é, por exemplo, deixar de ficar menstruada uma vez por mês.

- Não seja vulgar !

- Ah,mas você gosta que eu seja um pouquinho vulgar quando falamos de

sexo, Olavo.Isso te excita, não é mesmo ? No fundo, vocês homens gos-tam que sejamos putinhas, desde que exclusivas de vocês.

- Não fale assim ! Eu te amo muito !

- É ? E seu amor por mim não é suficiente para encarar qualquer coisa ?

- Como assim qualquer coisa ?

- Uma transadinha fora, por exemplo ...

- Você deve estar louca para me perguntar isso !

- Cuidado ! As ruas estão escorregadias. Não se desconcentre nem corra.

- Outra coisa. Por que não temos um filho até hoje ? Estamos casados há mais de três anos.

- Essa agora foi demais ! Você está cansado de saber que não posso ficar grávida. Tenho o útero virado, sei lá. Já tentei vários tratamentos.

- Essa desculpa é muito prática, não acha ?

- Não ! Não acho. Sou mulher. Gostaria muito de ter filhos.Não posso é lu-

tar contra minha própria constituição orgânica. E agora chega desse pa-

po ridículo. Quero chegar em casa e dormir. Acho que bebi e comi um

pouquinho além da conta. Vamos ! Me leve para casa.

O interfone de Roberto Fonseca soou em sua mesa.

- Diga, Cristina.

- É a senhora Bruna Azevedo, Roberto. Está aqui para lhe falar.

- Faça-a entrar, por favor.

- Como vai, querida ? Sente-se, por favor.

- Tenho o roteiro pronto para você, Roberto. Aqui está.

- Ah ! Estava só esperando por isso. E pelo prazer de rever você, é claro !

- Obrigada. Espero que seja de seu agrado. Mas,qualquer coisa, podemos

modificar, a seu critério.

- Acho difícil isso acontecer. Você é a melhor roteirista que já tivemos a-té hoje.

- Estou sensibilizada. Acho que sei a razão de suas palavras.

- Sabe ?

- Sei. É que conheço muito bem suas idéias sobre cinema e TV. Além dis-so,a continuidade de meu trabalho provavelmente me trouxe algum pro-gresso.

- Bem, só queria dizer que você escreve muito bem. É detalhista sem ser cansativa e a qualidade de seus diálogos é bem acima da media. Ou se-já, para a Cinevisão, você é a roteirista perfeita.

- Será que vou ter um aumento ?

- Você está brincando, eu sei. Mas se me apertar contra a parede, terei que ceder. Não posso me dar ao luxo de perder você para algum concor-rente. Bom, tenho um novo trabalho para você.

- Tudo bem, mas me dê uma semana de intervalo. Preciso de um pouco de tempo para mim.

- Claro ! Está pensando em viajar ? Com o Olavo ?

- Não. Estou pensando em me divertir mais, apenas. Relaxar e gozar...

- Seria muito atrevimento meu perguntar com quem ?

- Para você eu posso dizer. Com o Túlio.

- Que felizardo ! Você não tem nenhum medo que seu marido descubra is-so, Bruna ?

- Acho que ele já sabe há algum tempo. Fica sempre me sondando e qua-se me acusando disso.

- E você não se preocupa ?

- De que adianta eu me preocupar, Roberto ? Há maridos mais ciumentos do que outros. Mas uma coisa eu posso lhe afirmar.

- O que ?

- Uma coisa eu aprendi há muito tempo. É como ter cavalos. Se você se preocupar demais com o estado físico deles, aparecem logo mancando,

rejeitando a ração, em resumo, quem procura acha.

- Você sempre gostou de cães e cavalos, pelo que sei.

- E muito ! São melhores, mais fieis e cúmplices nossos do que as pes-soas. Mesmo as que nos amam ou parecem nos amar. Quando são ou parecem maus, viciosos, é porque foram maltratados quando eram filhotes, ou potros e potrancas domados com brutalidade no caso dos equiinos.

- E os seres humanos ?

- Nós ? Nós somos maus por natureza, Roberto. Podemos ter algumas vir-tudes ou qualidades.Mas quando ficamos sob alguma forma de pressão, não se iluda. Reagimos como feras, animais de maus instintos.

- Que julgamento severo, o seu sobre a espécie humana...

- Não me entenda mal, Roberto. Adoro ser mulher, pertencer a essa coi- sa que chamam de humanidade. Mas nem por isso deixo de ter meus parâmetros.

- E um poder maior, um ser superior, Deus ?

- Ah, esse está muito desgostoso, certamente com a criatura que criou num momento de descuido.

- Você é terrível, Bruna !

- Não creio. Mas sei que sou desejável, concorda ?

- E como ! Falando nisso, quais são as minhas chances com você ?

- Neste exato momento, nulas, mas quem sabe algum dia ?

- Por favor, Bruna ! Não me remova de sua fila de espera...

- Não se preocupe. Não costumo retirar ninguém dessa fila. Pelo contra- rio. As vezes acrescento...

Com o mês de setembro, chegou a primavera. O Rio, como o resto do país, ansiava por chuva. A seca era uma ameaça constante. Recrudesciam os co- mentários sobre o aquecimento global e já se falava em espécies inteiras condenadas à extinção, derretimento das calotas polares, crescimento das marés, um sem número de horrores.

Bruna estava envolvida na criação de um roteiro sobre um possível fim do mundo.

- E aí, amiga ? O mundo vai mesmo acabar ? Ou são apenas presságios pessimistas ?

- Acho que um pouco de cada coisa. Mas, se eu fosse você, não perderia tempo.

- Não ? O que você faria ?

- Daria logo para o Pedro. Todo mundo sabe do seu tesão por ele.

- Que é isso, Bruna ? Sou uma mulher casada e séria !

- Nunca ouviu dizer que “ lavou, tá nova “ ? Seu marido nem precisa sa- ber da verdade. Há quem ache que escondido é mais gostoso ainda.

- Nossa ! Você é uma conselheira perigosa.

- Apenas bem intencionada. Me diga, Lucinha,o que você faria se soubes-se que o mundo iria acabar amanhã ?

- Ah, mas não vai mesmo.

- Responda a minha pergunta. O que você faria ?

- Levaria meus dois filhos para almoçar fora e depois ao cinema. Depois, os levaria para se encherem de sorvetes e guloseimas.

- Sim, mas e você mesma ? Não ganharia nada ?

- É, confesso que daria uma bela trepada com o Pedro.

- Hum. Ainda bem que você confessou isso. Mas, por que não faz isso lo-go, independente do mundo acabar amanhã ou não ?

- Porque me falta coragem, Bruna.

- Coragem a gente arruma na hora, amiga. É apenas uma questão de que-rer muito alguma coisa.

- Me conte uma coisa. Você já teve muitos amantes depois de casada ?

- Nem tantos. Uns quatro ou cinco.

- E o primeiro deles ? Foi muito difícil você se decidir a transar com ele ?

- Muito ! Levei mais de dez minutos para me resolver...

- Qual, Bruna ! Só você mesma...

- É o momento, Lucinha. A vida é feita de momentos. Se a gente hesitar muito acaba perdendo as oportunidades.

- Você nunca sente remorsos ?

- Com certeza sentiria se as trepadas não fossem bem gostosas. Mas, co-mo isso ainda não aconteceu comigo, minha resposta é não. Só sinto o prazer de transar e mais nada.

- Você é bem franca admitindo isso.

- Sou honesta, comigo mesma e com os outros, amiga. E mais, sentimen-to de culpa é apenas um mecanismo cínico.

- Sabe de uma coisa ? Estou começando a achar que você tem razão.

- Com certeza ! E me acredite, todo homem, no fundo sente prazer em ser corneado. Sente-se mais humano, mais vulnerável. E quando suspeita disso, quando começa a sentir uma coceirinha na testa, passa a capri- char mais na cama com você. Quer se sentir superior ao rival.

- Ai, Bruna ! Conversar sobre essas coisas com você é um perigo !

- Que nada, amiga. Siga meu conselho. Vá fundo no seu relacionamento com o Pedro. E tome cuidado para seu marido ficar apenas na dúvida. Você passará a ter dois machos caprichosos na cama com você.

- É uma idéia tentadora, Bruna. Acho que vou me decidir a fazer isso.

O celular do doutor Pedro Mendonça tocou.

- Alo ! É você, Lucinha ? Que surpresa deliciosa !

- Você está bem ?

- Estou sim e você, querida ?

- Bem, eu tive um papo com a minha amiga Bruna hoje de manhã.

- Sei, e aí ?

- Aí, conversamos muito sobre relacionamentos.

- Relacionamentos como o nosso ?

- É. Acho que tomei uma decisão.

- Acha, ou tomou, de verdade ?

- Tomei sim. Estou te ligando para marcar um encontro. Quero ir a um motel com você.

- Maravilha ! Hoje mesmo, meu amor ?

- Se você puder, sim.

- A que horas e onde pego você ?

- As duas, em frente ao Bob´s . Pode ser ?

- Nem que fosse o Bob´s da Sibéria, meu anjo. Estarei lá as duas em ponto.

Presságios são coisas estranhas, inexplicáveis. Bruna tinha sonhado com seu marido a flagrando com Túlio num motel. O fato é que isso aconteceu com sua amiga Lucinha. Ela saia, feliz e saciada do Love´s Nest no carro de Pedro, quando percebeu que, num carro que entrava,seu próprio marido che- gava com uma loura. Felizmente ele não a percebeu. Assim que saíram das imediações do motel,ela enlaçou o pescoço de Pedro e beijou-lhe a boca com ardor. Sentimento de culpa era uma burrice mesmo. Bruna tinha toda a razão.

Lucinha chegou-se mais a Pedro e suspirou feliz.

George Luiz
Enviado por George Luiz em 29/09/2008
Código do texto: T1202837