Noite traiçoeira

George Luiz - Noite traiçoeira

No escuro, o corredor parecia interminável para Aurélio. Ele caminhava vagarosamente, temendo esbarrar em alguma coisa capaz de faze-lo cair. Aquela noite começara bem.

Os quatro amigos, no bar do velho hotel não tinham se encontrado por acaso. Era hábito deles se reunirem às sextas- feiras, no início da noite para tomarem um drinque juntos e comentar os jogos de futebol do fim de semana. O céu estivera nublado desde a manhã. E a tempe-ratura começara a baixar pelo meio da tarde.

Nabuco, o mais velho da turma, foi o último a chegar. Seus amigos, como sempre faziam, brincaram com ele:

- Você ainda acaba sendo o presidente dessa empresa, amigo !

- Não seja bobo,Eduardo. Não tenho nem nunca terei essa pretensão. Apenas gosto de cumprir minhas tarefas no tempo devido.

- Pois eu acho é que você anda apaixonado por sua secretária.

- Não julgue os outros por si, Armando. Você é o don Juan do nosso pequeno grupo. E então ? Ainda não encomendaram suas bebidas ?

- Não, mas vamos encomendar imediatamente. Esta noite parece que ficou mais fria de repente.

Duas rodadas de drinques e alguns salgadinhos mais tarde,os amigos pareciam bem relaxados. Tinham discutido a Copa do Brasil, o Brasileirão e a Libertadores. Embora torcessem por times diferentes, nunca brigavam sobre futebol. Nem por qualquer outra razão. Eram o que poderia ser chamado um grupo sólido e bem equilibrado.

Estavam se preparando para deixar o hotel quando o tempo pareceu estremecer em expectativa. De uma mesa, ao fundo, uma jovem mulher ergueu-se e caminhou em direção à saída. Mas ao passar pela mesa deles, hesitou, olhou como atordoada à sua volta e teria caído, com certeza, se Aurélio não a amparasse. Era uma moça loura de longos cabelos lisos, bem vestida, discretamente maquiada.

Sentada na cadeira que Aurélio lhe cedera,pareceu querer dizer alguma coisa, mas de sua boca só saíram sons inarticulados.

- Vamos, vamos, a voz de Aurélio era calmante, persuasiva, diga-nos o que lhe aconteceu ?

Achando que a moça estava um pouco embriagada, Nabuco pedira ao garçom um café sem açúcar, mas ela o recusou.

- Quer nos dizer, pelo menos, seu nome ?

- Laura. Meu nome é Laura.

- Ótimo ! O meu é Aurélio e meus amigos são Armando, Nabuco e Eduardo. Você não está se sentindo bem, não é ? O que podemos lhe oferecer ?

- Não precisam se incomodar. Foi um mal estar. Estou bem agora.

- Mesmo assim, não quer que a levemos a um medico ?

- Não, não ! Garanto-lhes que não estou sentindo nada. Preciso voltar para casa.

- Está dirigindo um carro ?

- Não. Cheguei até aqui de táxi. Podem me chamar um outro ?

Os quatro amigos se entreolharam. Eram todos bem educados e prestativos. Nabuco e Eduardo eram casados e os outros dois, solteiros.Eduardo foi incisivo :

- Nem pense nisso. Um de nós vai conduzi-la à sua casa.

- Claro, reforçou Armando. Ainda mais com esse tempo frio que está fazendo. E logo vai começar a chover.

Assim, ficou decidido que Aurélio levaria a moça até sua residência.

No carro de Aurélio, Laura pareceu relaxar.

- Onde você mora ?

- Na Barra. Um pouco fora de mão para você, não é ?

- De jeito algum. De qualquer modo, ainda é cedo. Vamos lá.

O percurso era feito em silêncio. Aurélio era um motorista cuidadoso. Dirigia com tranqüilidade. Normalmente teria procurado puxar uma conversa, mas alguma coisa lhe impedia de faze-lo.Passaram por São Conrado e logo chegavam à Barra. Seguindo as indicações de Laura, ele aproximou-se de uma rua que não conhecia. Entrou por ela.

- Ali, por favor, aquela casa com paredes cor de tijolo.

- Tudo bem.

A casa era de tamanho médio, muito pouco iluminada, o terreno arborizado. Aurélio parou o carro e fez menção de saltar e abrir a porta do carona. A moça o deteve.

- Espere! Estou com medo!

- Medo ? Medo de que, Laura ?

- Medo de entrar em casa.

- Me diga, por favor, por que tem medo de entrar ?

- Ah, você não sabe...a noite traz coisas estranhas.

- Pode me explicar que coisas são essas ?

- Não sei. Só sei que tenho medo.

- Vamos ! Não há sentido em se temer a noite só porque ela é escura. Quer que eu entre com você?

- Não! Eu não poderia lhe pedir para fazer isso !

- Acho que você está nervosa. Aconteceu alguma coisa diferente antes de você sair de casa e ir ao bar do hotel ?

- Não, mas estou com um pressentimento, sei lá...

- Você mora sozinha ?

- Tenho meu irmão, mais velho que eu, mas ele nunca está em casa. Não há qualquer luz acesa. Ele, com certeza, ainda não chegou.

- Me diga então o que você quer que eu faça.

- Bom, eu ia te pedir para entrar primeiro e, se estiver tudo bem eu entro logo depois.

- Está bem. Me dê sua chave então. Só que não tenho uma lanterna comigo.

- Não vai precisar. Há um interruptor à direita, logo no início do corredor.

Aurélio abrira a porta com a chave que Laura lhe fornecera. De fato, havia um interruptor onde ela lhe indicara. Ele o pressionou mas luz alguma se acendeu.

E então ele iniciara sua cautelosa caminhada pelo corredor escuro. Sentiu-se desequilibrado quando um de seus pés tocou alguma coisa mole. Instintivamente, Aurélio abaixou-se tentando ver o que era. Horrorizado percebeu que era um corpo humano. Nesse instante, alguma coisa, um objeto duro e rombudo chocou-se contra sua nuca. Ele perdeu os sentidos.

Se havia alguma coisa capaz de irritar o delegado Afrânio Moreira, era ter que comer rapidamente. Uma refeição, pensava ele, devia ser sempre uma pausa em meio ao dinamismo obrigatório de um dia de trabalho. E o almoço era uma ocasião , por mais que a comida fosse simples, que exigia um certo requinte.

- Você não tem mesmo a menor consideração pelo meu estômago, Gonçalves !

- O que foi, chefe ? Seu almoço não está bem aquecido ?

- Ora, não seja cínico ! Você sabe muito bem que eu detesto comer com você entrando e saindo como uma ratazana desorientada da copa da delegacia que já é pequena.

Os dentes do inspetor Gonçalves arreganharam-se num sorriso divertido. Aquele seu chefe era mesmo uma figura. Há muito tempo trabalhava com ele e já se habituara ao seu jeito peculiar de ser.

- Vamos, Gonçalves ! Já que se decidiu a estragar meu almoço, diga logo o que você quer.

- É esse caso do assassinato na casa da Barra, chefe. Já tenho o laudo provisório da perícia.

- Em três dias ? Não tenho mais dúvida. Você anda namorando aquela perita morena de óculos de aros de tartaruga...

- Pare com isso, chefe. O senhor vai acabar me deixando enrolado com minha mulher.

- Bem que você merece isso, mas não o farei, Sua mulher que é uma ótima pessoa, não sabe com que tratante se casou...

- Que é isso, chefe ?

- Bom, mas o que diz o laudo ?

- O laudo diz que a morte foi causada por uma hemorragia interna, causada por um instrumento cortante, a faca encontrada no local. Encontrada, como o senhor já sabe, em uma das mãos do nosso suspeito. É claro como água.

- Um tanto claro demais no meu entender.

- Lá vem o senhor, chefe. Não gosto nada quando o senhor vem com suas hipóteses para complicar um caso simples.

- Caso simples, meu amigo ? E o motivo, o motivo para o crime ?

- Eu tenho uma teoria para isso, chefe. Foi legítima defesa. A vitima, no escuro, atacou seu matador com uma faca. O homem se esquivou, tomou-lhe a arma e aplicou-lhe um golpe certeiro.

- Ótimo, perfeito. E a marca de pancada na nuca do matador ? Quem a desferiu ? O morto não foi, certamente. Não, Gonçalves, o caso não é assim tão simples. E a moça, essa Laura, não está nos ajudando nada a solucionar o caso. Acho até que está nos dificultando, quem sabe propositadamente ?

- Mas, chefe, o morto era irmão dela !

- Justamente, meu amigo. E caso ela tenha alguma culpa no ocorrido, ele não tem mais como prejudica-la.

- Chefe, o senhor não está rico porque não quer. Bastaria escrever uma série de roteiros para a televisão. Seriam o maior sucesso. As pes-soas não são assim tão complexas quanto o senhor as faz.

- Você acha mesmo ? Pois devo estar muito errado se você pensa que essa morte foi tão simples assim.

A prisão temporária de Aurélio Cintra não tinha sido pedida. A promotoria achava, com boas razões, que um arquiteto com bom nome na cidade e sem qualquer ocorrência policial em seu passado, merecia o direito de defender-se em liberdade. Principalmente porque o caso trazia em seu bojo, vertentes contraditórias.

Era sábado, uma tarde morna se espreguiçava lentamente.

No confortável jardim de inverno de sua casa, Afrânio conversava com Teresa, sua mulher.

- Escute, meu amor: Que tal se nós fossemos a um cinema esta noite ? Andei lendo o jornal e há pelo menos dois filmes para vermos.

- É mesmo ? E qual deles você acha que é o melhor ?

- Bem, conhecendo você como conheço, não tenho dúvida de qual deles você preferirá. Porque o outro é uma comédia romântica.

- Está insinuando que não sou romântico ?

- Não, Afrânio mas basta eu lhe dizer o nome do primeiro.

- Qual é ?

- A morte ataca sem aviso.

- Hummm, tem razão. A que horas é a sessão ?

Na confortável escuridão da sala de projeções, Teresa apertava o braço de seu marido. Na tela, uma figura sinistra caminhava lentamente com uma pistola segura por sua mão esquerda. De súbito, uma porta abriu-se e a luz que ela revelou mostrou uma cena aterrorizante. Teresa cravou as unhas no suéter cinzento de Afrânio. Mais tarde, sentados à uma das mesas de seu bar favorito, o casal bebericava , Teresa um kir e Afrânio um manhattan bem preparado. Uma pequena travessa com welsh rarebits ainda quentinhos enfeitava a mesa.

- E aí, meu amor ? O final do filme conseguiu surpreender você ?

- Não sou um super cérebro, Teresa. Me surpreendi sim.

- O assassino do filme usou uma faca. Alguma coisa a ver com esse crime da barra que você está investigando ?

- Uma única coisa. No caso da barra, o rapaz que teria desferido

- a facada é canhoto. A verdade é, como nos dizia Oscar Wilde, que a vida imita a arte, muito mais do que a arte imita a vida.

- E daí ?

- Daí, que acho que talvez eu possa esclarecer esse assassinato tão ardiloso que andamos investigando.

- Vai me contar logo a solução, não é ?

- Não, minha querida. Ainda tenho que encontrar o motivo do crime e encaixar alguns detalhes dessa estória interessante.

Aurélio Cintra estava, mais uma vez, reunido com seus amigos no bar do velho hotel. Duas semanas tinham se passado desde aquela noite que mudara sua vida. Mas a vida, essa continuava, indiferente aos destinos e desígnios criados pelos humanos.

- Então, Aurélio ? Como vai seu trabalho ?

- Sabe, Nabuco, as pessoas parece que sentem uma curiosa forma de atração mórbida por um matador.

- Ora, pare com isso, você não é um matador.

- Eu sei disso, vocês que são meus amigos sabem disso. Mas quem me conhece pouco ou mal não tem essa mesma certeza. Nesses últimos cinco ou seis dias, recebi duas encomendas de projetos, ambas de clientes novos.

- Bem, pelo menos nisso você está lucrando...

- Eu sei, Armando, mas preferia continuar um arquiteto normal, sem essa espécie de aura sinistra ao redor de mim.

- Isso vai passar, amigo, assim que esse delegado esclareça tudo. Ele acredita, como nós em sua inocência ! Vamos, vamos pedir mais uma rodada !

Laura parecia um pouco aflita. Conversava com um homem moreno, bem vestido, as unhas de suas mãos visivelmente cuidadas por uma manicure.

- Mas você não acha que eu devo cuidar disso logo ?

- Calma ! Espere passar mais de um mês daquilo que ocorreu. Conheço bem esse delegado de homicídios. Ele não acredita que o sujeito, esse arquite-to tenha cometido o crime.

- Mas eu preciso do dinheiro, Otavio. Estou quase sem um centavo, vivendo do meu cheque especial. Além disso, seria muito difícil vender a casa de-pois do que aconteceu nela.

- Vá por mim e espere mais umas duas semanas. Afinal, depois que você re-ceber o seguro de vida de seu irmão, teremos uma vida muito melhor.

- Não gosto nada de ver você jogando para ganhar dinheiro. E namorando essas ricaças decadentes para se sustentar.

- Que é isso, meu amor ? Não vai ficar com ciúme a essa altura, não é ? E lembre-se que eu só fiz o que fiz com seu irmão, por causa de você. Eu nunca tinha imaginado que chegaria a matar alguém por amor a você.

- Desculpe, meu amor. Ando muito nervosa.

- Tudo bem, tudo bem, acalme-se que logo estaremos com muita grana pa-ra fazermos tudo que você quiser.

Vinte dias tinham se passado. Sem novas provas ou evidencias, a promotoria hesitava em indiciar Aurélio. Finalmente, Laura tinha apresentado o seguro de vida de seu irmão `à companhia seguradora. Naturalmente, por tratar-se de uma morte por homicídio a companhia hesitou um pouco para efetuar o pagamento. Afinal, a única beneficiária não estava totalmente isenta de suspeitas.

Não era possível evitar por muito tempo o pagamento do seguro à beneficiaria. E por fim, Laura viu-se na posse do dinheiro, uma soma bastante elevada. Não foi muito discreta a esse respeito. Comprou um ótimo carro, roupas caras e co- meçou a dar presentes e dinheiro a Otavio. Uma noite, estavam juntos na casa onde ocorrera o crime, Laura pareceu ter ouvido um grito abafado. Agarrou-se ao tronco nu de seu amante.

- Você ouviu isso, amor ?

- O que, Laura ?

- Esse grito. A voz era a do meu irmão !

- Vamos, você está nervosa a toa. Não ouvi grito algum.

- Não quero ficar aqui dentro. Vamos sair.

- Está bem, você me parece apavorada sem razão.

- Mas a voz...

- Que voz ? Os mortos não voltam, Laura.

- Quero sair daqui !

- Está bem. Vamos nos vestir e pegar o carro.

Num bar ali próximo, Laura pareceu acalmar-se. Pediu uma bebida bem forte.

- Vai mesmo beber isso ? Você não gosta de drinques fortes...

- Ah, Otavio, ando com meus nervos em frangalhos. Se pudesse faria uma viagem com você. O que acha da idéia ?

- Acho que precisamos vender sua casa e comprar um apartamento peque-no no Jardim Botânico ou no Leblon. Depois a gente viaja.

- Não entendo como você pode ser tão calmo.

Os dois saíram pouco depois do bar e retornavam à casa. Laura dirigia em silêncio. Finalmente chegaram. Otavio saltou do carro e foi abrir a porta que protegia a entrada para a garagem. Laura engatou a primeira marcha. Atrás dela, dentro do veículo, ela pareceu sentir uma corrente de ar, gelada. Ela abafou um pequeno grito de medo e acelerou. Otavio tentou pular para um lado mas não houve tempo. O carro atingiu-o em cheio. Ele caiu. Uma das rodas trazeiras passou sobre seu tronco. Laura freou e correu para ele . Aga-chou-se e pegou sua cabeça entre as mãos. De um dos cantos da boca escor-ria um filete de sangue. Otavio estava morto.

Laura Travassos foi indiciada por homicídio culposo. Respondeu ao processo em liberdade. Mas não chegou a ir a julgamento. Na manhã de uma quinta feira cinzenta, sua empregada encontrou-a pendurada pelo pescoço no lus-ter de bronze de seu quarto. A justiça, como costumava dizer o delegado A-franio Moreira, as vezes trilhava estranhos caminhos.

George Luiz
Enviado por George Luiz em 04/11/2008
Código do texto: T1265216
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.