Alguém mora no quadro

_ Ele está aqui! Eu quebrei o quadro sem querer...

Estas foram às palavras de Clariza ao telefone antes da abrupta interrupção.

Wagner chegou na casa da namorada cerca de dez minutos depois da ligação estranha; a porta estava aberta, ele chamou por ela, mas não houve resposta alguma então entrou rapidamente, no chão da sala vários pedaços de um quadro de gesso estavam por toda à parte.

Nos últimos dias, Clariza esteve absolutamente obcecada em um trabalho que segundo ela seria o primeiro grande sucesso de sua carreira como pintora; ela havia conseguido um quadro com um colega que voltara a pouco de uma viajem a Leningrado, atualmente chamada de São Petersburgo, na Rússia. Ela estava pintando um outro quadro semelhante ao que recebera do amigo, pois que o original não era apenas pintado como os quadros normais, mas sim esculpido e pintado.

A jovem ficou apaixonada pela pintura original russa, muito embora não houvesse nenhuma menção na obra sobre quem era o seu autor. Segundo o antigo dono da obra, o amigo de Clariza, aquele quadro tinha pertencido a um mítico morador da antiga ex-cidade soviética chamado Ivanovy Monsenhat, teria sido ele um pintor e escultor genial que morreu de forma inexplicável; a lenda também dizia ser ele um nigromante.

Clariza não acreditava em nada disso, só sabia que o quadro era espetacular.

Wagner passou as últimas duas semanas ouvindo pacientemente a sua bela namorada falando de o quanto era difícil reproduzir a técnica empregada na confecção do original, falando que as tonalidades de escuro pareciam possuir um mágico dégradé; Clariza passava horas tecendo comentários sobre a beleza, a nitidez, a vivacidade e todos os outros atributos que aquela “esculura-pintura” possuía.

Aquilo já estava um tanto quanto fora do comum, mas Wagner sempre apoiava as idéias da namorada, pretendiam anunciar seu noivado em breve para os pais da moça, ambos artistas plásticos de certa fama. O jovem e a moça se conheceram por meio de uma amiga em comum, e já estavam juntos fazia um ano e meio; Wagner trabalhava num banco, acabara de receber uma promoção; Clariza era uma aspirante à revelação no seleto mundo da arte, muito por influência dos pais, mas a menina tinha um talento inegável. Mas mesmo assim não estava conseguindo realizar sua tarefa particular de reproduzir o quadro russo.

Por vezes ela chamou o namorado para ver o quadro e a pintura dela, aos leigos olhos de Wagner pareciam exatamente iguais, porém ela dizia que estavam completamente diferentes.

O quadro original era feito num único bloco de gesso esculpido, todo trabalhado com detalhes de flores e trepadeiras nas cores douradas e pretas formando uma moldura inusitada; no mínimo.

A moldura e a tela eram na verdade uma coisa só não havia separação entre elas exceto pelo fato de que a tela era esculpida de forma diferente; ela retratava em primeiro plano um castelo medieval gótico sobre uma alta encosta rochosa; abaixo da encosta à direita da tela existia uma continuação de floresta incrustado junto as rochas.

Uma pequena rua divide a peça bem no meio, com uma igreja também gótica e muito sombria ao fundo. À esquerda do quadro, uma vila camponesa com poucas casas amontoadas umas sobre as outras e por trás das casas se iniciava a floresta.

Em segundo plano atrás da igreja, do castelo e da floresta fica uma baia ladeada pela direita, por duas ilhas e pela esquerda, mar aberto. Dentro da baia havia um navio pintado de vermelho com duas velas grandes e brancas e uma flâmula também vermelha.

Por fim em terceiro plano o céu noturno com uma grande lua cheia e amarelada despejando claridade soturna sobre todo o resto, com nuvens tentando, em vão, cobri-la. A claridade da lua era tão perfeitamente pintada que parecia brotar do quadro para o ambiente exterior.

Já a reprodução de Clariza não possuía esses ingredientes quase místicos que permeavam o original e era justamente isso que a jovem queria reproduzir.

Agora o quadro estava no chão totalmente destruído e Wagner não sabia onde sua futura noiva estava; ele procurou por quase todos os cômodos da casa sem sucesso até que finalmente foi ao atelier localizado no fundo do quintal em um pequeno cômodo separado; o lugar estava totalmente destruído, as antigas pinturas de Clariza estavam pelo chão completamente irreconhecíveis o lugar chegava até a dar medo. Wagner começou a perceber que algo estava errado ali e recordou que nos últimos dias ela vinha falando constantemente de que o quadro original mudava de forma, sutilmente, segundo ela, o quadro às vezes mostrava a rua central totalmente vazia e numa segunda olhada havia alguém parado no meio da mesma rua, uma figura de um homem, mas suas feições e roupas não estavam claras, pois que este era parcialmente encoberto por um manto de sombras produzido pelo luar sobrenatural.

Clariza disse ter visto essa mudança por várias vezes desde que recebera o quadro. Por vezes ela disse:

_ Existe um morador naquele quadro.

Wagner pensava que tudo não passava de uma brincadeira, de mau gosto.

Ela insistia:

_ Às vezes acho que o morador do quadro que falar comigo, por isso ele sai de uma das casas, ou da igreja, ou até de seu castelo e vem para o centro da rua.

Era uma conversa muito estranha, até que duas noites atrás ela disse pelo telefone:

_ Não consigo dormir, tive um pesadelo, sonhei que aquilo que mora no quadro falava comigo, mas não lembro o quê.

A verdade era que a moça já não dormia direito havia pelo menos quatro noites, seu sono era entrecortado, ela acordava sobressaltada e assustada. Clariza era uma jovem mulher de vinte e nove anos, totalmente independente, morava separado dos pais numa casa espaçosa, possuía um carro que foi presente da mãe quando ela completou vinte e cinco anos; um Renault Clio; estudava, trabalhava, vivia intansamente.

Ela sempre foi apaixonada pela pintura e nunca havia ficado tão atormentada com algo quanto ficou com o quadro. Wagner conhecia o antigo dono da pintura esculpida, este por sua vez já possuía a obra de arte ao menos há um ano e nunca tinha dito nada semelhante às sandices que sua futura noiva andava cogitando.

Wagner retornou do atelier para a casa e subiu até o quarto da moça, lá chamou novamente por ela sem sucesso; no banheiro ele viu que vários pincéis estavam pelo chão, marcas de dedos manchadas com tintas coloridas nas paredes, que antes ele não tinha visto, ainda frescas e o mais intrigante, o espelho fora quebrado.

Rapidamente o rapaz lançou mão do telefone e discou para a polícia, porém, antes de completar a chamada, se assustou com o barulho que escutou no andar de baixo, um baque surdo e forte seguido de pegadas firmes que corriam ruidosamente; com o susto o sangue dele pareceu congelar dentro das veias e ficou ainda pior quando ouviu a voz da namorada chamando por ele, provavelmente o som vinha da sala e a voz de Clariza estava rouca, mas era a voz dela, ele sabia.

Descendo a escada o mais rápido que pôde, Wagner agora um tanto desesperado já nem se importava com o fato de ter lançado fora o telefone logo que ouviu o chamado da namorada. Desceu o mais rápido que suas pernas permitiram e quando finalmente chegou na sala, percebeu embasbacado que os cacos de gesso do quadro não mais estavam espalhados pelo chão, ao contrário, a obra de arte estava perfeitamente acomodada na parede como se nunca tivesse sido espatifada.

_Mas como?!_Disse o jovem_ Eu vi o quadro quebrado no chão faz poucos minutos.

Repetiu a frase para se convencer de que era verdade, mas o fato era que o quadro estava na parede e exatamente como era antes. Ou não?

Ele se aproximou da pintura e finalmente viu o que sua noiva tanto tentara lhe dizer, ficou tão aterrorizado e sem crer que teve de se apoiar na parede para não cair. O quadro era o mesmo de antes, porém, no centro da rua havia um homem exatamente como Clariza descrevera, envolto em sombras, mas era possível ver que este personagem estava de costas puxando; não, a palavra certa é arrastando, outra pessoa que foi retratada enquanto se debatia ferozmente, essa sim estava visível, uma mulher, mas não apenas uma mulher, era Clariza.

Luiz Cézar da Silva
Enviado por Luiz Cézar da Silva em 10/11/2008
Reeditado em 11/11/2008
Código do texto: T1276140
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