O Apagão

George Luiz - O Apagão

Mauricio Nunes era um homem correto. Incapaz de um deslize social ou de uma atitude menos discreta, era visto com freqüência, nas melhores rodas

e, eventualmente, nas colunas sociais. Em uma época de escândalos políti- cós e golpes financeiros, seu nome era, por assim dizer, inatacável. Com trin-ta e seis anos e ainda solteiro, era considerado um dos melhores partidos da cidade. Como todo homem tem uma fraqueza, a sua era quase inocente. Gos-tava de livros e DVDs eróticos. Eróticos sim,mas não pornográficos. Seu gos-to nessa área era perfeito. Mauricio, apaixonara-se, recentemente, por Lívia Valentim, mulher muito bonita, fina e cultivada,que, talvez por ser muito exigente e restritiva, mantinha-se solteira aos vinte e cinco anos. Amigos de- lê e dela viam aquela união como altamente desejável.Com ela estaria forma-do um casal cheio de virtudes, num tempo em que a mediocridade reinava na sociedade carioca. Lívia era uma musicista de grande talento. Era um privilé-gio ouvi-la ao piano executando com técnica apurada e muito sentimento,um trecho da Apassionata de Bethoven ou um rondó de Mozart. Ela o fazia relati-vamente pouco para deleitar seus amigos.Era naturalmente tímida. Seus pais tinham querido que ela se tornasse uma concertista quando bem jovem. Mas ela descartara essa idéia com firmeza. Queria estudar mais, aperfeiçoar-se no puro intento de conquistar as dificuldades do instrumento pelo prazer de

superar-se.

Com o advento de um novo governo, Mauricio foi solicitado a colaborar com a

recém empossada administração estadual. Isso significaria uma sensível re- dução em seus proventos. Mas o governador argumentara, através de amigos em comum,que isso significaria colaborar para o progresso do próprio Estado e da sociedade no seu mais amplo sentido. Era um argumento ponderável pa-ra um homem tão correto. Finalmente ele concordou em assumir a presiden-cia do conselho de cultura, o que o possibilitaria continuar a exercer suas atividades pessoais e ajudar a administração estadual.

Nesse meio tempo, a tentativa de unir Mauricio e Lívia só fizera ganhar adep-tos, mas progredia um pouco lentamente.

- Lívia, minha querida, mesmo respeitando sua independência, não posso evitar lhe dizer, que a insistência desse rapaz tão cheio de qualidades, merece ser recompensada. Por que vocês dois ainda não estão namo-rando ?

- Não sei, mamãe. Acho que por temor de perder minha liberdade. Afinal,

eu venho conquistando meus pequenos triunfos sozinha, há tanto tem-po ! Claro que sou muito agradecida a você e a papai,por terem me pro-porcionado tudo que eu precisei para meus estudos, Não pense que sou uma ingrata.

- Que idéia, filhinha, você é uma pessoa muito jovem, mas muito sensi-vel também. E quanto a seu pai e eu lhe ajudarmos, fizemos apenas o mínimo indispensável para você desenvolver seus talentos.

- Estou trabalhando num projeto novo, mamãe.

- É mesmo ? Você ainda não tinha nos dito nada. Que projeto é esse ?

- Bem, mamãe, custei a me decidir. Tem a ver com composição musical.

- Que maravilha, minha filha ! E o que você está compondo ?

- Bem, o padre Ernesto, me pediu para compor uma missa. Nada de muito importante. Eu não estava disposta a faze-lo, mas ele insistiu tanto... Resolvi aceitar a incumbência. Não remunerada, naturalmente.

- Que beleza ! Espere até seu pai saber disso.

- Talvez seja melhor não contar a ele, por enquanto. Não sei se terei ca-pacidade de compor algo que realmente preste.

- Você pode até pensar assim, minha filha. Mas eu, conheço você muito bem. Sei que você está compondo uma peça musical de valor. Já posso até ver você vestindo um longo branco, sentada ao piano, solando essa composição durante uma missa solene. Quem sabe até numa sala de concertos ?

- Ah, isso não, mamãe ! Eu nunca teria coragem de executar uma obra de minha autoria em público. Nem que o padre me pedisse de joelhos.

- Ora, minha filhinha, nunca deve se dizer “ dessa água não beberei “.

- Bom, a missa ainda está no inicio.Ainda terei que me esforçar muito pa-ra termina-la.

Em pouco menos de três meses, Lívia terminou seu trabalho. Era preciso es-crever um arranjo para algumas cordas ,além da parte do piano. Lívia não sa- bia orquestrar sua missa sozinha. Tinha se formado na escola nacional de música. Mas escrever um arranjo era tarefa para um maestro. Ela procurou um antigo colega de turma e propôs-lhe pagar por um arranjo seu. Ele ouviu Lívia solar a peça no piano e se entusiasmou. Topou a parada , cobrando-lhe um preço muito razoável pelo trabalho. Um mês e pouco depois, entrega-va-lhe as partituras, para três violinos, dois violoncelos, uma viola e uma harpa. Restava executar o arranjo para depois grava-lo. Lívia conversou com seus pais a respeito disso.

- É como estou dizendo, papai. Eu não teria a coragem de entregar essa missa ao padre Ernesto, sem ter ouvido o arranjo.

- Minha filha ! Estamos, sua mãe e eu, orgulhosos e emocionados. O tre-cho que você nos mostrou ao piano é belíssimo. Vamos contratar os ou-tros músicos necessários, ensaiar e gravar sua missa, sem pensar em despesas ! Você vai grava-la em CD ou há um sistema melhor ainda que você conheça ?

- Eu tinha pensado em grava-la numa fita simples, papai.

- Que absurdo, filhinha ! Imagine seu pai permitir uma resolução simplo- ria assim para a sua missa ! Não é, Ciro ?

- Claro que é, querida. Vamos gravar um CD primoroso no melhor estúdio do Rio. Já disse e repito que não quero saber de poupar nas despesas.

Assim foi feito e, para dizer a verdade, o resultado foi mais que muito bom. A gravação mostrou que a missa era mesmo uma bela obra musical. Tinham si-do feitas cinquenta copias do CD. Por obvia precaução do pai de Lívia, os registros autorais foram feitos na repartição de praxe. Tudo estava pronto para a estréia da Misssa opus 1 de Lívia Valentim.

Todo planejamento pode incorrer em falhas. Há sempre a possibilidade de al-guma pessoa envolvida num projeto deixar vazar uma informação. O dia esco-lhido para a estréia da missa composta por Lívia se aproximava. Dona Maria-na, mãe da autora, não conseguia imaginar que o doutor Mauricio Nunes não estivesse presente na ocasião. Conversou a esse respeito com Ciro,seu mari-do.

- Não me conformo, Ciro.

- Não se conforma com que, minha querida ?

- Com a ausência desse moço na estréia da missa.

- Você gosta tanto dele assim ?

- Vou te responder da forma mais objetiva possível. Mauricio Nunes é o marido perfeito para nossa Lívia. Ele é o genro que eu pedi a Deus.

- Respeito demais seu julgamento, Mariana. Ainda conheço pouco esse rapaz, mas se você afirma isso, deve ter ótimas razões. E o que pode-mos fazer então ?

- Estive pensando. Se a Lívia souber que convidamos o Mauricio para a estréia íntima aqui em casa, vai ficar seriamente zangada conosco.

- Você tem razão. E aí ? Como resolver o problema ?

- Eu tenho a solução.

- Você tem ? E qual é ?

- Vou conversar com o padre Ernesto. Dizer, francamente a ele o quanto é importante que Mauricio esteja presente. O padre é muito hábil. Ele vai dar um jeito de convidar o moço em nosso nome, sem a Lívia saber de nada.

- Mas, o que ele vai alegar para fazer esse convite ?

- Ora, Ciro, ele vai dizer que está empolgado com a composição, que é importante para a igreja que o doutor Mauricio, que é o presidente do conselho de cultura, a conheça.

- Que cabeças maquiavélicas vocês mulheres têm, Mariana. Seu plano vai dar certo !

- Naturalmente, depois da execução da Missa opus 1, serviremos um bu-ffet quentinho e íntimo. O resto será por conta da atmosfera de sucesso e garanto a você que teremos, no mínimo, um pedido de noivado para a nossa filha querida.

- E do vinho importado que serviremos no evento ! Além de um champa-nhe brut de primeiríssima linha.

- Perfeito, meu querido !

A secretária do doutor Mauricio Nunes anunciou-lhe um visitante.

- Pois não, padre Ernesto. Em que posso ajuda-lo ?

- Vim procura-lo, doutor Mauricio, para fazer-lhe um convite.

- Um convite ?

- Sim, vou lhe esclarecer o assunto. Trata-se da pré-estréia de uma missa,a primeira obra composta por uma jovem música muito talentosa. Espero muito contar com sua presença no evento.

- E quando ele acontecerá ?

- Daqui a uma semana. Será uma estréia informal da missa, realizada em casa da própria compositora, Lívia Valentim.

- Lívia Valentim ! Que interessante. Conheço a autora, mas não sabia que, além de ser uma excelente pianista, ela também fosse composito-ra.

- Se o senhor já a conhece, deve saber que ela é uma pessoa muito tími-da. Na verdade ela não sabe que estou lhe convidando.

- Entendo, padre. Mas, e se eu for importuno ?

- De forma alguma. A missa é belíssima, Lívia tem um grande talento. E falei com dona Mariana, a mãe dela, que iria convida-lo. Portanto, não se preocupe.

- Muito bem. Nesse caso, terei um grande prazer em comparecer.

Era uma sexta-feira fria e chuvosa. A casa da família Valentim estava pronta para receber os poucos convidados. Uma das salas tinha sido preparada para a estréia da missa. As estantes com as partituras, as cadeiras para os músi-cos, a iluminação, tudo tinha sido cuidadosamente esquematizado. O grande Steinway de cauda e a harpa emprestavam um clima quase solene ao ambi-ente. O amigo de Lívia, Arnaldo Loures, que escrevera o arranjo, iria reger o pequeno grupo de executantes. Mauricio Nunes chegou quinze minutos antes de iniciar-se o concerto. Lívia o olhou assustada, mas sua mãe a tranqüilizou.

E então, Ciro Valentim adiantou-se.

- Meus amigos, estamos aqui, reunidos informalmente, para ouvir uma composição musical. Tata-se de uma missa, a Missa opus 1, composta por Lívia Valentim, minha querida filha. Composta a pedido do padre Ernesto Siqueira, aqui presente, a peça busca traduzir a piedade cristã, a fé católica em Deus, em forma de melodia. Agradeço a inestimável participação do maestro Loures e dos músicos que formam este grupo. Vamos ouvir, então a Missa opus 1 de Lívia Valentim.

Os músicos ocuparam seus assentos. O jovem maestro ergueu a batuta e os primeiros acordes se fizeram ouvir. Ficou evidente, desde as primeiras notas, que a composição era, ao mesmo tempo, seria e suave. Os músicos pareciam compenetrados da importância daquela peça ainda inédita. De suas mãos, de seus instrumentos, alçava-se para o espaço da sala uma melodia fluente que flutuava junto ao lustre de cristal, roçava as cortinas e se prolongava pe-la sensibilidade auditiva dos que a ouviam. O casal Valentim tinha chamado os empregados da casa, que adoravam Lívia, para que integrassem a peque-na audiência informal. Ao final, os aplausos foram sinceros e emocionados.

O padre Ernesto estava encantado, beijou a fronte de Lívia e exclamou:

- Minha filha ! Você criou uma obra de arte que será ouvida por muitos ! Eu tinha a certeza íntima de que sua missa seria um sucesso absoluto.

Resta-nos agora divulga-la, torna-la acessível ao grande público.

- Padre Ernesto, o senhor não está pensando em...

- Claro que estou, Lívia ! Vou levar um CD ao nosso bispo auxiliar e outro ao reverendíssimo bispo titular da cidade.

- E eu, se a autora me permite, vou, através do conselho de cultura do estado, fazer a divulgação dessa missa, belíssima, pelos veículos de comunicação que estejam ao nosso alcance, acrescentou Mauricio.

- Mas eu não compus a missa com essa pretensão !

- Minha filha, é seu dever, não uma pretensão, proporcionar ao grande pú-blico o prazer de ouvir essa missa.

Lívia estava sinceramente encabulada. Sua mãe veio tira-la do embaraço a-nunciando aos presentes que um buffet seria servido em seguida na sala de jantar.

- Lívia, estou emocionado ! Você é uma verdadeira deusa !

- Que absurdo, Mauricio ! Sou uma pessoa comum,como outra qualquer.

- Não ! Você é uma pessoa muito especial. Sou um privilegiado por estar aqui a seu lado esta noite. Por favor, deixe-me pedir a seus pais sua mão em casamento.

- Você mal me conhece, Mauricio. Nem sabe dos muitos defeitos que te-nho.

- Seus defeitos, se é que existem, se tornarão virtudes aos meus olhos. Quero me casar com você e tentar faze-la ser tão feliz como você me-rece. Diga que posso falar com seus pais, minha querida.

- Está bem, Mauricio. Se é realmente isso que você deseja...

- Meu amor !

A grande mesa dos Valentim estava decorada em branco, com uma toalha fi-níssima e castiçais de prata portugueses, antigos. Guardanapos de linho es-tavam envoltos em argolas do mesmo estilo. O padre Ernesto, conhecido a- preciador de comes e bebes, esfregou suas mãos em antecipação contida.

As primeiras travessas trouxeram salgadinhos delicados, finas iguarias que certanente se derreteriam nas bocas dos comensais. Um vinho tinto, suave e capitoso enchia as taças de cristal da Boêmia. O buffet estava no auge quan-do o inesperado aconteceu. Um vento muito forte vinha soprando há alguns minutos, fazendo estremecer as vidraças das janelas. Raios percorriam o céu chuvoso. As luzes se apagaram.

Na pequena confusão que se seguiu, Mauricio sentiu que sua mão era tocada por outra, macia, insinuante.Ele a pegou, instintivamente. A mão desconheci-da puxou a sua para o próprio corpo. Ele sentiu um volume arredondado, em sua mão.Nesse instante a luz voltou.Mauricio recuou horrorizado. Era um dos seios da harpista que ele tinha segurado. Não havia como ignorar o que tinha acontecido. Lívia fugiu, chorando da sala. Todos os presentes fitaram Mauri-cio como se ele fosse um monstro depravado. Ele fugiu as cegas da sala e da casa. Não haveria mais o casamento de Lívia Valentim e Mauricio Nunes. Menos de uma semana depois, Mauricio mudou-se para Nova Iorque. Lívia re-tirou-se para um convento. O casal Valentim, amargurado, retirou-se para viver em sua casa de campo em Nogueira, Petrópolis.O apagão tinha feito um estrago fatal.

George Luiz
Enviado por George Luiz em 19/11/2008
Código do texto: T1292703
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