Uma outra história

George Luiz - Uma outra história

Esta é uma outra história. Não é a que eu realmente gostaria de ter escrito. As vezes encontramos, no curso de nossas vidas, pessoas singulares. Encantamo-nos por elas e resolvemos torná-las personagens de um conto quase real. Os personagens desta história são reais. Claro que lhes emprestei nomes e sobre-nomes fictícios. Assim, preservei suas verdadeiras identidades e pude dizer tudo o que eu queria sobre eles. O leitor ou leitora poderá achar que eu estou sendo indiscreto ou mesmo onipotente quando narro acontecimentos e diálogos que, na verdade, não pude conhecer com tamanha precisão. Mas isso faz parte essencial da trama e peço que me perdoem, especialmente quem identificar um ou mais personagens. Se revelo uma ou outra faceta pouco ou menos conhecida de suas personalidades, é porque são essenciais para entende-los.

Como já fez com tantos escritores, a vida me ensinou que não existem pessoas cujo caráter e comportamento sejam uniformes e sempre previsíveis. É da própria complexidade dos sentimentos humanos, que resultam as posturas, as atitudes que nos agradam ou nos chocam, nos encantam ou nos revoltam.

Sempre fui um observador da vida cotidiana. Mas acho que é nos momentos menos formais que o ser humano se revela sem a necessária máscara que usa no convívio profissional e social. Como nos esportes e jogos, por exemplo.

Conheci Humberto de Souza numa quadra de tênis. Tinha nos faltado à últi-ma hora um dos parceiros para a dupla e sua presença ali foi providencial. Ele revelou-se um tenista eficiente e um homem bem educado Tinha, na ocasião, em torno de trinta e poucos anos. Era um rapaz alto, atlético,com um rosto de traços regulares mas pouco expressivos. Denotava uma tranqüilidade que poderia ser tomada por uma educada indiferença quanto ao resultado da partida. Mas logo percebemos que era um tenista aplicado e persistente, embora não demonstrasse um desapontamento visível quando suas jogadas resultavam em erros e decepções. Coube-me tê-lo como parceiro naquele dia. Quem joga tênis razoavelmente bem, sabe da dificuldade inicial de entrosa-mento quando se joga duplas pela primeira vez com um parceiro novo. Mas, no caso de Humberto, isso parecia ser minimizado por seu empenho e noção de colocação na quadra.

Terminada a partida, convidamo-lo a juntar-se a nós no bar e beber um suco ou saborear uma cerveja bem gelada. Éramos seis agora, porque Marina, mulher de Zé Otavio, um de nossos adversários de há pouco e Silvia, mulher de Julio, o quarto componente da dupla, estavam conosco. Inicialmente a conversa girou sobre a partida recém jogada. Zé Otavio dirigiu-se a mim:

- E aí, George, seu parceiro jogou muito bem, o Chico não fez falta em seu lado da quadra.

- Não posso me queixar. Nosso amigo Humberto, aqui, mostrou excelentes qualidades de tenista e especialmente de duplista.

- É, a voz de Julio tinha um toque de malícia, você falando assim vai fazer o Zé Otavio ficar um pouco mais vaidoso do que costuma ser...

- Ora ! Não sou vaidoso. Mas tenho que admitir que minha atuação foi quase perfeita. Você não acha que estou numa fase boa, Marina ?

- Irretocável, meu bem.

Trocamos, Julio e eu, um olhar cúmplice, Sabíamos que Marina levava com um pouco na ironia, aquele seu marido vaidoso.

- E a performance dele como marido, Marina ? Também pode ser considerada irretocável ?

- Ah, pára com isso Silvia ! Quer deixar a Marina embaraçada ? Se ela responder que sim, o Zé Otavio vai ficar ainda mais metido. Se disser que não, ele não vai presenteá-la no Natal com aquela pulseira linda que ela viu o outro dia numa joalheria do shopping.

- Mas, Julio, eu garanto que minha amiga Marina só diz a verdade...

A todas essas Humberto mantinha-se calado. Mas eu não deixei de notar o bri-lho do seu olhar quando fixava discretamente Marina.

Neste ponto , devo abrir um parêntesis para esclarecer a quem me está lendo, sobre o casal Zé Otavio e Marina.

Zé Otavio Moraes é engenheiro, trabalha numa empresa de grande porte, ligada basicamente à construção civil. Nascido no Rio, no bairro do Grajaú, ele pertence a uma família bem típica da classe media carioca. Ótimo estudante, não foi difícil para ele, entrar no vestibular da UFRJ e se destacar como aluno brilhante. Seus professores viam com bons olhos aquele rapaz aplicado e inteligente, que sempre estava entre os melhores de sua turma. Podia ser um pouco convencido, mas isso parecia natural, porque, além de tudo era um bonito espécime de macho brasileiro. Suas maneiras eram polidas, pois tinha sido bem criado por seus pais. E, de um modo geral, agradava ao sexo oposto. Faltava-lhe, é claro, uma sutileza maior para lidar com a alma feminina. Mas isto não o impedia de ser um namorado solícito e encantador. Aos vinte anos, tendo sua família se mudado para o Leblon, Zé Otavio conheceu na praia, aquela que viria a ser o amor incondicional de sua vida. Conheceu Marina.

Desde o inicio do namoro, ficou bem claro que, no âmago do relacionamento do jovem casal, embora ele sempre assumisse uma postura machista e protet0-ra, Marina era quem dava o tom, quem realmente tinha a última palavra em relação ao que realmente importava. Mas ela fazia isso com muita inteligência e sutileza, de modo que o próprio Zé Otavio vivia convencido de que era ele quem tomava as decisões e dirigia o destino dos dois. Isso continuou sendo válido após o casamento deles. Marina foi muito bonita desde a adolescência e Zé Otavio, mesmo tentando disfarçar, morria de ciúmes dela. Algumas cenas desagradáveis ocorreram em público, cenas em que ele sempre se saia mal, diante da educação, da tranqüilidade e do bom senso dela. Depois vinham os pedidos de desculpas, os presentes apaziguadores, as flores. Após nove anos de casados eles continuavam sem filhos. Marina tinha consultado alguns médicos reputados que lhe garantiam ser ela uma jovem mulher saudável e fértil. Zé Otavio,. mesmo ante a insistencia dela e de seus próprios pais, nunca se submetera, pelo menos abertamente, a exames desse tipo. Ela era formada em sociologia, embora, pressionada nesse sentido pelo marido, nunca tivesse assumido um emprego regular. Dirigia a casa com eficiência e convivia bem com seus sogros e sua própria família, pais, um irmão, a cunhada e os sobrinhos. O casal realizara duas viagens ao estrangeiro, a primeira a Europa e a segunda aos Estados Unidos. Mesmo nessas viagens, seus interesses eram diferentes. Ele gostava de assistir os grandes torneios de tênis. Ela, mesmo sendo uma tenista hábil e graciosa, procurava os eventos culturais, o teatro, os museus, as exposições de arte, os concertos, os espetáculos de dança. Num ponto eram extremamente afinados, no seu amor por animais. Tinham inclusive um casal de terriers escoceses.

Chico, nosso parceiro habitual de duplas foi indicado e assumiu um posto importante em sua empresa, um posto numa cidade a mais de oitocentos quilômetros da nossa. Com isso, Humberto tornou-se um parceiro definitivo em nossos jogos. Socialmente isso parecia ser uma desvantagem, porque ele era solteiro. Susana, a mulher de Chico era uma mulher agradável e inteligen-te, formava com o marido, um casal harmonioso. Mas nos habituamos a sair com Humberto em nosso pequeno grupo. Nunca o vimos com uma namorada e Julio começou a brincar, dizendo que ele ocultava um romance secreto com uma mulher casada. Humberto ria, aquele seu riso meio contido e não dizia nada. Silvia tentou, sem sucesso, desencalhar uma amiga divorciada e tímida apresentando-a a ele e convidando-a a sair conosco. Mas não deu certo.

Com a chegada de dezembro, o clube promoveu, como fazia anualmente, seu torneio interno. Zé Otavio era um dos favoritos ao título de simples masculina.

– E aí, Zé Otavio ? Vamos ter que aturar você como campeão do clube ?

- Olha, você pode estar brincando, Julio, mas tenho muita chance de vencer o torneio.

- Não tenho dúvidas disso. Mas francamente será difícil conviver com seu ego, caso isso aconteça. Prefiro que o George ou o Humberto, ou mesmo eu tenhamos essa sorte.

- Não acho que qualquer um de vocês possa me vencer.

- O que acha disso, Humberto ?

- Acho que o Zé Otavio é mesmo o favorito.

- E você, Marina ?

- Eu acho que esse kir geladinho está divino.

- Garota esperta !

Quis o destino, ou melhor, a chave do torneio e os resultados iniciais, que Humberto e Zé Otavio se enfrentassem nas semi-finais. Na quadra, os dois tenistas dividiram os quatro primeiros games, dois a dois. O estilo de Zé Otavio era mais agressivo que o de seu oponente. Aos poucos ele foi dominando a partida e fechou o primeiro set por seis a quatro. O segundo set parecia uma repetição do primeiro, até que Humberto mudou de tática. Ao invés de tentar bater seu adversário com golpes arriscados, passou a exigir de Zé Otavio um esforço físico cada vez maior para conseguir marcar seus pontos. Não procurava o lance decisivo e sim uma série de bolas que forçavam Zé Otavio a utilizar toda a sua forma física para tentar fechar os games. Humberto venceu o segundo set por sete a cinco. No terceiro e decisivo set, ficou claro que a resistência física de Zé Otavio tinha sido minada pelo jogo habilidoso de Humberto. Mesmo com sua tenacidade ele acabou perdendo a partida.

Na varanda, ficamos um tanto desconcertados com a reação de Zé Otavio,

Ele atribuiu sua derrota a problemas digestivos, Tinha dormido mal, segundo ele, após um jantar tardio e pesado.

- Eu disse a você, Marina, que aquele camarão era muito pesado para quem ia jogar um torneio hoje. E nós só fomos jantar as nove e meia da noite.

- Você não está sendo injusto para com seu adversário, querido ?

- De jeito nenhum ! Ele jogou muito bem. Só que em condições normais, o resultado teria sido outro.

- Claro que sim, concordou Humberto.

Ao ouvi-lo dizer isso, Marina reagiu de imediato.

- Não seja tão educado, Humberto. Você venceu porque jogou melhor.

- O jogo foi muito dividido e o escore apertado.

- Sim, mas você foi o vencedor e com toda justiça. Não gosto de ver meu marido “chorando” desse jeito, por causa de uma simples derrota em uma partida de tênis.

- Você está sendo desagradável, querida.

- E você vaidoso como sempre, Zé Otavio.

A tudo isso, Humberto ouvia tranqüilo, sem mudar de expressão. O incidente terminou ali. Marina ergueu-se e chamando Silvia foi dar um mergulho na piscina. Nós quatro pedimos outra cerveja.

Passaram-se dois meses. Eu estava procurando um livro sobre os anos vinte em minha livraria favorita. Do outro lado da estante em que eu procurava, pa-receu-me ouvir duas vozes conhecidas. De fato, vi surgirem Marina e Hum-berto logo depois. Embora não estivessem muito próximos um do outro, era óbvio que estavam juntos. Falaram comigo com naturalidade, afinal, era uma coisa perfeitamente admissível que tivessem se encontrado casualmente ali. Mas, um brilho diferente no olhar de Humberto me pareceu dizer que havia algo mais do que um simples encontro entre eles.

A vida continuava a transcorrer sem maiores novidades. Com a mesmice de sempre. Eu tinha ido passar alguns dias fora por razões de trabalho. Quando regressei recebi um telefonema de Julio. Fomos almoçar juntos. Meu amigo parecia estar muito preocupado com alguma coisa.

- Você está com o jeito de quem perdeu alguns milhares de dólares na bolsa, Julio.

- Que nada ! Meus negócios continuam bem sólidos.

- Então o que está acontecendo ?

- Você nem imagina, rapaz, a Marina está grávida, de um mês e pouco.

- Ora, e isso é ruim ?

- Você não está entendendo. Ela contou à Silvia que a criança não é filha do Zé Otavio.

- Como não é filha dele ? Como ela pode garantir isso ?

- O Zé é estéril, meu amigo.

- Estéril ? Não acredito.

- É sim, a Marina tem provas disso. O médico dele assegura que ele não tem como gerar um filho.

- Mas isso é incrível ! E o pai? Quem seria ? Não ! Espere! Eu sei quem é!

- Claro que você sabe, o pai é o Humberto.

- Mas, e o Zé Otavio ? Qual foi a reação dele ?

- Ele ainda não sabe. A Marina ainda não mostra sinais de uma gravidez.

- E o Humberto ?

- Ah, o Humberto sabe. Está com um ar de quem acertou a mega-sena, Quer que a Marina se separe e case com ele assim que as leis permitam.

- Que situação complicada, Julio. E a Marina ? O que você acha que ela vai fazer diante disso tudo ?

- Não sei. Nem a Silvia sabe. Ela simplesmente contou à minha mulher o que está acontecendo, mas não disse mais nada.

- Tenho medo, Julio, muito medo do que possa acontecer.

- É, vamos rezar para que aconteça o melhor possível.

Dali a vinte e três dias, aconteceria o aniversário de Zé Otavio. O dia chegou. Uma pequena festa tinha sido preparada para comemorar a data. Todos estávamos presentes. Na hora do brinde de parabéns, Zé Otavio fez um pequeno discurso.

- Meus queridos pais, meus queridos sogros, meus amigos. Sonhei durante alguns anos, anos felizes do meu casamento com minha amada Marina, em termos, nós dois, um filho. E agora, Deus atendeu meus anseios. Minha querida esposa está grávida. Por isso, ao invés de beberem à saúde do aniversariante, peço que bebam à saúde de nosso futuro herdeiro.

Seguiu-se uma série de congratulações, de beijos, abraços e cumprimentos. Marina parecia tranqüilamente feliz. Só Humberto não conseguia ocultar muito bem sua decepção. Sete meses depois o bebê nascia.

Quando comecei a relatar essa história eu disse que não era a que eu queria contar. Encontrei Humberto no clube dias depois do aniversário de Zé Otavio. Era uma tarde fria, nublada. Jogamos dois sets de simples e depois nos acomodamos diante de nossos drinques. Eu queria tocar no assunto com Humberto, mas, é claro, não tinha como. Assim, foi com surpresa minha que ele começou a falar.

- Pois é, meu amigo. Você que é um escritor, talvez seja a única pessoa que possa entender o que vou dizer agora. Você já deve saber que o menino que vai nascer é meu filho.

- Realmente, eu...

- Tudo bem, não se preocupe com isso. Só quero me abrir, dizer a alguém, por que estou aceitando tão passivamente essa situação.

Como você pode imaginar, Marina não me ama. Ela teve um caso, um caso delicioso comigo. Somos na cama, como feitos um para o outro.

- Mas então, por que não ficam juntos ?

- Ah, meu caro, as mulheres são mesmo um mistério. Ela me deseja mas não quer mais um relacionamento íntimo comigo. Não quer nem ser minha amante, nada.

- Isso é uma loucura ! E o Zé Otavio ? Será que ele é cego ao ponto de não saber que o filho que vai nascer não é dele ?

- Meu pai é médico. Ele sempre me disse que até os melhores médicos, quando estão condenados por uma doença já em fase terminal, acreditam que ainda podem sobreviver. Se recusam a enxergar a verdade.

- Entendo que isso pode acontecer, mas no presente caso...

- No presente caso temos um homem muito feliz e muito vaidoso. Jamais passaria pela cabeça dele a idéia de que realmente é estéril. Ele será o que imagina ser, um pai orgulhoso.

- Mas, e você ? é seu filho...

- Eu farei tudo o que a Marina desejar que eu faça. Continuarei a ser amigo do casal. Assim estarei sempre perto do filho que a Marina vai me dar mas que me será proibido reconhecer como pai.

- Acho isso uma loucura.

- Pode ser, meu amigo, pode ser. Mas a Marina é a mulher da minha vida e para mim, está antes de tudo a paz, a felicidade dela.

- Pensei que os santos fossem personagens de um passado distante.

- Ah, mas eu não sou assim tão santo. Estou aperfeiçoando meu jogo dia a dia. Nunca mais você verá o Zé Otavio vencer sequer um set de tênis contra mim. Essa será a minha pequena vingança.

- Qual ! Essa é mesmo uma historia para ser escrita. Espero que possa ter um final feliz.

- Sim, um final feliz para todos nós, amigo, para todos nós ...

George Luiz
Enviado por George Luiz em 28/11/2008
Código do texto: T1307937
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