Matryoshka - Primeira Parte

Tiros cortam os ares afugentando de uma só vez centenas de aves. Os gritos agoniados dos macacos fugindo pelas copas das altíssimas árvores soam como um mau agouro, despertando o guerrilheiro escondido sob a vegetação rasteira. Seu coração dispara. O constante estado de tensão dos vários dias de fuga desde a emboscada deixou seus nervos em frangalhos, já não pode confiar em seu raciocínio. Trêmulo e de respiração ofegante tanto pela fome como pelo cansaço, procura compreender o que acontece ao seu redor. Seu tremor aumenta ao perceber os zunidos dos facões abrindo uma picada na floresta virgem a poucos metros de onde se encontra.

O som dos passos firmes dos soldados inimigos dá-lhe a certeza de que logo será descoberto. De repente, ouve frases. A voz é familiar, mas o tom arrogante era-lhe até então desconhecido. Gélido, concluiu que o melhor de seus soldados fora na verdade o seu algoz. Pablo jamais usara aquelas palavras nos cinco anos em que o conhecia. Por um momento sente-se culpado: talvez ele tenha sido a principal fonte de informações sigilosas dos bolivarianos. Entendia agora o apego de Pablo à sua pessoa e aquela insistência em quebrar a barreira psicológica que sempre mantivera erguida contra relacionamentos.

Sentiu repulsa por aquela amizade e, por um momento, se perguntou por que havia se permitido isso, se tinha escolhido a solidão como companheira. Nem mesmo em pesadelo poderia se imaginar tal qual estava agora: sendo caçado como a um animal raro por alguém a quem oferecera todo o seu conhecimento e afeto. Instintivamente levou a mão sobre o peito e a amargura pareceu engrossar o sangue em suas veias. Vagamente, sentiu que já experimentara aquele mesmo terrível sentimento antes. Mas não atinou exatamente quando.

A culpa e a frustração enchem o seu coração. Não entendia como ele, um guerrilheiro de longa experiência em frentes de batalhas, pudera ser levado pela cega confiança a ponto de se deixar cair em uma armadilha tão óbvia. Sabia que eram comuns aquelas traições, mas talvez – difícil admitir isso! – tenha se deixado enredar naquela situação por ingenuidade, cometendo o pior erro que um comandante possa ter. Jamais passou pela sua cabeça que pudesse ser atraiçoado. Não por um de seus compañeros, alguém a quem queria bem como a um irmão. Percebeu o quanto realmente havia se enganado.

- Gazmoñero! Bastardo! Boñiga!

Ao pronunciar os xingamentos se deu conta, pela primeira vez em muito tempo, de tudo que deixara para trás. Esquecera-se até mesmo de sua língua materna.

O abatimento penetrou seu íntimo ao reparar em uma mancha de sangue na perna da calça do uniforme. Era de seus hermanos. O rumor causado na mata pelos paramilitares traz a sensação de que a idéia inicial de vingá-los é impossível. Aflige-se.

Revê mentalmente toda a emboscada. Uma semana antes do confronto recebeu informações de Pablo acerca de um ataque a um povoado ao norte do acampamento. O povo resistia bravamente, mas as munições – bem artesanais – estavam no fim. Precisavam de ajuda urgentemente. As informações garantiam que o ataque estava sendo feito por um pequeno grupamento anti-bolivariano e que, portanto, poderia ser facilmente derrotado com um simples ataque-surpresa executado por duas dúzias de guerrilheiros. Após o relato de Pablo, o grupo decidiu unanimemente que levariam socorro ao povoado. Antes mesmo de o sol nascer, os guerrilheiros avançaram na densa e escura floresta. Quando descobriu a armadilha em que estava refém, já era muito tarde. Mais da metade do grupamento fora exterminado pelos imperialistas.

* * *

No terceiro dia de chuva, a garoa mantinha-se irredutível na sua tarefa de aniquilar as condições físicas e emocionais do solitário guerrilheiro que, graças ao uniforme molhado, via seus movimentos se tornarem gradativamente dificultados. Ciente de sua incapacidade de locomoção rápida por causa da pesada roupa que atrasava seus meticulosos passos, seus movimentos e lhe aniquilava as poucas forças que ainda lhe restavam, concentrou todas as suas energias e esperança em uma alucinada tentativa de descer por um barranco que o levaria até o rio. Ali talvez tivesse uma chance de escapar.

O clarão de um relâmpago deu-lhe uma idéia. Agachou-se como um velocista e esperou para a desabalada carreira. Como se tivesse combinado com os céus, a trovoada acionou sua corrida e uma intensa chuva caiu sobre a floresta. Mas antes que conseguisse alcançar o barranco, o trovão se dissipou e outro relâmpago o deixou visível aos seus inimigos. Ouviu então um disparo e tudo o que sentiu em seguida foi um intenso ardor que queimou desde suas costelas até seu abdômen, ao mesmo tempo em que um forte impacto o lançou para frente dando-lhe a certeza de que o atirador acertara seu alvo.

Seu corpo se misturou então à lama e às folhas que se desprendiam do barranco enquanto deslizava em alta velocidade. Queria relaxar para não sentir as violentas pancadas nos troncos, mas precisava manter o corpo contraído a fim de evitar a hemorragia. Os segundos pareciam eternizar-se naquele início de temporal. Estava coberto com folhas e rolando velozmente até uma parte acidentada, cheia de pedregulhos pontiagudos. Na dolorosa descida, encaixou-se perfeitamente dentro de um tronco oco, que estava deitado no chão, apoiado numa árvore.

Sentiu um arrepio subir pela espinha dorsal. Olhou para o céu, buscando em meio às folhas verdes, a claridade daquela manhã, como que querendo recarregar as energias e diminuir aquela experimentação de dores que lhe invadiam todo o seu corpo. A tensão faz correr um fio de suor pelo rosto cicatrizado que lhe dava uma aparência muito mais velha do que a pouca idade que realmente tinha. Era quase um menino ainda, o que lhe valeu o apelido de “El Niño” quando chegou entre os camponeses indígenas, há seis anos. Contudo, seu currículo o denunciava como um velho combatente. Sentou-se com esforço, na tentativa de regular a respiração e arranjar forças para contrair os músculos a fim de evitar uma hemorragia. Pelo menos era o que presumia que acontecesse segundo seu precário conhecimento de medicina. Mesmo sentado, faltava-lhe força. O corpo não obedecia. Escutava gritos do outro lado da floresta. Inutilmente, El Niño tentou apanhar o rifle afundado na lama para seguir em frente. A chuva intensificava-se cada vez mais.

El Niño lutava contra a morte, mas para ele mais importante que sua própria sobrevivência era a segurança de seus companheiros e o sucesso da revolução latino-americana implantada há meia década. Compreendia com serenidade a situação delicada em que estava envolvido naquele momento, por isso não pretendia ser utilizado como arma contra seus hermanos, que, como ele, seriam capazes de se sacrificarem ao invés de servir para a coalizão inimiga. Enquanto se arrastava à procura de um lugar mais seguro, agonizava...

Rafael Ciarlini
Enviado por Rafael Ciarlini em 08/12/2008
Código do texto: T1325375
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