A Morte da Velha Senhora

George Luiz - A Velha Senhora

Muita gente ficou profundamente chocada com o brutal assas-sinato de Vicentina Araujo. Aquilo era mesmo um reflexo bem claro da violencia de nossos dias. Uma pessoa que não tinha inimigos, que não causava danos a ninguém...

Ela morava numa rua tradicional. Tinha mais de oitenta anos e uma saúde de ferro, ou melhor, de aço inoxidável. Vestia-se ge-ralmente de preto ou cores sombrias. Gabava-se de que suas roupas e calçados nunca duravam menos de dez anos.

Era magra a velha senhora. Comia com inteligência e modera-ção e nunca ingeria líquidos durante as refeições. Práticamente só tinha um capricho : Embora não dirigisse mais, trocava seus automoveis todos os anos, sempre por carros 0 quilômetro. Aos que se aventuravam a perguntar-lhe por que fazia isso, ela

respondia que detestava oficinas mecânicas e que por isso só usava carros que estivessem dentro da garantia de fábrica. Sua casa era grande e confortável. Viuva há vários anos, com ela moravam apenas duas serviçais e seu motorista particular. Nenhum dos três estava em casa na noite em que ocorreu o homicidio. Vicentina não era anti-social mas, na sua opinião, filhos, noras, netos e outros parentes eram ótimos morando em suas próprias casas. Tinha fotos deles em bonitas molduras de prata antiga. Como dizia as vezes à Leonor, sua amiga de infancia,

- Filhos e demais parentes são ótimos, desde que a gente os mantenha a uma distancia respeitável.

- Mas e sua filha Luci ? É solteira. Mora sozinha. Não seria u-ma excelente companhia para você ?

- Nem pensar,querida. Luci é independente, como eu mesma e não toleraria dividir o espaço com outra pessoa, mesmo sendo sua mãe. Além disso, ela tem idéias muito antiqua- das para o meu gôsto.

De fato, as idéias de Vicentina Araújo podiam ser consideradas bem modernas para alguém de sua geração. Quando completou oitenta anos, ela não só comprou um computador que era a úl-tima palavra em termos de tecnologia, como adquiriu, junto com ele, uma excelente impressora, um scanner profissional de última geração e mais alguns outros acessórios, todos super modernos. Como não queria frequentar um curso na sua idade, contratou um jovem técnico competente que lhe ensinou tudo que ela queria saber sobre informática e além disso, fazia a manutenção de seu equipamento. O rapaz ficou muito surpreso com a capacidade dela para aprender tudo que lhe ensinou e a facilidade e rapidez com que Vicentina digitava. E agora, seu corpo jazia ali, o rosto que ainda guardava traços de sua antiga beleza, irreconhecivel, golpeado por algum instrumento pesado, um martelo talvez. A casa, de um modo geral, tinha sido pouco vasculhada.Apenas sua suite, que constava de uma saleta, seu quarto de dormir e um banheiro tivera seus armários e sua cômoda inteiramente revirados, como se o assassino ou assassina tivesse procurado dinheiro ou objetos de valor neles. E curiosamente, em uma de suas bolsas, eram três, de couro, a carteiras onde guardava algum dinheiro não tinha sido roubada. Seus cartões bancários e cento e poucos reais em notas, estavam ali intocados.

Tal tinha sido a cena com que se deparara o delegado Afranio Moreira, titular da delegacia de homicidios, a quem um dos filhos da vítima, seu ex-colega de universidade, pedira que desse uma atenção especial ao caso.

- Então, Gonçalves ? O que conclui após nosso exame do lo-cal do crime ?

- Bem, chefe, parece que o autor do homicidio procurou algo entre os pertences da vítima.

- E pelo jeito, não encontrou, não acha ?

- Acho. Mas o que estaria procurando ?

- Acredito que se descobrirmos isso, teremos dado um bom passo para desvendar o caso.

- Acho que dinheiro não foi, chefe. Nem cartões bancários ou cheques.

- Não, dinheiro não. Penso que foi alguma coisa mais impor- tante, pelo menos do ponto de vista de quem cometeu es-se homicidio brutal.

- Joias, chefe ?

- Não creio. Pelo que me disse seu filho, a velha senhora não tinha o hábito de usar joias.

- Isso torna o caso bem mais complicado, chefe. Como o se-nhor sempre diz, o motivo... qual terá sido o motivo ?

- Bem, ela tinha cinco filhos e todos estão vivos. Temos que conversar com cada um deles, separadamente.

- Considera-os suspeitos, chefe ?

- Em principio sim. Teremos que investigar a todos. Desco-brir se algum deles tinha razões suficientes para matar, de forma tão violenta, a própria mãe. Além deles há duas no-ras e dois genros, Gonçalves. Sómente uma das filhas não é casada.

- Mas o senhor não acha que só poderia ter sido um dos fi-lhos, um homem ?

- Não. É preciso nos lembrarmos que a raiva,o ódio, o deses-pero, podem dar uma energia, uma força surpreendente a uma mulher.

- Chefe,Os legistas ligaram. Terminaram seu trabalho. Informam que o laudo cadavérico está pronto e à nossa disposição.

- Ótimo. Estou mesmo querendo saber o que a necrópsia nos revelará de surpreendente. E o resultado da pericia ?

- Vai nos ser entregue ainda hoje. O senhor espera encon- trar algum indicio ou pista valiosa ?

- Provavelmente não, Gonçalves. Mas não podemos despre- zar nada. Você já interrogou as duas serviçais e o motoris-ta ?

- Já, chefe. O motorista que é o empregado mais recente, estava de folga e foi visitar uns tios em Realengo. Já che-quei a história. Ele parece estar dizendo a verdade.

- E as duas serviçais ?

- Essas contaram a mesma história. Tinham ido a Juiz de Fora, de ônibus, juntas. Ambas são daquela cidade. Sairam daqui na véspera do crime e voltaram na noite seguinte. A arrumadeira foi quem descobriu o cadáver. A cozinheira ti-nha guardado o canhoto da passagem de onibus. Verifiquei e vi que batia com a história.

- Melhor assim, Gonçalves. De momento os três estão quase isentos de suspeitas.

- E o filho que lhe procurou pedindo para que o senhor inves-tigasse o crime ?

- Você nunca deve ter lido Agatha Christie, Gonçalves. O fato dele ter me procurado poderia significar exatamente o contrário.

- Desculpe, chefe. Esse raciocínio é muito sofisticado para o cérebro de um simples inspetor de polícia.

- Esqueça, Gonçalves, vamos conversar com os legistas e depois com nossos eficientes colegas, peritos do Instituto de Criminalística.

Para homens menos experientes no trato com homicidios, o ambiente do IML era quase insuportável. As gavetas com ca-dáveres, o cheiro nauseante do formol a atmosfera era detes-tável. O doutor Felipe veio ao encontro deles.

- Deixei o corpo dessa senhora assassinada sobre a mesa para podermos analisar melhor as circunstancias de sua morte. Vamos até lá ?

- Obrigado, doutor Felipe. Vamos.

- Bem, aí está o corpo. Ela tinha ingerido uma refeição bem leve umas duas horas antes de sua morte. Esta ocorreu em função de três golpes desferidos por alguém que usou um instrumento pequeno mas pesado, um martelo talvez. O os- so frontal está visivelmente achatado, assim como o nariz e o malar esquerdo. Houve relativamente pouca hemorra-gia externa. A causa mortis foi a hemorragia interna.

- Qual terá sido o tempo que ela levou para morrer ?

- Suponho que uns quinze ou vinte minutos mais ou menos, com certeza não mais de meia hora.

- E durante esse tempo ela poderia ter gritado ?

- Não, absolutamente. O primeiro golpe já deve tê-la deixado inconsciente. Um trabalhinho rápido e bem feito...

- Alguma coisa diferente que o senhor tenha a nos relatar ?

- Nada, delegado. Exceto talvez que os sentidos da vítima funcionavam muito bem para a sua idade.

- Isso é muito importante para a investigação, doutor Felipe. Significa que ela deve ter visto muito bem seu matador ou matadora. A propósito, os golpes podem ter sido desfecha-dos por uma mulher ?

- Com certeza sim. Um objeto como um martelo ou uma pe-quena marreta podem perfeitamente ser manejados por uma mulher de força mediana com efeitos devastadores.

- Creio que para o momento isso é tudo, doutor Felipe. Agra-deço a presteza com que realizou seu trabalho.

- Não por isso, doutor Afranio. Me diga, o senhor já tem algum suspeito ?

- Tenho um pequeno leque deles, meu amigo. Fora os que ainda deverão surgir.

- Bom, desejo-lhe boa sorte na investigação, Eficiencia eu sei que o senhor tem e muita.

- Generosidade sua. Tenha uma boa noite.

Como o instituto de criminalística ficava perto dali, os dois poli-ciais para lá se dirgiram. Os dois peritos que tinham vistoriado o local do crime os esperavam.

- Então, Bezerra, vai me fornecer todos os dados para pren-dermos o autor desse homicidio ?

- Quem me dera, doutor Afranio. Não tenho muita coisa para lhe oferecer.

- Não ?

- Não. O assassino foi muito cuidadoso. Não deixou impres-sões digitais, indicios que possam nos levar à sua aparen-cia, quase nada mesmo. Exceto um dado que pode ser bem importante.

- Que dado, Bezerra ?

- O assassino é canhoto.

- Ah ! Esse dado pode ser muito importante mesmo. E me di-ga, Bezerra, você fala num assassino. Acha que não pode ter sido uma mulher ? Exclui essa hipótese ?

- Excluir não excluo, doutor. Mas para mim, parece se tratar de um homicidio executado por um homem. A força com que parecem ter sido desferidos os golpes...

- No entanto, o medico legista com quem conversamos acha bem possivel ter sido uma mulher a autora do crime. Possi-vel, Bezerra. Ele não disse provavel.

- Bem, o senhor vai descobrir tudo isso, doutor Afranio.

- Vou ? Bem que eu queria ter essa confiança toda em mi-nha própria habilidade.

- Eu tenho, chefe.

- Ora, Gonçalves, você está sempre me atribuindo poderes de dedução quase sobrenaturais...Bem, acho que por hoje já fizemos o que podiamos. Vamos ver se uma boa noite de sono melhora nossa capacidade de raciocinio.

O dia seguinte amanheceu ensolarado. Após realizar algumas tarefas pendentes, o delegado de homicidios começou a ligar para os parentes da velha senhora. Ficou estabelecido que to-dos compareceriam à delegacia no decorrer do dia. Dona Leo-nor, amiga mais antiga e íntima da vítima, seria ouvida no dia seguinte. As entrevistas se realizaram sem resultados significa-tivos. A velha senhora, segundo seus parentes, não tinha inimi-gos ou desafetos. Vivia confortavelmente, escorada por uma renda pessoal bem acima da media. É verdade que gastava um bom dinheiro mensalmente. Suas duas contas bancárias reve- lavam, além de despesas fixas com as despesas da casa e dos pagamentos a seus empregados, alimentos e combustivel para seu carro, alguns depósitos maiores cuja origem não era espe-cificada. Depósitos feitos sempre em dinheiro. Havia retiradas maiores também. O objetivo dessas retiradas, pouco frequen-tes, era desconhecido. Com a soma dessas informações, o dele-gado Afranio não dispunha uma base sólida para suas investiga-ções. Todos os parentes tinham apresentado explicações con-vincentes, verdadeiros alibis para seus paradeiros e ações na noite do crime. Restava conversar com a senhora Leonor, a me-lhor amiga da vítima.

- Então, Gonçalves, até aqui estivemos procurando as cegas um motivo para este homicidio. Parece que a vítima era uma pessoa decente, irreprensível.

- Irrepreensivel demais, chefe ?

- Ah, você está se tornando um farejador tão desconfiado quanto eu mesmo. O que está achando disso tudo ?

- Bem, doutor Afranio, a única esperança que eu tenho é que essa dona Leonor nos traga uma informação capaz de nos surpreender e transformar nossa visão do crime.

- É isso mesmo, Gonçalves. A questão se resume em duas hipóteses : Primeira, ela terá alguma informação nova real-mente importante ? Segunda : Se ela tiver, estará disposta a colaborar conosco, mesmo que isso possa inculpar algu- ma pessoa de suas relações ?

- Vamos ser otimistas, chefe.

- Temos que ser, Gonçalves...

Leonor Sodré era uma mulher de idade indefinivel. Talvez sua maneira de vestir-se, de pintar seus cabelos , de proteger sua pele com os produtos mais modernos, lhe dessem aquele as-pecto de quem oscilava entre os cinquenta e setenta anos. As amigas mais maliciosas de Leonor afirmavam que ela mantinha um caso de amor com um homem casado e vinte anos mais jo- vem que ela. Mas isso tudo era pura especulação. A verdade é que ela era uma pessoa séria e que passara a sua vida adulta ligada a amizades tranquilas que resistiam à todas as dificulda-des e altos e baixos das diversas fases que costumam presidir os tempos dificeis em que vivemos. Não era uma mulher rica. Ti-nha sido casada com um engenheiro que a fizera feliz mas tivera o mau gosto de ser atropelado e morto por um trator durante uma obra de terraplenagem. Quando isso aconteceu, Leonor ti-nha perto de quarenta anos. Não tivera filhos embora adorasse crianças e compensara isso tendo sucessivos gatos angorás.

O delegado Afranio adiantou-se para receber Leonor Sodré quan-do ela chegou à delegacia de homicidios. Ali estava a pessoa que poderia, pelo menos, lhe dar uma idéia mais precisa de como tinha sido a vítima daquele crime bárbaro.

- Entre, por favor,senhora e não repare muito na confusão de papéis em minha sala. Não sou exatamente uma pessoa bem organizada.

- Não se preocupe, delegado. Posso muito bem imaginar o nú-mero de casos que o senhor tem para resolver ao mesmo tempo, numa cidade violenta como a nossa.

- É verdade. Gostaria de lhe fazer algumas perguntas sobre a falecida senhora Vicentina.

- Estou pronta a lhe informar o que quiser. Ela foi a minha me-lhor amiga. Tinhamos, nós duas, um relacionamento sem re-servas.

- Bem,minha pergunta crucial é : Quem teria interesse em ma-tá-la e de forma tão selvagem ?

- Pobre Vicentina. Soube que foi agredida brutalmente, não é verdade ? Com um martelo ?

- O martelo é uma hipótese. Não encontramos ainda a arma do crime. Existe a possibilidade de ter sido uma marreta.

- Que horror ! Esse assassino tem que pagar pelo que fez !

- É curioso. As pessoas com quem já falamos sempre suge-rem que o homicidio tenha sido praticado por um homem.

- E o senhor não acha também ? Uma mulher não teria a mes-ma força de um homem para usar esse tipo de objeto.

- Não é o que me dizem o medico legista e os peritos. Eles a-firmam que uma mulher com raiva, odio talvez, poderia per- feitamente ter a energia suficiente para fazê-lo.

- Quem sabe ? Mas eu não consigo imaginar uma mulher agin- do com essa violencia,parece coisa de homem. Mas, respon-dendo a sua pergunta, eu diria que minha amiga Vicentina e-ra uma pessoa sem inimigos, delegado. Não consigo pensar em ninguém.

- Vou lhe falar francamente. Há uma coisa que me intriga bas-tante. A vítima fazia depósitos esporádicos em suas contas

bancárias, que eram duas, sempre em dinheiro e de somas respeitáveis. A senhora tem idéia da origem desse dinheiro ? Ela nunca comentou nada sobre isso ?

- Nunca, doutor Afranio. Talvez um de seus filhos saiba lhe responder.

- Isso me intriga. Os filhos, filhas, noras e genros não sabem nada sobre isso. Os dois gerentes das agencias que ela uti-lizava também não. A senhora não acha isso estranho ?

- De fato é curioso. Infelizmente não tenho como ajudá-lo a respeito do assunto.

Seguiu-se uma série de perguntas mas o delegado não conse-guiu obter qualquer informação relevante de dona Leonor. Ao despedir-se dela ele pediu :

- Peço-lhe, dona Leonor, que se lembrar de alguma coisa, que lhe pareça, mesmo remotamente ligada a esse homicidio, me comunique imediatamente.

- Não se preocupe. Farei isso. Gostava muito de Vicentina e espero que seu matador pague pelo que fez.

Num escritório elegante na zona sul da cidade, um homem fala-va com alguém usando seu celular para essa conversa.

- E aí ? Como foi sua conversa com esse delegado ?

- Não se preocupe. Correu tudo bem. Ele jamais imaginaria a verdadeira razão para ela ter sido morta.

- Tem certeza ?

- Tenho, meu amor. Você vem aqui em casa esta noite ?

- Vou tentar. Mas se não puder, amanhã irei com certeza.

- Lembre-se, eu matei minha melhor amiga por sua causa. Ela nunca mais extorquirá um centavo de você. Nunca se esque-ça disso !

- Juro que não me esquecerei, querida. Fique tranquila.

A secretária chamou o homem pelo interfone.

- Doutor Brandão, sua esposa ligou para lhe avisar. O velório de sua sogra será a partir das dezoito horas na capela 2 do cemitério São João Batista. O enterro será amanhã às onze e trinta.

- Tudo bem, Neide. Ligue para o florista que me indicaram. Eu preciso encomendar uma coroa de flores para o enterro de nossa pobre Vicentina. A velha senhora era uma santa !

George Luiz
Enviado por George Luiz em 24/12/2008
Código do texto: T1351625
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