Convite para um homicidio (um caso do Justiceiro)

George Luiz - Convite para um homicídio

( um caso do Justiceiro )

Nesta época de papéis reciclados, o da carta era um requinte. Envolta num envelope azul claro e digitada corretamente, era um convite e não uma missiva convencional. E curiosamente era dirigido à mulher do delegado Afrânio Moreira e não a ele mesmo.

Numa elegante letra do tipo manuscrito, o convite formal, solicitava o com-

parecimento da senhora Teresa R. Moreira e seu marido a um evento original, o assassinato do banqueiro Josias Amaral. O dia, segundo o convite não era especificado com precisão.Seria uma data entre 12 e 23 de janeiro de 2009.

E o traje era ironicamente o de passeio completo. Pedia-se aos convidados que viessem preparados para assistir a um ato cruel mas justo e necessário e acrescentava num deboche ousado, que seriam servidos drinques e salga- dinhos, além de refrigerantes diet. O local também não era mecionado, nem a hora.

- Querido, acabamos de receber um convite.

- Puxa, o ano mal começou... um convite para o que?

- Para um crime de morte.

- Não brinque. Me diga para o que é.

Ao invés de responder-lhe, Teresa estendeu ao marido a folha de papel digi-tado e impresso. Afrânio leu-a com atenção crescente. A tradicional ruga de preocupação desenhou-se entre suas sombrancelhas.

- Então, meu amor, o que achou disso?

- Infelizmente acho que não é uma brincadeira de mau gosto.

- E o autor?

- Deixe-me ver o envelope.

- Aqui está.

- É, como eu supunha, o remetente é fictício.

- “ Murder Unlimited? ”

- Isso mesmo. O convite chegou aqui como?

- Normalmente. A Maria recolheu-o em nossa caixa postal.

- É, ele não o entregaria de outro modo.

- Ele quem, querido?

- O Justiceiro.

- O justiceiro?

- Ele mesmo. Parece que não quer perder muito tempo para agir neste ano da graça de 2009.

- E o que você pretende fazer a respeito?

- Não posso fazer muita coisa. Vamos avisar esse banqueiro e aconse-lhá-lo a solicitar proteção das duas delegacias, a de onde ele mora e a do local de seu escritório de trabalho. Eu falarei pessoalmente com os dois titulares para que não pensem que se trata de uma brincadeira ou de um blefe inconseqüente.

- Então você acha que...

- Não acho, Teresa, tenho a certeza de que o Justiceiro fará tudo para matar esse homem. Que aliás deve ser um tremendo mau caráter.

- Josias Amaral... onde foi que li o nome dele?

- Provavelmente em alguma coluna social. O homem adora espalhar no-ticias sobre si mesmo e sua proverbial generosidade. Além da elegan-cia de sua bonita mulher.

- Ah, já sei. Foi numa reportagem sobre o último Rio Fashion Show.

- Bem, amanhã telefonarei para os delegados que deverão estar envol-vidos nesse problema.

Três homens estavam reunidos na sala de um deles, o delegado Afrânio Moreira, titular da delegacia de homicídios. Além dele, os delegados Jus-tino Farias e Rodolfo Tavares.

- E aí, doutor Afrânio, vejo que o senhor não tem a menor dúvida a res- peito da ameaça desse criminoso conhecido como o Justiceiro.

- Infelizmente, doutor Rodolfo, tenho ótimas razões para acreditar no que ele diz.

- E o que poderemos fazer para evitar que esse assassino cumpra o que prometeu fazer? O senhor, doutor Justino, tem alguma idéia?

- Ao meu ver quem pode ter as melhores idéias é o meu amigo Afrânio, o único entre nós que já enfrentou esse bandido.

- Enfrentei sem nenhum sucesso, Justino. Ele tem uma mente que eu chamaria de diabólica.

- Mas ele deve ter algum ponto fraco. Afinal, ninguém é perfeito.

- De fato, concordo com o senhor, doutor Rodolfo. Só que não sabemos com precisão onde e quando ele vai desfechar seu golpe. Não é uma situação fácil, não acha, Justino?

- Acho. Teremos um período de 12 dias em que o crime deverá ocorrer. Pela lei das probabilidades o local parece ser a residência da futura vi-tima. Temos que obter todos os horários, toda a rotina que esse Josias Amaral segue.

- Meio difícil sabendo-se que ele é um banqueiro e socialite.

- Sim, mas é nossa única chance de tentar protege-lo.

- Bem, eu como titular da Homicídios só poderia oficialmente agir quando o crime já tivesse sido consumado. Mas, se vocês dois con- cordarem, começarei a investigar o assunto desde já.

- Por favor faça isso, doutor Afrânio.

- Farei e vamos nos manter em contacto constante a partir de amanhã.

O inspetor Gonçalves, braço direito do delegado de homicídios, encarava seu chefe com uma expressão de desalento.

- Faltam só dois dias para a data marcada pelo justiceiro, chefe e ainda não temos a menor indicação sobre o que ele vai fazer.

- É verdade, Gonçalves. Mas ele também não sabe nada sobre os nossos planos para impedir que ele consiga realizar esse crime.

- Não sei, chefe, esse homem é diabólico.

- Anime-se, Gonçalves. Com um pouco de sorte poderemos detê-lo.

- E o pior é que, segundo os homens que estão acompanhando os movi-mentos desse banqueiro, ele parece não estar muito preocupado com o que lhe pode acontecer. Ou ele está achando que essa ameaça foi uma piada, ou tem uma confiança cega na policia.

- Bem, Gonçalves, nosso esquema está bem montado. Vamos ver o que acontece nos próximos dias.

- Eu gostaria de ter a metade de sua calma, doutor Afrânio...

- É que estou começando a ficar mais velho, Gonçalves. Sei que não adi-anta me estressar antes do tempo certo. Falando em tempo certo, meu almoço já chegou ?

- Já, chefe. Mando aquece-lo em seu micro-ondas ?

- Sim, mas antes me diga o que vou comer.

- Linguado com batatas cozidas, doutor Afrânio e brócolis cozidos tam-bém.

- Você precisa providenciar um pequeno animal que coma brócolis, cou-ve, essas coisas aqui para a delegacia, Gonçalves. Eu é que não como essa verduras horríveis.

- Imagine se dona Teresa o ouvisse dizendo essas coisas...

- Não se meta a ser aliado de minha mulher, Gonçalves. Ela já me vigia o bastante. Ande, ponha o meu almoço para aquecer. Temos que ir ao IML para conversar com os legistas sobre aquele caso do afogado.

O dia 12 de janeiro era uma segunda feira. Pelo esquema dos três dele-gados, Josias Amaral teria um homem colado nele o tempo todo. Seu car-ro seria rastreado permanentemente. O dia amanheceu chuvoso. O ano tinha começado assim, após as terríveis enchentes no sul e em Minas. No estado do Rio de Janeiro, o norte também vinha sofrendo com esse problema. Renato, o experiente motorista de Josias Amaral acabara de tomar seu café da manhã na confortável copa da residência de seu pa-trão e conversava com a cozinheira.

- Não entendi bem a contratação desse novo jardineiro, Lucinda. Já ti-nhamos um bem eficiente. Para que dois ?

- Ah, não me pergunte. O patrão, as vezes faz coisas que a gente não espera.

- E como o José encarou isso?

- Bom, eu acho que ele ficou meio ofendido. Ele está com setenta e seis anos e pensa que o patrão está querendo aposenta-lo. Além do mais a-cha que esse Tiburcio não é um jardineiro bem profissional. A Zefa é que anda contente. Parece que o homem está querendo namorar com ela.

- O novo jardineiro? Não diga...

- Isso mesmo. Repare como ela anda caprichando na maquiagem.

A rotina na casa do banqueiro mudara muito pouco. Mas, a partir daquele dia, uma nova figura surgira em cena. Josias Amaral passara a ter junto de si um homem de terno e gravata que carregava sempre uma pasta de couro consigo. Josias explicara que se tratava de um consultor do ramo de segu-ros que vinha realizando uma análise dos negócios de seu banco. Só que, se os serviçais da casa dispusessem, como o super-homem, de um olhar raio X

perceberiam que dentro da pasta havia uma pistola Colt 9mm carregada e que na bolsa de lona impermeável que o novo jardineiro tinha sempre à mão uma outra arma, idêntica a essa, permanecia preparada.

O domingo aconteceu com tranqüilidade. A manhã na piscina da casa foi seguida por um almoço saboroso, do qual a mulher do banqueiro só comeu a salada e um filé de peixe grelhado, sua forma física não lhe permitia ingerir mais do que isso, e um cafezinho com adoçante. À tarde algumas pessoas, amigas do casal, e seus filhos apareceram para o lanche e logo chegou a noite.

Não muito distante dali, Afrânio e Teresa Moreira recebiam amigos para co-memorar seu segundo aniversário de casamento. Embora o tempo estives-se encoberto, algumas estrelas tímidas brilhavam aqui e ali entre as nuvens que a lua quase cheia tingia de prata. Há alguma coisa nas noites de verão do Rio que parece encantar as pessoas mais sensíveis, um clima de romance.

Mas para o delegado Afrânio, que era um conhecedor de historia, a pequena festa em sua casa lembrava o baile que o marechal Wellington oferecera em Bruxelas, na véspera batalha de Waterloo, onde iria se defrontar com o te- mivel exército de Napoleão Bonaparte.

Depois que seus convidados saíram, Teresa e ele ainda ficaram um tempo conversando.

- Não fique com essa cara séria, querido.

- Ah, Teresa,não consigo parar de pensar no Justiceiro e sua ameaça.

- Olhe, o que quer que venha a acontecer, tenho a certeza de que você fará o melhor possível para frustrar os planos desse criminoso.

- Bem, pelo menos nosso esquema está bem montado. O problema é que o homem tem uma inteligência surpreendente.

- A sua não fica atrás,meu amor. Venha, vamos nos deitar. Você não po-de se dar ao luxo de dormir pouco.

- O que será que nos espera amanhã?

- Seja o que for, não vai me impedir de fazer amor com você esta noite.

A manhã do dia 12 trouxe um tempo nublado. Desde bem cedo o esquema policial movimentou-se. Mas o dia inteiro se passou sem nada de suspeito. A noite chegou com seu cortejo de luzes e sombras. Novamente tudo acon-teceu normalmente, sem surpresas ou sustos. O mesmo aconteceu nos dois dias e noites seguintes. Na manhã do dia 15 os três delegados voltaram a se reunir.

- Essa espera é um inferno, doutor Afrânio.

- Também acho. Mas não podemos evita-la. Aliás, se nos irritarmos mui-to com isso estaremos nos desgastando inutilmente e será mais fácil o nosso criminoso conseguir alcançar seu objetivo. Temos que manter a calma a qualquer custo.

- Se pelo menos soubéssemos onde esse bandido vai atacar...

- Meu palpite é que fará isso num sábado ou domingo.

- Por que, Justino?

- Porque ele me parece ser muito confiante em seus propósitos. Vai es- colher um momento em que estejamos os três atuando juntos. O que você acha, Afrânio?

- Acho que vai escolher o momento mais apropriado, vai querer jogar com o elemento surpresa, com alguma situação insólita. Não acredito que sua vaidade o leve a exibir-se. Não é seu feitio.

O fim de semana foi moroso e sem surpresas. Restavam agora cinco dias úteis do prazo estabelecido pelo Justiceiro. Na quarta feira Josias Amaral teria que comparecer ao almoço anual da federação de bancos. Estava in-clusive escalado para falar sobre o problema de crédito para as pessoas físicas face à crise mundial. O delegado Afrânio preocupou-se. Um grande número de pessoas estaria presente e o local escolhido para o almoço dei-xava um pouco a desejar em termos de segurança. Reunido mais uma vez com seus colegas Justino e Rodolfo expôs seus temores quanto à seguran-ça durante o evento. Haveria uma grande participação dos veículos de co-municação o que tornava a situação mais complicada. Os três delegados examinaram o problema a fundo. Ficou resolvido que estariam todos três presentes no almoço e que suas equipes seriam reforçadas.

Na quarta-feira ao meio dia, o Clube do Comércio, que sediava o evento es-tava repleto. Os drinques estavam sendo servidos. Pouco depois os convi-dados ocuparam os lugares pré-estabelecidos nas mesas. Repórteres de jor-nais, revistas e televisão procuravam os melhores ângulos para realizarem seu trabalho. O presidente do clube fez uma rápida introdução e o almoço começou a ser servido. Logo antes da sobremesa, Josias Amaral foi convi-dado a iniciar sua palestra. Não tinha ainda falado cinco minutos quando, na entrada principal do salão um homem, usando um terno branco e espalhafa-tosos sapatos amarelos, surgiu como por milagre. Usava uma barba grisalha e longa e carregava um pasta grande de couro . O homem dirigiu-se ao ora-dor falando em volume bem alto.

- Quero protestar contra este evento imoral !!

Não conseguiu dizer mais nada. Os agentes da polícia pularam sobre ele e o derrubaram. O homem esperneava e gritava que tinha sido convidado para debater com o orador, a questão dos créditos bancários. Um dos agentes tentou arrancar-lhe a barba mas constatou que a mesma não era postiça. Outros dois policiais o algemaram. Os flashes dos fotógrafos espoucavam e

a confusão se generalizava. Josias Amaral recuara instintivamente. Um fo-tógrafo mais esperto seguiu o banqueiro para conseguir um flagrante.

- Solte sua câmera e ponha-a com muito cuidado no chão .

A voz, tranquila mas firme era do delegado Afrânio Moreira que empunhava um revolver com o cano dirigido ao fotógrafo.

- Por que ? Só quero fotografar o orador.

- Claro... e alveja-lo na cabeça com essa pequena pistola disfarçada em câmera. Vamos ! Não me obrigue a atirar.

Na sala do delegado Justino, pela última vez ele e seus dois colegas se réu-niram.

- Que grande trabalho, doutor Afrânio! Como descobriu que o Justiceiro iria atacar ali, daquela forma?

- Isso, meu amigo, conte-nos, por favor.

- Todo investigador precisa de sorte. E um pouco de raciocínio também, é claro. As únicas coisas, os únicos objetos que poderiam passar pelo detector de metais sem despertar suspeitas eram as câmeras, tanto as de TV como as fotográficas. Ora, as de TV teriam que ser acionadas de uma distância que poria em risco a precisão de um disparo. Assim, eu concluí que a arma estaria camuflada numa câmera fotográfica. E para fazer isso, o Justiceiro precisaria usar um inocente útil para criar um tumulto.

- O homem do terno branco !

- Sim, O Justiceiro foi perfeito em sua escolha.

- E agora ?

- Agora, meu amigo Justino, teremos que provar a culpa do Justiceiro em uma longa série de homicídios. Mas tenho um palpite de que isso não vai ser preciso.

- Não? Por que ?

- Porque...

Um detetive entrou apressadamente na sala do doutor Justino.

- Chefe ! Aconteceu uma coisa terrível !

- O que foi, Andrade ?

- O Justiceiro está caído em sua cela ! Morto !

- Mas como é possível isso ter acontecido?

- Não sei, doutor Justino , ninguém tocou nele !

- Nem era preciso, meu amigo...

- Como assim, Afrânio ?

- Ora, Justino, você acha que o Justiceiro iria se deixar julgar e conde-nar à prisão ? Ele se envenenou...

- Mas é impossível !

- Mande verificar se na roupa dele não está faltando alguma coisa, um botão da camisa, por exemplo.

De fato, na camisa social do Justiceiro estava faltando um dos botões do punho. E a autopsia revelou que o Justiceiro se envenenara com estricnina. O mais hábil criminoso que a polícia carioca já enfrentara levou para o túmulo todos os segredos criados por sua incrível inteligência. O Justiceiro não mataria mais ninguém.

Na delegacia de homicídios, o inspetor Gonçalves conversava com seu chefe.

- Como está se sentindo, doutor Afrânio ?

- Bem, Gonçalves, estou aliviado com a solução do caso do banqueiro,mas...

- Mas o que , chefe?

- Ora, andei investigando e concluí que o Justiceiro tinha razão em que-rer mata-lo.

- Chefe !!

- É isso mesmo,Gonçalves. O Justiceiro só escolhia crápulas para eli-minar.

- Fale a verdade, chefe. O senhor até gostava desse criminoso.

- Bem, não nego que vou sentir uma certa falta dos comunicados dele.

- Francamente, doutor Afrânio, o senhor parece que gosta de ter sarna para poder se coçar...

- Pode até ser, Gonçalves, talvez eu esteja ficando velho...

- Que nada, chefe ! O senhor vai chegar aos cem anos resolvendo casos de homicídio.

- Com essa comida que a Teresa me faz comer, é possível mesmo. Vamos, Gonçalves, me diga o que vou almoçar hoje...

George Luiz
Enviado por George Luiz em 24/01/2009
Código do texto: T1402056
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