**** O MORRO ATERRORIZANTE ****

POR SMELLO.

Eles se reuniam cerca dás 15 horas, após terem feito os deveres escolares, pois só regressavam de suas escolas para o almoço; as

aulas iniciavam na parte da manhã. Eram nove jovens, o mais velho, Clênio, fora o último a chegar à rua, viera da Bahia, tinha 14 para 15 anos, e dava ensejo a sarcasmo dos demais, pelo modo de falar. A principal figura, o mais moço de todos, Edson, o benjamim da família, proprietária de uma remanescente fazendola, entre os bairros da Tijuca e Alto da Boa Vista, no Rio de Janeiro, fora loteada, em pequenas áreas de 600 m2, localizadas nos lados da rua principal, que recebera o nome do primitivo proprietário.

Os demais, filhos da vizinhança, cujos pais erigiram suntuosas casas, para época, nos respectivos terrenos.

A principal atividade dos mancebos girava em torno de uma “pelada”, jogada inicialmente com bola de borracha, mais tarde, pelota de couro.

Nesse chamado “racha” também gostava de participar uma menina de 13 anos, contra a vontade da maioria; ocorria, entretanto, que ela jogava melhor que qualquer menino.

Antes da principal brincadeira, trocavam idéias, contavam piadas, comentavam sobre as colegas mais cobiçadas nas escolas, cada qual narrava mais vantagem.

A Rua Oscar Patrício não era asfaltada, de terra batida e dava para a subida de um morro, que somente no seu início havia algumas casas. O Edson discorria sempre que o morro guardava uma tradição, que alarmava a todos,

e o adágio popular dizia ser mal assombrado, ali habitara índios e escravos fugidios. Além do mais existiam várias cavernas que segundo badalavam iam até o Grajaú e Lins de Vasconcelos.

O caçula do seu Patrício para dar mais realce ao presságio, afirmava que o próprio pai é quem advertia sobre aquele assunto e argumentava da imprudência da ida ao cume do morro.

A maioria dos garotos acreditava firmemente na veracidade da história, tanto que ninguém morava no cume. Contudo, vez por outra passava pela rua um rapaz de uns 16 anos, completamente desconhecido, pele morena, da cor de índio, não falava com ninguém e carregava sempre uma sacola com utensílios de barro, toscos e embaciados, originários de artesão.

O Clênio, mais falador e atirado, tentou certo dia falar com o tal rapaz, que nada disse e continuou andado.

Jogado o futebol na rua, cansados, comentaram a passagem daquele moço, possuidor de um semblante traumatizante, ainda que de uma pobreza manifesta, a tristeza o dominava. De onde provinha? Eles conheciam todos os moradores. Difícil era se saber quando voltaria a ali passar.

Dagoberto deu fim à conversa, eu acho que ele vem do topo do morro e retorna por outro bairro, passando pelas cavernas, que dizem ter. Uma aparência dele chamou a atenção, a semelhança física com Edson, especialmente a cor da pele. Aquilo ensejou uma gargalhada só, todos no afã de aviltar o colega, prolongaram a brincadeira com uma série de piadas.

Dias após dias as cenas se repetiam, todavia,surgira um novo pensamento,

a curiosidade sobre o que existiria na crista do morro. Cada um da turma dava seu palpite, as mais desbaratadas e sensacionais. Feiticismo preponderava, acreditava-se que os índios deixaram marcas dos seus cultos para as civilizações que os sucedessem, conhecerem suas crenças. Mas, alguns religiosos abominavam essa idéia.

O baiano Clênio, talvez por ser o mais velho e atirado a aventuras, sugeriu excursionarem ao morro, à iniciativa iria esclarecer, de uma vez por toda, o que na verdade existia.

De um modo geral quase todos aprovaram, outros antes da decisão final teriam de ter a aprovação dos pais. Edson, por conhecer o segredo mais tempo, ponderou que segundo seu pai, Oscar Patrício, sempre comentou em casa haver grande quantidade de ofídios, de diferentes espécies, cada qual mais perigoso que outro.

Como proceder e quando se daria o passeio inspirado na curiosidade. Edson logo declarou que possivelmente não iria, sua mãe e os irmãos mais velhos não o deixariam ir. Lembrou-se, porém, que o irmão Ataíde, estudante de medicina, já manifestara vontade de subir o morro e desvendar o mistério. Falaria com ele, e seria de grande proveito sua ida,em face dos conhecimentos como estudante de medicina, lhe capacitava atendimento de emergência.

Pouco mais de cinco dias, na reunião das 15 horas, resolveram que aproveitariam 5ª feira santa para executarem o plano, começariam a subida do morro às 7,30 da manhã, evitando o sol quente das 12 horas. Cada um levaria um bornal com o lanche reforçado e uma ou duas garrafas de água, por causa da volta.

Surgira um problema, Neusinha, a menina que brincava com os garotos e jogava futebol, queria ir, apresentando uma série de argumentos, entre os quais, ser sobrinha do seu Oscar e a mais experiente conhecedora do morro. A negativa foi geral e ela ficou.

No dia e hora marcada lá estavam no pé do morro oito garotos e Ataíde, todos com a pequena “tralha”. Uma hora depois, lá subia Neusa, sozinha, sem nada levar.

As duas garrafas de água pesavam muito, principalmente por terem usado, vidros de armazenar álcool, Tal dificuldade, resultou em dupla alternativa, bebiam logo na subida a quantidade de uma e deixavam a outra, quase cheia, pelo caminho. O que foi bom para Neusa que vinha atrás, recolhera uma delas, completou a água consumida e levou-a consigo.

Todos esgotados conseguiram chegar ao pináculo do morro, três horas depois, isso porque foram pela trilha em “zig-zag”, que ia de uma margem a outra da improvisada estrada.

Não havia árvores, somente mato alto, impedindo de se sentarem, principalmente pelo medo das faladas cobras. Começaram, depois de breve descanso, a vasculhar procurando as entradas das cavernas. Quem primeiro deu o alerta, que encontrara uma fora Adalberto.

Entraram na caverna, as lanternas foram acessas. As paredes rudes, mas não tão estreitas como acreditaram ser. O mato cobria a entrada, difícil de ser ultrapassado.

Nelas haviam inscrições, formadas de figuras, que se faziam entender. Perceberam que as mais interiorizadas, teriam sido executadas por pontas de pedras agudas, já as mais próximas da entrada por instrumentos cortantes, de ferros. Espalhados no solo, ossos humanos e de animais, desordenadamente. Tal demonstrava que teriam sido cavados por roedores e não por seres humanos. Não havia sinal de vida, há anos deixara de ser habitada ou mesmo visitada.

Já passavam das 12 horas,guiados pelo sol, a pino, resolveram fazer o lanche. Foram em direção às sacolas, todas juntas no mesmo lugar e tiveram a grande surpresa, somente os bornais lá estavam, as merendas sumiram, bem como as incomodas garrafas de água.

Ninguém dava uma explicação para o sucedido, confirmar-se-ia, o aterrorizante vaticínio do morro ?

Ataíde preocupado com a falta de água aconselhou que descessem; quando falava, Carlinhos e Tadeu encontraram a entrada de outra caverna, com sua frente limpa, sem mato e bem no meio uma grande pedra, como se ali estivesse para impedir a entrada de estranhos. Chamaram os demais amigos, que acorreram ao local.

Já não tinham tanto pavor, todos entraram na gruta, a aparência era outra, o salão principal estava limpo, varrido com vassoura feita de gravetos, conhecido também por piçarra.

Alguns davam gritos, não por estarem amedrontados e sim para ouvirem as vozes irem e voltarem, como em eco.

Infelizmente, aconteceu um ligeiro acidente, Tadeu na aflição de querer entrar, caiu sobre a enorme pedra, ralou os braços e a perna direita, rasgando a calça comprida. Ataíde voltou e apanhou uma caixa de medicamentos, fez um curativo com água oxigenada, secou com algodão e aplicou iodo em cima do ferimento, cobrindo com gaze, segura por esparadrapo. Aconselhou-lhe que mesmo com o sol forte que estava, deveria regressar acompanhado de Neusinha, e ir a um hospital e tomar uma antitetânica.

Ouviu-se diminuto ruído de pessoas andando, o que causou momento de tensão. Surgiu então uma cabocla, de uns 35 ou 40 anos, vestindo uma roupa de chita e com os pés no chão, trazendo pelas mãos duas meninas de

uns 12 e 10 anos, cada uma, essas estavam de tamanquinhos, a roupa era idênticas a da mulher.

Ela procurou falar alguma coisa, imperceptível, quer quanto ao som, diminuto demais, quer na linguagem. O baiano, bem mais próximo, entendeu que seu nome era Jurema e das duas meninas Diva e Dolores.

Juruma, apesar da fisionomia acabada, tinha traços lindos, olhos verdes e um corpo atraente. As duas meninas se pareciam com a mãe, mas guardavam

Quando regressou Ataíde, manifestou agrado e conhece-lo. Dizendo seu nome, de forma bem nítida. Foi um espanto geral na garotada.

Sentou-se numa pedra e perguntou ao que se achava mais perto: o que estavam, fazendo ali no morro e o que desejavam.

Adalberto perguntou a Jurema, de onde e como conhecia o Ataíde. Ela não demorou a responder, através do pai dele, o Dr.Patrício, que um dia o levou ao Alto da Boa vista, quando tinha 12 anos e lá fizemos um lanche em companhia do Lilico, que é surdo e mudo. Não sei se foi de nascença ou devido ao frio que fazia aqui e ele não tinha agasalho.

E, quem é Lilico?

Meu filho com o Dr. Oscar, vocês são irmãos do mesmo pai, como essas aqui também são, nasceram muito tempo depois. Eu sou neta de índios e namoramos durante muito tempo. O Dr. Patrício resolveu que nós teríamos de morar aqui, em cima do morro, para que ninguém viesse a saber de nossas particularidades. Ele não sobe o morro, quando queremos nos encontrar é no sopé, no barracão onde são guardados os arreios dos animais e ferramentas. Desço este morro à noite com uma simples lamparina de querosene. E subo com os mantimentos que traz para nós: arroz, feijão, farinha, banha, açúcar e café. Carne e galinha nunca comemos, caçamos aqui, preá, rato do mato, tatu e alguns pássaros e aves.

Alertou Jurema, o D. Oscar sabe que vocês vieram aqui ? Ele esconde de todo mundo e espalhou em todos os lugares que o morro tem assombração, por causa dos índios e pretos escravos que fugiam das senzalas.

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Esse era o grande mistério do morro, tido com mal assombrado. O procedimento se igualava aos senhores de Engenhos, que se aproveitavam das escravas novas e faziam crer que os lugares onde moravam eram aterrorizantes, pela prática do culto do candomblé.

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SMELLO = Brasília, 26/02/09.