Um bem material

Como sempre, já passava de duas horas da manhã, mas ele ainda estava acordado. Sentava para treinar no violão, bem baixinho, para que os vizinhos não reclamassem. Dedilhava alguns acordes, cantarolava uma música antiga. Tentava mudar o repertório, treinando uma música mais nova. Dava um trabalho enorme, tinha dificuldades para decorar a letra e até a sequência das posições.

Antigamente, memorizava facilmente qualquer coisa. Bastava ler uma vez. Agora, com mais de cinquenta anos, tudo fica mais difícil, inclusive decorar suas próprias músicas.

Dizem que isso é normal, a gente relembra muita coisa do passado e não lembra a roupa que usou ontem. A memória mais recente é fraca, após uma certa idade.

Abusou o violão e foi para o computador. Assim que entrou no Windows clicou no Real Player e colocou uma música suave. Era uma tentativa para esquecer o acontecido. Abriu um Word e escreveu alguma coisa.

Não queria olhar nada no YouTube, pois isso já estava virando rotina.

Nada, nada o fazia esquecer aqueles momentos. Tudo que escrevia estava ligado, de alguma forma, ao que aconteceu. Quando digitava alguma coisa, até bem redigida, não conseguia salvar. Deletava tudo. Não queria nada que relembrasse aqueles instantes.

Ele era solteirão e morava com sua maior amiga, sua mãe. No dia seguinte, às oito horas da manhã, ela o chamou para tomar café. Ele desligou o computador e a acompanhou à mesa. Ficaram alguns segundos calados, num certo suspense. Sua mãe, muito carinhosa, passou a mão em seus cabelos e disse:

- Não fiques assim. Poderia ter sido pior. Já pensou se tivesse matado alguém ou até morrido? Você não estaria aqui comigo. Foi um grande susto, mas já passou. O que se perdeu a gente adquire novamente. Levante a cabeça e dê graças a Deus por estar vivo e com saúde.

Mas, já que estás bem, responda-me, o que foi que aconteceu realmente?

Ele não conseguiu mentir para sua mãe. – Eu tinha bebido bastante e vinha em alta velocidade quando vi aquela criança na minha frente, desviei e caí naquele barranco. Se tivesse freio, como eu pensava, tudo ficaria bem, mas quando pisei percebi que o disco de freio havia se quebrado e aí, lá se foi o nosso carro, que a senhora comprou com tanto sacrifício.

A sua mãe respondeu com um estampado sorriso: - Foi só um bem material.