A AMIZADE OCULTA...

Olhar novamente para a casa onde vivi durante anos de minha infância, não me traz nenhuma recordação pela qual se vale a pena lembrar.

Exceto uma...

Todos os dias de minha rotina de moleque vivendo naquela velha casa eram regados á muita pobreza, e as intermináveis ignorâncias de minha desnaturada mãe.

Mesmo assim, estou de volta, parado de frente á casa pela qual sempre tive nojo e repulsa.

Um único motivo.

E agora que estou aqui, olhando para suas paredes velhas, a tintas descascando por conta do tempo, e o mato no quintal que crescera junto com meu medo de entrar de novo em seu interior velho e mofado, eu não sei se poderei fazer isso sozinho.

Qualquer pessoa concordaria que meus motivos em voltar aqui são nobres: eu vim rever uma antiga amiga. Na verdade, ela foi a minha única amiga, a pessoa que eu mais gostava de estar na companhia.

Desde a última vez em que minha mãe enchera a cara junto com meu pai, e ambos orquestraram um vergonhoso show de troca de tapas, minha mãe se encheu dele, e resolveu se mudar daqui.

Depois da minha família, ninguém mais viveu na casa. Agora só restaram muros altos e pichados á cercarem o velho barraco, o quintal abandonado e infestado de mato, meu gostoso balanço no qual eu brincava nos fundos da casa, e a minha amiga...hoje vivendo solitária.

Não que eu seja um péssimo amigo, eu convidei ela pra vir morar com a gente diversas vezes, mas ela sempre me devolvia um doce sorriso que fazia com que eu me derretesse todo, e terminava dizendo que não poderia ir comigo.

Um dia eu tive a péssima idéia de falar sobre ela com um colega da escola. Disse como eram os nossos encontros, como era fascinante seu jeito, falei sobre como a gente se gostava. Cheguei a confessar que gostaria de casar com ela quando crescêssemos. Então, quando citei o nome dela, ele começou a rir de mim, disse que eu estava doido, e que se eu quisesse, me levaria até o cemitério de nossa cidade, para que eu pudesse contemplar o túmulo de "Milla Carlsson", minha amiga, que morreu há muitos anos atrás, vitima de câncer.

Foi á primeira, e a última vez em que falei dela pra alguém.

Eu tenho onze anos, nunca me apaixonei por ninguém, eu acho. Muito menos ninguém sequer olhou pra mim. Não como a Milla me olha, o jeito como ela fala comigo. Ela me respeita, me entende, e minhas espinhas horrorosas nunca foram problema para ela.

Pensar na Milla me traz coragem. Devolve-me o ânimo, eu fico cheio de esperança de que as coisas irão voltar a ser como eram antigamente, quando a gente brincava junto no quintal, no balanço. Eu e ela, subindo e descendo, pendurados em correntes enferrujadas, sentindo a brisa passear em nossos rostos quando o balanço descia, muitas vezes ao som dos gritos histéricos de minha mãe e meu pai, se digladiando dentro de casa feito dois idiotas imaturos...

É engraçado pensar nisso, pois sempre quando minha mãe me via no balanço, conversando com minha amiga, ela falava que o idiota era eu. Acho que numa tentativa de menosprezar a Milla, ela me perguntava com quem eu estava conversando.

Minha mãe não passava de uma alcoólatra viciada.

Eram tempos difíceis, mas como eu mencionei antes: minha amiga sempre me dava forças pra continuar...

Lembro-me do dia em que eu tinha levado uma surra da minha mãe porque eu havia me esquecido de limpar a cozinha. Doeu pra caramba, sabe, mas aquela surra valeu muito á pena. E se eu pudesse voltar no tempo, faria tudo de novo, pois foi naquela tarde que a Milla, olhando bem dentro dos meus olhos, me pediu em casamento pela primeira vez.

Eu não sei direito como os adultos lidam com essa coisa de amor. Mas diferente de meus pais, eu e a Milla ao menos nunca brigamos, nunca discordamos em nada. Acho que meus sentimentos por ela são os mais perfeitos que uma pessoa pode sentir por alguém. A única coisa que me falta agora é coragem.

Na verdade ela sempre me faltou. Se ao menos eu fosse um pouco mais valente, talvez eu já tivesse tomado atitude suficiente para ultrapassar esse enorme muro que nos separa. Mas o máximo que minha vergonhosa bravura me levou uma vez, foi a subir nele. Era de noite e estava muito escuro, eu fiquei no topo do muro, observando as trevas do meu antigo quintal, de onde eu até podia ouvir os sussurros da Milla me chamando...

Agora estou aqui, parado em frente à velha casa. Esperando...

Talvez eu esteja me iludindo achando que mais cedo ou mais tarde, meu peito vai se encher de valentia, e fazer com que minhas pernas consigam prosseguir na direção de minha amiga.

Mas, no momento, eu sei de mim. Eu conheço minha constante covardia, e percebo que toda minha intenção, por mais que seja nobre, não me é suficiente pra fazer-me seguir em frente...

Perdoe-me, minha doce Milla... Minha única amiga... Mas assim como eu acredito em você, espero que você também acredite em mim quando falo que sinto sua falta. Contudo, sou fraco e tenho medo...

Medo de adentrar em minha antiga casa...

Medo de que as pessoas estejam certas e eu esteja errado...

Medo de encarar novamente em seus olhos que sempre me deixam mais frágil do que já sou...

Ou simplesmente meu maior medo, é de acreditar que esses olhos verdes lindos, jamais existiram...

(Michel, Metallica)

Metallica
Enviado por Metallica em 07/05/2009
Reeditado em 17/11/2010
Código do texto: T1580535
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