MINHA IMPOSSÍVEL PROMESSA

O Sol intrometeu-se pela janela do quarto, convidando Lorna á se levantar. Passava das nove da manhã, e ela sentiu a cabeça pesar sobre seus ombros.

- Merda de ressaca.

A cama de casal completamente amarrotada, os lençóis embolados entre seus pés. A mulher rosnou algumas ofensas para o vazio, tudo por causa de uma dor intensa no olho esquerdo que ela somente percebera quando involuntariamente o apertou com a palma da mão ao espreguiçar-se.

Derrotada pela fraqueza, ela olhou para o lado despercebida. Havia uma nota de cinquenta reais amassada sobre um travesseiro que não pertencera á ela durante a noite. Lorna apanhou a nota de forma preguiçosa e pouco satisfeita, tentando esticá-la com as mãos em seguida.

Sobre sua cabeça, as hélices de um ventilador de teto giravam lentamente provocando o único ruído dentro do quarto. Lorna sentou-se na beirada da cama, pensando ser melhor evitar olhar para o ventilador que insistia em aumentar o seu enjoo. Os cotovelos pousados em cima das pernas, ambas as mãos apoiando a testa, e os dedos afundados em seus cabelos emaranhados. Lorna tentava recordar da noite anterior, mas como na maioria das vezes, ela logo percebia que era inútil tentar lembrar-se de algo.

Um banho passou a ser a prioridade, como forma de trazer ânimo á seu corpo exausto. Havia uma garrafa vazia de Wiskhy tombada na cabeçeira da cama e um pequeno papelote com o que restara da cocaína. Os objetos ao redor dela serviam como presentes indícios de que a ressaca seria longa e angustiante.

Desajeitada, preguiçosa, cambaleante, a mulher completamente nua, caminhou até o banheiro.

- Merda! Aquele filho da puta arrebentou com meu olho. - disse ela, de frente para o espelho, contemplando o inchaço no supercílio esquerdo. Agora não adiantava mais reclamar, estava feito. O resultado no dia seguinte geralmente fazia com que o sangue de Lorna fervesse. Porque alguns clientes gostavam de exagerar na farra, misturavam o prazer com a violência. Além da contusão no olho, ela ainda precisou lidar com aranhões enormes no pescoço, algumas marcas do travesseiro desenhadas no rosto, o cabelo emaranhado, e a insuportável dor de cabeça...

O chuveiro despejou uma duxa inesperadamente fria, fazendo Lorna arrepiar os pelos de sua pele rosada. Em seguida, a água foi lentamente se aquecendo. A sensação de lavar o fedor do suor e sexo de um homem que ela mau conhecia foi aliviante. A mulher deixou a água purificar demoradamente seu corpo. Quisera ela, que aquela mesma água, também pudesse purificar sua alma.

De repente, Lorna percebeu que não estava mais sozinha naquele quarto de hotel. Ela enxergou por entre as gotas que escorriam no vidro do box, uma presença familiar que lhe observava em pé na porta entreaberta do banheiro.

Era uma jovem menina.

Tinha talvez entre oito, e dez anos.

Usava um vestido branco, e seus cabelos eram lisos e negros como os de Lorna. Não haviam olhos na menina. No lugar deles, apenas dois escuros buracos, onde deveriam existir os globos oculares.

A menina parecia entristecida. Ela segurava um ursinho de pelúcia em uma das mãos.

Lorna sentiu um arrepio subir por sua espinha, até chegar em sua nuca. Ela abriu rapidamente o vidro do box.

A menina havia sumido.

Enrrolada na toalha, Lorna caminhou preocupada de volta ao quarto silencioso. Não tinha mais ninguém... apenas as hélices do ventilador girando lentamente.

Inexplicavelmente, um ursinho de pelúcia repousava sobre o colchão.

Com seus braçinhos abertos, Eee parecia sorrir para Lorna.

Ela quis chorar perante aquela inocente presença.

"Mamãe, eu posso dar um banho no meu ursinho?", Lorna ouvia as palavras dentro de sua mente, em meio á sua dor interminável."Mamãe, você quer dormir com meu ursinho esta noite? Ele vai proteger você". As lembranças haviam voltado na cabeça da mulher, trazendo junto com ela, a tortura de um passado doloroso.

O remorso seria o sentimento seguinte, e Lorna sabia disso. Ela vestiu-se apressada, maqueou o rosto na inútil tentativa de cobrir as marcas da ressaca, guardou o dinheiro no bolso de trás da calça, e apanhou sua bolsa. Talvez tivesse sido a pressa que fez com que a bolsa escapasse de sua mão, caindo no piso do quarto.

Entre alguns objetos que se espalharam pelo chão, havia uma foto 10X15.

A imagem de uma mulher, segurando uma menina sorridente com um ursinho no colo, reveladora, caída entre seus pés. Lorna sentou-se na cama, e apanhou a foto cuidadosamente.

Diferente da menina na porta do banheiro, aquela menina na foto estava alegre, estava sorrindo.

E algumas gota de tristeza inundaram os olhos da mulher.

O ambiente ao redor de Lorna atirava em sua face, os resuldados de uma vida desastrosa. E a foto em suas mãos, lhe mostrava que as coisas poderiam ter sido diferente.

Existiu um dia, uma chance de encontrar felicidade.

A foto voltou para o interior da bolsa, mas as lembranças do passado daquela mulher estavam agora desenterradas em sua mente, e não será nada fácil levá-las de volta ao esquecimeto profundo do subconsciente.

Lorna saiu apressada. Tomou um táxi até o centro da cidade. Entrou em uma espelunca qualquer, acomodou-se em uma mesa, e pediu um café ao garçom. Do lado de fora, o mundo seguia sua rotina. As pessoas passavam pela calçada despercebidas, carros conduzidos por motoristas extressados enfileirados pela lentidão do trânsito, o cheiro insalubre da urbanização infestou suas narinas, até o momento em que o aroma do café forte veio substituí-lo, exalado da xícara em sua frente.

Lorna terminou o café, e sentiu o alívio da nicotina penetrar em sua boca, quando ela tragou um cigarro.

Do outro lado da calçada, uma menina parada a olhar para Lorna.

As pessoas passvam pela menina como se a ignorassem. Lorna sentiu-se tonta, percebeu que era impossível fazer o mesmo:

Ignorar aquela criança.

Outro táxi, uma pequena pausa em uma floricultura, e instantes depois, Lorna caminhava em um gramado verde e imenso, entre lápides de mármore, com os nomes de inúmeras pessoas gravados em cada uma delas.

Seus passos seguiram até uma das lápides.

Ficava próximo de uma árvore, e as folhas secas espalhavadas ao redor da pedra, formavam uma decoração lúgubre.

Havia um nome gravado.

Um nome que Lorna um dia escolheu para registrar a única coisa que havia de certo em sua vida.

Seu único amor.

A única alegria.

"Samantha Pravor"

-Por que você voltou, filinha? - disse ela, ajeitando as flores que estavam em seu colo ao redor da epitáfio. - Você sabe que a mamãe é fraca. Eu não sei cuidar de mim mesma...

Lorna desabou em pranto. Sentia-se sufocada por conta de sua própria negligência. Desejou que fosse seu corpo que estivesse á sete palmos de terra. Queria que fosse sua alma que houvesse deixado este mundo.

"Você prometeu, mamãe".

A voz sussurou em seu ouvido.

" A senhora disse que iria cuidar de você".

- Eu não posso! Eu não posso! Eu não posso!!- desesperou-se ela.

Lorna um dia fora uma mãe. Mas agora, era nada além de uma irrelevante imagem de joelhos, vazia, pranteando a própria inexistência, talvez estivesse tão morta quanto a menina e seu ursinho.

A morte ás vezes também leva a alma dos que ainda vivem. E aquela mulher não tinha mais nenhuma vontade de viver, de continuar respirando, de estar longe de sua filhinha. E um dia, perante o túmulo da menina, ela usara suas últimas forças para prometer que cuidaria de si própria. Ela jurou que faria com que a alma de Samantha, se orgulhasse dela.

Doce ilusão.

Lorna se afastou da lápide.

Tentou correr.

Suas pernas estavam fracas.

Ela caiu sobre o gramado. Seus dedos ficaram sujos de lama. Ela sentiu-se outra vez arremessada no fundo do poço...

A árvore fazia uma sombra sobre o sepulcro atrás dela. A mulher olhou cabisbaixa para trás, para as flores, para a árvore, para o gramado verde...

Olhou para uma menina, de pé ao lado da árvore, protegida pela sombra. Um ursinho de pelúcia estava envolvido em seu abraço.

A menina continuava triste.

Sua mãe lhe prometera.

E agora era um desejo, esperar que a mãe se tornasse mais forte.

Torcendo para que Lorna Pravor desse a volta por cima. Que pudesse vencer os desafios, que pudesse enfim deixar que a alma de sua filha...

Finalmente... descanse em paz.

(Michel, Metallica)

Metallica
Enviado por Metallica em 11/05/2009
Reeditado em 26/02/2010
Código do texto: T1587636
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