MORTE ENTRE AREIA E PEDRAS..

Meu taxi parou em frente á minha antiga casa.

Quando abri o vidro da janela, o mesmo cheiro de relva verde, e terra molhada, voltaram a invadir minha respiração como nos velhos tempos. Por um breve momento eu fiquei da janela do automóvel, observando atentamente a velha fachada da casa onde cresci. A cerca de arame estava enferrujada, o velho paiol parecia ainda mais deprimente, o mato estava alto no quintal, dava a impressão de que a casa olhava pra mim por duas enormes janelas no andar de cima, como se fossem olhos enormes...Quando eu era pequena, tinha medo deles...

Ôh, menina!! são trinta reais!!! - disse o taxista, conseguindo despertar-me de minha lembrança nostalgica.

Paguei o motorista, que após eu sair, arrancou com o carro nervosamente, resmungando alguma coisa sobre eu ser meio retardada.

Caminhei pelo enorme quintal da casa meio desconfiada. Parecia que ninguém entrava nele á anos. O mato arranhando minhas pernas, tinha um cachorro no quintal do vizinho latindo desesperadamente parecendo louco pra colocar seus dentes em minhas canelas. Parei na varanda, de frente pra porta.

Enfiei a chave na fechadura...

Girei no sentido horário...

Um estalo se fez, e as engrenagens destrancaram.

A casa que eu fora criada, estava diante dos meus olhos novamente. Só que dessa vez muito mais empoeirada que o normal. Fiz um rápido tour pelos cômodos vazios, percebi que uma das janelas havia sido arrombada, encontrei camisinhas pelo chão, fezes humana que acompanhava um fedor horrível, o que fez com que apressasse ainda mais minha visita ao seu interior. Na verdade eu não tinha muito interesse em voltar á entrar na casa, pois não estava muito animada com a idéia de remexer no passado. Meu verdadeiro objetivo era o velho paiol.

Um objetivo que me forçou á voltar...

contra a minha vontade...

Sai da casa com um pouco de náusea por conta do fedor. Apanhei a sacola que havia deixado na porta, e segui rumo ao paiol...rumo ao meu passado.

De repente, meu telefone celular tocou dentro do meu bolso. Era o meu namorado, Dennis.

Fiz uma careta ao ver seu numero piscando na tela do celular, quase não atendi. Eu sabia exatamente o que ele iria me falar: "Oi, amor. Tudo bem? Fez boa viagem? Vc se alimentou direitinho? To com saudade..." essas baboseiras de namorado desconfiado da misteriosa viagem da namorada. Mas, como eu não consigo ser tão cruel com ele, acabei atendendo...

- Alô... - disse eu, sem nenhum entusiasmo.

- Oi, meu amorzão! - respondeu ele do outro lado, mostrando uma calorosa recepção, o contrário de mim.

- Oi, Dennis. Como vai??

- Oi, Livia. Como foi de viagem???

- Foi boa, Dennis...

- Que bom que tem área de cobertura ai nesse fim de mundo né, amor?

Fiz um breve silêncio, imaginando em como seria maravilhoso se não tivesse sinal. - Pois é, amor. Eu avisei á você que aqui tem sinal. - respondi, finalmente.

- Amor, eu só liguei pra saber se ta tudo bem com você. Eu to com muita saudade...

- Eu to bem, amor. Não precisa se preocupar. Assim que terminar de resolver meus problemas aqui, eu vou pra casa.

- Então ta certo, meu amor. - disse ele, diminuindo o tom de voz ao perceber que eu estava tentando encerrar a ligação.

Nos despedimos com a mesma melação que detesto, depois desliguei enquanto ainda ouvia a voz dele dizer que me ama.

Pensei no quanto as companias de celular deviam ser gratas aos namorados pegajosos que vivem atazanando a vida da gente com ligações desnecessárias.

Finalmente sozinha, voltei a me concentrar em minha complicada missão. Caminhei segurando a pesada bolsa até a frente do paiol. Ao destrancá-lo constatei que, diferente da casa, ninguém havia se interessado em cagar ou fazer sexo dentro dele. Mesmo assim, o cheiro de mofo era terrível.

Imaginei que os vandalos da vizinhança deviam ser um bando de medrosos. Minha prima que mora aqui perto, me ligou certa vez dizendo que corriam boatos de alguns moradores dizendo terem visto o fantasma de uma garota aqui no quintal, e que sua alma descansava dentro do velho paiol. Acho que foi isso o que manteve os vagabundos longe dele.

É claro que minha prima contou isso, em meio á longas gargalhadas, se divertindo com o medo que as pessoas tinham daqui. Ela ria pra valer dessa história...

Mas eu não ri.

Na verdade, foram esses boatos que me trouxeram de volta, doze anos depois daquela tarde. Depois do medo, da culpa e da preocupação que sentia.

No dia em que minha familia resolveu se mudar daqui, eu agradeci aos céus com veemencia. Como se isso fosse apagar o meu passado...

O paiol continuava do mesmo jeito: algumas caixas pelos cantos cheias de tralhas velhas, foices penduradas, um armario que servia de moradia para os cupins, teias de aranha por todo o teto parecendo cortinas de um filme de terror, e minha antiga mochila, onde eu guardava meu diário, algumas revistas, e cartinhas de namorados que eu escondia aqui pra que minha mãe não encontrasse.

Eu apanhei a mochila, sentei-me no chão, e senti uma pontada de saudade no peito quando abri o ziper...

Minhas coisas estavam intactas.

Passei os olhos rápido pelos meus pertences, e fui direto para o diário, abrindo-o na última página que eu escrevera. A última vez que tive coragem para abri-lo. Por um instante, eu imaginei que fora uma sorte ninguém ter encontrado ele...

Não porque eu tenha vergonha de saber que alguém leu as besteiras que eu escrevia na infância, mas foi sorte, porque meu segredo permaneceu guardado durante todos esses anos. Um segredo pelo qual eu jamais tive coragem de encará-lo. Eu sempre fui uma covarde...e nunca tive orgulho em saber disso, nem de admitir essa fraqueza.

Pesarosamente, comecei a ler a última folha rabiscada com minha caligrafia torta:

"Meu amigo, diário. Não sei mais o que faço. Estou aqui pra tentar encontrar uma solução, mas ainda não pensei em nada. E o que é pior: não posso contar com a ajuda de ninguém... estou desesperada, querido diário. Eu não sou boa em resolver problemas sozinha, você sabe disso. A mãe da Clara ligou hoje procurando por ela. Eu fiquei com muito medo. Ela disse pra meu pai que iria até a polícia porque estava muito preocupada. Só de pensar na polícia, eu tremo toda, diário".

Não tinha mais nada escrito. Me lembrei de não conseguir mais escrever nada na folha áquela tarde. Eu tava apavorada.

E agora, com o diário novamente em minhas mãos, eu sentia o nó sufocante na garganta. Aquela certeza de que as lágrimas logo começariam a correr de meus olhos...

Fechei suas páginas. Bati com força o diário, achando que conseguiria fechar também as lembranças. Foi inútil. Me virei, e apanhei a bolsa que havia trago, retirei uma pequena pá de dentro dela. Fui até os fundos do porão, e ja com os olhos marejados, comecei a cavar...

Não sei se era a terra muito dura, ou se minhas forças haviam me deixado. Em poucas braçadas eu ja me sentia exausta. Parei um pouco, percebi que não tinha cavado quase nada. Enxuguei o suor da testa, e as lágrimas dos olhos. Então ouvi um ruido na porta...

Me virei pra olhar...

Era ela...

O fantasma da menina...

Parado na porta, á me observar...

Senti vontade de correr, de gritar. Estava toda arrepiada.

Fiz um esforço gigantesco, juntei o ar nos pulmões, e perguntei gagueijando feito uma fanhosa:

- C-Clara, é...é voc-cê?

A menina, parou de me olhar e saiu correndo.

Voltei ao trabalho, mas agora com as mãos tremendo ficou ainda mais complicado para cavar. "Eu devia ter trago o Dennis comigo", pensei.

A cada duas ou três cavadas, eu me virava pra olhar a porta. Estava completamente perturbada com a aparição da menina. Eu nunca tinha visto essas coisas na vida, apenas ouvia as histórias que as pessoas mais velhas contavam, que minha prima contava, em meio as risadas de gralha dela. Mas quando eu olhei para o fantasma da menina, tive uma certeza:

Era a minha amiga de infância, Clara.

De repente a pá bateu em alguma coisa sólida. Me lembrei das pedras que havia depositado no buraco. Na tumba improvisada que construi.

Terra, areia e pedras, foram necessários para esconder o corpo de minha amiga. Mas não foram suficientes para enterrar o meu remorso.

E as lembranças voltaram á superfície de minha mente, como se eu pudesse vê-las diante de meus olhos:

Era uma tarde fria. Estava chovendo muito nos últimos dias. Eu e Clara brincávamos no paiol, ja que nós não tinhamos uma casa da árvore como aquelas dos filmes infantis. Nós ficavamos a tarde toda, escondidas no paiol. Brincavamos com nossas bonecas, escreviamos cartas para nossos namoradinhos da escola, até os deveres de casa a gente fazia no paiol. Ninguém sabia que a gente ficava alí, nem a minha familia. O único que entrava no paiol, era o meu pai, e isso era raro. Ficavamos escondidas atrás das caixas até ele sair. Eu e ela éramos muito amigas, mas, assim como todo mundo, a gente também brigava ás vezes.

Foi numa dessas briguinhas bobas, que Clara quebrou de propósito a cabeça de uma de minhas bonecas de porcelana. Na verdade era a que eu mais gostava.

Fiquei possessa. Parti pra cima dela, agarrei seus cabelos loiros e compridos, e ficamos lutando feito duas tontas um tempão. Foi então, que num súbito instante, sem perceber, eu empurrei ela com força demais. Eu era muito mais forte que ela. Clara desequilibrou-se, e caiu no chão, batendo a cabeça em uma enxada, que estava virada com a ponta para cima.

Ela não gritou, não disse nada... Apenas ficou imóvel, quieta.

- Deixa de besteira, menina! - eu disse, depois de algum tempo.

- Vem aqui quebrar outra boneca se você for muito mulher. - comecei a me expressar, torcendo para ela se levantar e trazer-me o alívio esperado, para me tirar da preocupação.

Clara começou a balbuciar alguma coisa.

Cheguei mais perto para ver o que era. Sua boca estava toda vermelha, e escorria pelo pescoço.

- Clara!

Meu grito quase deu pra ser ouvido do lado de fora do paiol.

Eu agarrei ela pela camisa. Sua nuca estava toda ensanguentada, havia uma poça enorme em volta da enxada.

"Meu Deus, o que eu fiz!", pensei comigo.

- Fala comigo, amiga!!! Fala comigo!!!!

Os olhos dela se fecharam lentamente...

Minha amiga morreu no meu colo...

Eu acho que também morri, junto com ela...

Passei horas e horas chorando. A noite começou a cobrir os céus, e o pânico tomou conta de mim...

Comecei a imaginar coisas que só a mente preocupada de uma criança consegue. Pensei que seria presa, que Deus me castigaria pelo que fiz, pensei no padre da minha paróquia me dando sermões, me dizendo que eu iria para o inferno. Mas o que mais me atormentava, era meu pai e sua cinta de couro...eu ja havia levado uma surra dele uma vez, eu sou testemunha de como é a dor de uma cinta de couro puro, atingindo minhas costas nuas, assobiando no ar feito um chicote...

Tive que dormir deitada de lado naquele dia...depois disso, eu prometi á mim mesma que nunca mais levaria outra surra daquela. Eu faria qualquer coisa pra me livrar do meu pai e seu chicote violento...

Até mesmo esconder um crime.

Joguei algumas caixas em cima do corpo de Clara. E fui pra dentro de casa, tentando esconder minha preocupação. Minha mãe logo percebera o inchaço nos meus olhos:

- Você estava chorando, Livia?

Eu ja tinha pensado em algo, caso alguém percebesse minha cara de desconsolada:

- Briguei com uma garota na escola. - falei.

Levei algumas poucas broncas, mas logo minha mãe me trocou pela novela. Tomei um banho, e fui para o meu quarto. Eu sabia que não conseguiria dormir.

Passava da meia noite quando ouvi o telefone tocar. Era a mãe da Clara perguntando se ela estava na minha casa. Meu pai disse que não, e terminou a conversa, prometendo á mãe dela, que perguntaria pra mim se eu á tinha visto.

Ouvi os passos dele subirem a escada, ele abriu a porta. Eu fingi que estava dormindo.

- Livia, acorde! - disse ele, me balançando o ombro.

- O que foi?

- Por acaso você viu a Clarinha hoje?

- Vi, sim. Na escola, por que?

- A mãe dela ligou preocupada. Disse que ela não voltou pra casa hoje.

Encerrei a conversa dizendo que não sabia dela, e que estava com muito sono. Meu pai se deu por convencido, e saiu do quarto.

Rapidamente me levantei, pulei a janela, desci pela calha de chuva, como sempre fazia, e fui até o paiol.

A visão do corpo falecido e abandonado de minha amiga, foi a coisa mais horrível que eu ja vi em toda minha vida.

Passei a noite inteira cavando um buraco...

Arrastei ela para dentro dele...

Joguei areia e algumas pedras, depois terminei de cobrir o corpo de Clara com terra...

Depois empilhei algumas caixas para cobrir o local de seu túmulo...

Rezei um "Pai nosso", pedi á Deus que me perdoasse...

Meus olhos ja não saiam lágrimas de tanto que chorei aquela noite.

Dois dias depois a polícia foi lá em casa. Fizeram algumas perguntas aos meus pais, a respeito de alguns vagabundos que andavam aparecendo em nossa rua. Depois pediram ao meu pai pra falar comigo. Só que a essa altura, eu ja estava no meu esconderijo, atrás das caixas, perto da minha amiga...

Uma semana depois, eu vi a foto de Clara no jornal. Ela estava em uma coluna dedicada á pessoas desaparecidas.

Os dias se passaram...

Os anos se passaram...

E algumas coisas restaram daquela tarde, brincando de bonecas...

Restaram os ossos de Clara.

Restou a minha vontade de morrer.

Restou o inconformismo da mãe dela.

E restou o paiol, que fora a única testemunha do meu crime.

Depositei todos os ossos da minha amiga dentro de uma caixa de papelão. Deixei ela bem no meio do paiol, de forma bem visível. Depois eu lacrei a tampa, e colei um bilhetinho com os dizeres:

"Aqui estão os restos mortais de sua filha"

Á essa hora, a mãe dela ja deve estar recebendo pelo correio a carta que escrevi, contando tudo o que acontecera á doze anos, e informando onde deixei o corpo de sua filha.

Vou embora sem me despedir de ninguém...direto para a segunda parte do meu plano, só que essa parte será moleza pra mim: Um drinque de cianureto que me espera em casa, junto com uma carta de confissão para os meus pais...

(Michel, Metallica)

Metallica
Enviado por Metallica em 22/05/2009
Reeditado em 04/08/2009
Código do texto: T1608661
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