TECLADO SANGRENTO

- Cindy!!! Abaixa essa porra de música, agora!!!!!!!

Os berros eram acompanhados por socos na porta fechada, ambos quase inaudíveis. Dentro do quarto, Cindy encontrava-se em êxtase total. Os acordes da guitarra da banda Mudvaine saiam das caixas de som, despejando loucura e agressividade no interior de uma certa alma isolada do mundo. De leve, ela balançava sua cabeça pra cima e pra baixo acompanhando as batidas da música, como se estivesse inteiramente possuida, controlada por um vício predominante...

Cindy gostava da solidão...mesmo nas sextas-feiras em que toda a galera da escola dizia ser a "Noite da balada, da azaração". Para ela, a melhor balada era passar horas mergulhada na mudez do teclado, em meio á um bando de pessoas que, como ela também preferiam um bate papo, digamos, mais suscetível.

A música exageradamente alta, não cessava...

Os socos na porta também não...

- Cindy!!!! Mas que inferno!!!!

O quarto estava com pouca iluminação. Passava das sete da noite, e a luz do monitor queimava levemente os olhos da menina. Entre o espaço do fim de uma música e o inicio de outra, Cindy pôde ouvir com mais clareza, a ira de seu pai adotivo despejando desavenças em cima da única pessoa capaz de considerar suas queixas: a esposa, e mãe de Cindy. Ele dizia alguma coisa sobre a menina ser louca, e a culpa era da mãe.

Na tela de LCD, um bando de tímidos pretendentes medrosos, que na frente do monitor deixavam de ser acanhados, e virtualmente transbordavam entusiasmo. Um tal de japinha teclava animadamente com ela pelo MSN, pensando ser o dom Juam dos computadores:

JAPINHA DIZ:

Ei, vc ainda tai, gatinha????

Cindy DIZ:

Meu padrasto é um babaca...

JAPINHA DIZ:

O que????

CINDY DIZ:

deixa pra lá...

JAPINHA DIZ:

Anda logo, gata. Abaixa essa Webcan pra mim ver seu corpo gostoso...

CINDY DIZ:

Eu vou abaixar sim. Mas é pra te mostrar uma outra coisa.

Cindy segurou no pedestal da câmera, e direcionou-a para baixo. Na tela apareceu a mesa do computador onde havia um mouse, um porta CDs, alguns papeis espalhados, um telefone celular, e um montinho de pó branco.

JAPINHA DIZ:

Caraca!!!! Vc vai cheirar isso tudo ai, sozinha?????

CINDY DIZ:

Viu só? Eu te disse que hoje quero relaxar...

Delicadamente ela apanhou um cartão magnético, e começou a ajeitar o pó, formando uma enorme carreira branca. Em seguida, seus dedos deram um toque final á obra. Em uma das mãos, ela segurava um canudinho feito de papel enrolado.

Ela encostou uma das extremidades do canudo no orificio do nariz...

A outra ponta sugou o pó branco feito um aspirador...

Cindy levantou a cabeça, fechou os olhos, e deixou a droga conduzi-la por uma viagem louca, leve, insana...

Na webcan, o garoto colocou uma das mãos na boca impressionado, como se não acreditasse no que acabara de testemunhar.

JAPINHA DIZ:

Garota, vc é doida!!!!

CINDY DIZ:

Vc ainda não viu nada, amorzinho...

Além de Japinha, havia mais alguns outros solitários teimosos tentando teclar com ela: Um tal de Marlon, o sempre chato arrogante Feliphe tricolor, um convencido denominado Dioges garanhão, e sua amiga Fabia que sempre aparecia no horário da noite. Era a mesma galera de sempre: amigas em busca de um pouco mais de conversa fiada sobre os melhores rapazes da net, e rapazes tímidos em busca de uma paquera descompromissada, uma troca de olhar pela webcan, e se a cantada for boa, talvez até rola um "sexo virtual"... isso depois que a cocaina fizesse efeito.

Japinha comentou mais alguma coisa e saiu...

Cindy sentiu-se zonza, levantou e deu uma volta pelo quarto, apanhou uma garrafa de Campari na estante, serviu-se de uma dose, depois foi até a janela. A brisa fresca lambeu seu rosto, a bebida desceu suave por sua garganta. O terceiro andar do prédio em que morava, proporcionava a ela, uma visão privilegiada das ruas do centro da cidade. As luzes da metrópole enchiam seus olhos, o brilho das cores parecia cintilar numa eventual sincronia da vida urbana que passava do lado de fora...Cindy se perguntou se existia alguém mais solitário que ela entre todas aquelas luzes.

O telefone celular piscava um brilho azulado em cima da mesa do computador. Haviam duas ou três ligações perdidas. O barulho da música impedia que Cindy ouvisse o toque da chamada.

"LIGAÇÃO PERDIDA: MAMÃE"

A menina fez uma cara de descontente, abaixou o volume do som, e discou de volta. Dois toques chamaram, e sua mãe finalmente deu sinal de vida:

- Alô, filhinha.

- Oi, mãe...

- Eu e o Sergio já saímos tá??

- Ta bom, mãe..."Agora eu entendi porque ele parou de dar socos na porta", pensou ela, mas preferiu não comentar nada.

- Deixei o frango no forno, e tem macarronada na geladeira. Esquenta no microondas. - continuou a mãe.

- Pode deixar...

- Não espere por mim acordada, eu não sei que horas vou voltar...

- Ta legal, mãe. Divirta-se.

- Um beijo, tchau...

A chamada terminou, o som fora erguido ás alturas novamente tomando conta do quarto. Cindy sentiu sua tonteira aumentar de leve. Ela sentou-se outra vez na frente da tela do computador. Porém, antes de voltar para a mesmice, foi preciso primeiro espreguiçar-se demoradamente, apertando com as palmas das mãos seu rosto cansado.

- Que merda!!! - esbravejou ao reparar que suas mãos ficaram infestadas da maquiagem pesada, despercebidamente extraída de seus olhos.

Mais alguém havia acabado de ficar online na página principal do messenger:

" BLOODY KEYBOARD: ACABOU DE ENTRAR "

Os olhos borrados de Cindy arregalaram-se pela primeira vez. Finalmente alguém interessante pra se bater um papo...

Geralmente os assuntos do misterioso "Bloody Keyboard", eram cheios de enigmas, exuberância, e faziam a curiosidade de Cindy criar asas.

Certa vez a conversa seguiu um rumo mais erótico. Nada de cantadas ou pretensões fantasiosas. Bloody digitava como se estivesse vivenciando o que escrevia naquele exato momento...Ele contava em detalhes o que estava fazendo com uma garota de programa em seu quarto...

Naquela noite, Cindy se deparou tocando-se, deliciando-se em suas fantasias. Ela implorava para que ele abrisse a webcan, queria ver a brincadeira de Bloody com sua vadia desesperadamente. Estava excitadíssima por conta das palavras de uma misteriosa pessoa do outro lado da tela, Cindy quis ser sua prostituta, sua escrava...Bloody a havia deixado louca, sem que fosse preciso sequer um testemunho visual. Fora a única vez em que tivera um orgasmo na vida. Mesmo sozinha, sem a companhia física de um homem, algo inédito em suas paqueras virtuais, e se depender dela, não será a última...

CINDY DIZ:

Oi, gato...

BLOODY KEYBOARD DIZ:

Ola, Cindy...

CINDY DIZ:

Pensei que não encontraria vc hoje...

BLOODY KEYBOARD DIZ:

Não gosto de sextas-feiras...

CINDY DIZ:

Eu tb não...

BLOODY KEYBOARD DIZ:

Ta fazendo o que???

CINDY DIZ:

To no meu quarto. Acabei de devorar o presente que vc me mandou...

BLOODY KEYBOARD DIZ:

O que vc achou????

CINDY DIZ:

Nooooossa, gato!!!!!!!!!!!!Eu to muito chapada!!!!!

A sequencia de respostas cessou por alguns minutos. Cindy estava ansiosa, talvez por causa do efeito da droga, começando a percorrer em suas veias:

CINDY DIZ:

Ei gato, vc ainda ta por ai????

BLOODY KEYBOARD DIZ:

Sim...

CINDY DIZ:

Vc prometeu que ia me contar como terminou aquela noite...

BLOODY KEYBOARD DIZ:

Terminou como todas as outras...com a chegada do dia seguinte.

CINDY DIZ:

Para de me zoar, gato. Eu to falando daquele dia com a prostituta...

BLOODY KEYBOARD DIZ:

Como sabe que ela era uma prostituta???

CINDY DIZ:

Porque vc falou...

BLOODY KEYBOARD DIZ:

Eu falei que ela era uma garota que aceitou me fazer um programa comigo...

CINDY DIZ:

É a mesma coisa, gato.

BLOODY KEYBOARD DIZ:

Vc tem certeza de que quer saber???

CINDY DIZ:

Tenho...

BLOODY KEYBOARD DIZ:

Não seria mais interessante se eu lhe mostrasse...

CINDY DIZ:

Nossa, gato...isso seria tudo de bom!!!!!!!

BLOODY KEYBOARD DIZ:

Está sozinha em casa????

CINDY DIZ:

Sozinha...e indefesa!!!!!

Novamente houve uma certa demora para que uma resposta de Bloody aparecesse na tela. A cabeça de Cindy começou a parecer pesada, sua visão distorcia lentamente...

BLOODY KEYBOARD DIZ:

Como vc está se sentindo???

CINDY DIZ:

To com tesão, gato!!!!

As respostas de Cindy agora eram digitadas com certa dificuldade. A garota parecia perder cada vez mais os reflexos.

BLOODY KEYBOARD DIZ:

Quero vc...hoje!!!!

CINDY DIZ:

Vem até aqui...e serei toda sua...

BLOODY KEYBOARD DIZ:

Abra seus e-mails. Eu te mandei as fotos daquela noite com a garota...

CINDY DIZ:

Vou abrir...

Alguns minutos se passaram. Cindy agora com muita dificuldade abriu sua página de e-mails. Era verdade. Havia recém recebido uma postagem desconhecida. O remetente se denominava apenas como:

"TECLADO SANGRENTO".

Uma sequencia de fotografias estava diante de seus olhos pesados. Cindy se deparou com a imagem de um homem alto e forte, usando máscara. Ele segurava um facão em uma das mãos.

Na foto seguinte, havia uma cama de casal, em um quarto cujas paredes eram manchadas com inúmeras marcas de palmas humanas.

Outra foto: uma mulher estava amarrada pelas as mãos erguidas acima da cabeça, ao lado da cama. A mulher estava nua, amordaçada, e sua expressão parecia nervosa.

A cabeça pesada de Cindy voltou a girar ainda mais forte, e ela desistiu das fotografias.

Ela balbuciou alguma coisa, fez um enorme esforço para voltar ao MSN, tentando teclar com o misterioso Bloody.

Fora um esforço em vão...

Seus braços despencaram da mesa....

O pescoço não conseguiu mais equilibrar a cabeça...

Cindy apagou, usando o teclado como travesseiro....

CINDY DIZ:

m,cvmbjdcnjvbndfjkbndjbfdgdfgçdghfdfjghfdjbndvj

Provavelmente um diálogo incompreensível para qualquer pessoas.

Mas não para o velho Bloody...

BLOODY KEYBOARD DIZ:

Otimo...

Alguns poucos minutos se passaram....

Cindy estava mergulhada em sua overdose...

A musica havia terminado...

A porta do quarto se abriu...

Um homem alto e forte adentrou tranquilamente. Ele trazia um Laptop em baixo do braço. Usava uma mascara negra, com dois orifícios redondos na altura dos olhos.

Por alguns instantes ele ficou adimirando a fragilidade de Cindy, desfalecida, indefesa...

O homem talvez estivesse sorrindo por debaixo de sua máscara...

Ele então apanhou o mouse, e voltou a maximizar as fotos na tela do computador. Havia a imagem da mesma mulher amarrada, agora com o corpo coberto por cortes profundos, sua cabeça pendia do corpo, aparentemente morta.

O sangue dela espalhava-se por todos os lados.

O homem fechou, e depois deletou o e-mail...

Tocou de leve o pescoço de Cindy, para verificar os batimentos.

Estavam normais. Ela estava muito drogada, mas ainda estava viva. Ele raciocinou por um momento, e resolveu que por hora, iria embora. Não quis que sua festinha naquela noite acontecesse com sua atração principal desacordada.

- Acho que exagerei um pouco na quantidade do pó. Não é mesmo, Cindy?? - disse ele, olhando para o corpo da garota. - Não faz mal...eu volto outra noite.

Um pequeno detalhe fez com que o homem desistisse de sua brincadeira. Quase tudo havia dado certo. Sua influência ao longo de várias conversas pelo MSN surpreendentemente eficaz, outra garota ingênua, muitos detalhes revelando ao astuto homem tudo o que ele precisava saber:

Informações íntimas á respeito dela...

O dia em que ela estaria sozinha em casa...

O endereço certo para que pudesse enviar a cocaina pelos correios...

Até mesmo descobrira que a mãe de Cindy, deixava sempre uma chave reserva, embaixo do tanque de lavar, no fundo do quintal...

Ele retirou um pequeno papelote do bolso, desta vez, um pouco menor.

O colocou sobre a mesa do computador, próximo á cabeça de Cindy.

Na tela de LCD, ele colou uma folha de papel, com uma pequena mensagem para sua inevitável vítima.

Depois se virou, e foi embora assoviando tranquilamente....

Na folha de papel, o recado. O que Cindy desejava com loucura, mas que certamente não fazia idéia do estava por vir:

"DURMA BEM CINDY. VC APAGOU E TIVE QUE ADIAR O NOSSO ENCONTRO. OUTRO DIA EU VOLTO... TE DEIXEI OUTRO PRESENTINHO, GUARDE PARA A NOSSA FUTURA FESTINHA. UM BEIJO DO SEU

BLOODY KEYBOARD"

(Michel-Metallica)