DOSSIÊ DE UMA INFÂNCIA

"A autenticidade de um amor verdadeiro não mede esforços, nem escolhe a hora de chegar"

(Autor desconhecido)

Juliam se afastou de mim com um largo sorriso...não aconteceu nada de mais! Foi apenas um pequeno selinho. Ninguém havia nos visto, e ele se virou para ir embora com um sorriso que só não era maior do que o meu...

"Vou me casar com você." Disse ele baixinho no meu ouvido. Eu acho que ele falou a verdade, pois dava pra ver o brilho nos seus olhos.

Então, depois de ficar um tempão que nem uma boba parada na calçada vendo meu amor se afastar, finalmente vou pra minha casa.

Essa é a melhor parte do meu dia: ir embora da escola, na agradável companhia dele.

Hoje eu fiquei com um pouquinho de raiva de mim mesma. Eu sempre fui uma grande medrosa!!! No instante em que ele me diz uma coisa tão bonita e importante como casamento, eu fico muda igual á uma porta. Acho que os meus poucos onze anos fazem mais efeito em mim, do que os doze dele.

Quando chego em casa, meu mundo volta a desmoronar. O idiota do meu padrasto está sentado na escada da frente, fazendo o que ele sabe melhor:

Nada!!

Quando passo por ele, finjo que nem o conheço, e entro rapidamente.

Alguns minutos depois, eu escuto ele me chamar:

- Doris!! Por que você demorou desse jeito??

Não respondo nada pra ele, tiro meu uniforme, coloco uma roupa mais confortável, e vou pra cozinha preparar o almoço.

Essa é a minha rotina de todos os dias da semana:

Levanto cedo, saio correndo pra escola, nem vejo minha mãe porque ela vai pro trabalho dela antes mesmo de clarear o dia. Encontro com meu grande amor na saída da escola, e chego em casa depois do meio dia. Meu padrasto e meu irmaozinho estão me esperando famintos. Depois do almoço eu tenho que cuidar da casa e do meu irmão.

Minha mãe só volta do trampo depois das dez da noite.

Eu nunca entendi direito o porquê de minha vida ser tão cheia de obrigações e responsabilidades. Todas as minhas amigas da escola precisam se preocupar apenas com os deveres de casa. E eu tenho uma casa inteira para cuidar. As vezes penso que ainda sou muito nova e não sei direito lidar com isso tudo, mas eu faço sem reclamar por causa de minha mãe.

Minha querida mãe possui uma qualidade, e um defeito gigantesco:

Ela é a mulher mais trabalhadeira que eu conheço. Eu não sei ao certo se isso realmente é uma qualidade.

Seu grande defeito é que ela é submissa demais...

Vou ser bem rápida sobre o passado dela:

Minha mãe apesar de ser uma mulher bonita, nunca teve estudos e sempre trabalhou de empregada doméstica. Um dia, o filho do patrão dela encheu sua cabeça de promessas de ganhos, seduziu-a, e a levou pra cama. Depois disso ele á demitiu dizendo que sua mulher havia descoberto. Um canalha mesmo, não acham??

Pois esse canalha é o meu verdadeiro pai.

Minha mãe sempre teve medo dele porque segundo ela, o cara é barra pesada, e por isso ela nunca procurou pelos seus direitos, ou melhor, os nossos...

- Doris!!!! O rango já ta pronto???

Droga!! Eu aqui pensando na minha mãe, e esqueci do almoço...

Vou até a cozinha e encontro uma pia lotada de vasilhas encardidas me esperando, e uma geladeira totalmente vazia. Quando a coisa fica desse jeito, minha mãe disse que é pra eu improvisar. Então vou até a casa da vizinha pedir um pouco de arroz emprestado.

- Minha nossa, Doris!! De novo!! - minha vizinha sempre resmunga isso comigo. - Diz ao vagabundo do seu padrasto, pra ele dar um jeito de arranjar um emprego. - Depois do sermão, ela me entrega uma vasilha cheia de arroz.

Deixo tudo pronto na mesa, aviso o vagabundo, e vou cuidar do meu irmão. Do meu quarto da pra ouvir os berros do meu padrasto, reclamando que só tem arroz e feijão na mesa...até que eu sinto uma certa sensação de desforra com isso. Quem manda ele não ir trabalhar??

Bem, como eu ia dizendo, minha mãe ficou desempregada, sem ter onde morar pois não tinha como pagar o aluguel, e com uma filha pequena pra cuidar.

Dai ela conheceu o vagabundo do meu padrasto. E ele nos trouxe pra morar aqui com ele.

Acho que nesses anos todos, se eu me lembro bem, ele deve ter trabalhado em uns três empregos, e nunca ficou mais que um anos em cada um deles. Aqui em casa quem trabalha pra burro é a minha mãe.

Só que ela não reclama porque também morre de medo dele...

Acho que eu sempre soube de onde eu erdei a minha covardia...

No começo, meu padrasto dizia que o emprego tava dificil, depois ele se envolveu com traficantes e foi pra cadeia. Quando ele voltou, ficou muito pior do que ja era, e passou á agredir minha mãe, dizia que não era obrigado a sustentar filho dos outros, e enchia a cara todos os dias...

Mas nada disso, nada disso me incomodava mesmo...

Afinal, o marido era dela, a gente não morava mais na rua e nem em casa de parentes. Sem falar que eu havia conhecido o homem da minha vida...

E pra dizer a verdade, eu achava que as coisas não tinham mais como piorar.

Mas elas pioraram...

Quando eu havia acabado de completar dez anos, ja estava inteiramente acostumada á minha vida de dona de casa. Foi quando comecei á notar uma mudança no comportamento do meu padrasto. Ele dizia que eu estava me tornando uma mulher, me encarava de um jeito estranho, fazia carícias no meu cabelo na mesa do almoço. Sempre quando estavamos sozinhos, longe da mamãe.

Comecei a ficar com medo dele...

Uma tarde de sexta, quando eu estava no meu quarto fazendo minhas lições de escola, ele apareceu na porta. Falou umas coisas estranhas, depois se sentou do meu lado. Me chamou de linda...

Meu coração batia aceleradamente, eu estava apavorada.

De repente ele retirou o caderno da minha mão e arremessou longe. Falou que eu não iria precisa dele naquela hora. Então ele agarrou meus braços, me deitou no chão, e subiu em cima de mim...

Eu sentia em meu rosto seu bafo quente e horrível...

A barba por fazer dele arranhava meu pescoço...

Suas mãos nojentas percorreram o meu corpo, até ele as enfiar por baixo do vestido e retirar a minha calçinha...

Seus dedos ásperos começaram a me tocar...

Eu comecei a chorar, aí ele tapou minha boca com a outra mão...

- Se você gritar, eu quebro o seu nariz.

Ele ajeitou-se entre minhas pernas...

Depois abriu o ziper da bermuda dele...

Eu não acreditava no que estava acontecendo...

Parecia um pesadelo horrível, e que logo eu iria acordar...

Apertei os olhos e implorei á Jesus que me salvasse...

Eu sentia ele ajeitando-se em cima de mim...

O corpo dele era pesado e forte, praticamente me imobilizava no chão...

Meu irmãozinho dormia no berço ao meu lado...

- Hoje você vai ser minha, princesa!!

Naquele momento eu preferia a morte...

No instante em que eu ja não tinha mais esperanças de ser salva, Deus ouviu as minhas preces...

A campainha da porta começou a tocar...

Ele saiu de cima de mim rapidamente, assustado...

Ajeitou-se e levantou do chão...

Eu enxugava minhas lágrimas no rosto quando ouvi suas últimas palavras:

- Se você contar á alguém, eu mato você e sua mãe, Ouviu??

Eu balancei a cabeça em sinal positivo.

Ele saiu do quarto e foi atender a porta. E eu figi pela janela...

Fiquei o resto da tarde, e o começo da noite escondida na rua...

Chorei feito uma pateta...

Fingir para minha mãe que nada havia acontecido foi fácil.

Difícil foi voltar pra casa...

Difícil foi tirar o suor nojento dele do meu corpo...

Difícil foi deixar de sentir aquele fedor dele...

Eu tinha dez anos...

Depois daquela tarde, ele não tentou mais nada comigo, e eu evitava ele o tempo inteiro. Quando desconfiava de alguma coisa, eu pegava o meu irmãozinho e fugia pela janela.

Ficava na rua até minha mãe chegar...

Agora que eu estou com onze anos, meu corpo parece mais desenvolvido, meus seios estão crescendo. Estou virando uma mulher de verdade.

Acho que por essa razão, meu padrasto voltou a me chamar de linda, me fala um monte de coisas estranhas, que para mim não são mais...

E ontem ele se ofereceu pra me ajudar com os deveres de escola...

Eu apenas ouço tudo calada.

Quando temos em nossa vida pessoas que a gente não vai muito com a cara, ou mesmo um inimigo ou rival de escola, alguém que a gente não gosta, eu penso que é muito fácil de lidar com isso. Basta que ignoremos...

Mas no meu caso não dá. Pois o meu inimigo morava dentro da minha casa...

Eu estava prevendo que não iria passar de hoje...

Foi dito e feito...

Meu padrasto forçou a maçaneta da porta do meu quarto...

Eu estava fazendo as lições...

Meu irmão dormia no berço...

Exatamente como á um ano atrás...

Só que desta vez eu havia deixado a porta trancada...

Sabia o que tinha que fazer...

A janela era minha salvação, a minha fuga...

Peguei meu irmão dormindo no colo. Subi a janela, e pulei para o quintal. O desgraçado estava me esperando em baixo da janela. Suas mãos pesadas arrancaram meu irmão do meu colo. Ele o deixou no gramado, depois se virou para mim com aqueles olhos gulosos:

- Hoje você não vai fugir!!

Tentei correr, mas ele me pegou. Eu batia os braços, esperneava, mas ele era mais forte e me segurou firme.

- Ja que você não quer ficar quieta, vai ser aqui mesmo...

Os muros do quintal eram alto e não dava pra ninguém do lado de fora, enxergar aqui dentro.

A cena se repetia...

Aquele nojento em cima de mim...

Eu chorando...

Uma de suas mão tapando minha boca...

A outra em baixo do meu vestido...

Me lembrei de Deus novamente. Ele havia me salvado uma vez, e eu não fiz nada para evitar que isso voltasse á acontecer. Eu não havia aprendido a tomar cuidado, e Deus não me daria outra chance...

Depois desse pensamento, eu abri os olhos...

Estava com o rosto virado, colado no gramado...

Eu não queria olhar pra cara daquele monstro...

Foi quando eu vi uma luz se aproximar...

Como se fosse um príncipe de contos de fadas, Julian apareceu de repente pra resgatar a sua princesa da torre.

Ele tinha um porrete nas mãos...

Uma pancada desceu violentamente na nuca do meu padrasto...

Ele apagou em cima de mim...

Julian pegou eu e meu irmão no chão e nos levou para longe dalí. Eu chorei no ombro dele, e contei-lhe a minha história...

Ele me levou pra casa dele. Sua mãe me recebeu com imenso carinho, eu a olhava como se estivesse vendo um anjo. O pai dele era igualmente legal e educado.

Julian contou para os pais o que aconteceu comigo. Eles disseram que não iriam me deixar voltar pra casa. Eu estava um pouco envergonhada, e ao mesmo tempo aliviada por estar longe do meu padrasto.

De repente minha mãe me veio á cabeça. Comecei a ficar apavorada. Disse que precisava voltar, que aquele monstro mataria a minha mãe...

A mãe do Julian interrompeu meu desespero, tocou levemente com suas mãos delicadas o meu rosto molhado. Ela pediu pra que eu ficasse calma, depois chamou por uma pessoa:

- Dona Ruth, pode vir até aqui por favor.

Minha mãe apareceu na sala onde nós conversávamos. Ela estava usando avental, e enxugava suas mãos nele...

Quando ela me viu, correu e abraçou-me forte.

Minha mãe era empregada da familia do homen que eu amava...

Eu nunca soube disso até aquele momento...

Passamos aquela noite na casa do Julian...

Meu padrasto desapareceu depois disso...

Os pais de Julian disseram que iriam cuidar de nós...

Eles arranjaram uma casa pra gente, ao lado da casa deles...

Julian falou pra mãe dele que me amava...

E eu...Bem, eu não me importo com o que as pessoas pensam. Não ligo quando dizem que ainda sou muito jovem para amar, para me relacionar. Elas não sabem o que aconteceu comigo. Tenho mais experiência de vida do que muitas mulheres que estão na idade adulta. E assim como as trevas, a luz também havia surgido muito cedo em minha vida...

Ninguém conseguirá mudar meu pensamento...

Jamais serei de outro homem...

Hoje eu estou aqui, sentada no banco da praça...

Eu, o Julian, e o meu irmãozinho, que ele insiste em chamar de cunhado...

Nós três tomamos sorvete...

Ele disse mais uma vez que me amava...

Eu olhei para o céu azul, e agradeci a Deus em meu coração...

Desde o dia em que conheci o Julian, passei a acreditar em contos de fadas. Pois minha história teve um final feliz, quando reconheci o meu príncipe encantado, vindo me salvar das garras do demônio pra sempre...

(Michel-Metallica)

Metallica
Enviado por Metallica em 30/06/2009
Reeditado em 31/08/2009
Código do texto: T1674989
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