A PAIXÃO MAIOR DE SUELEN

O sol esquentou após a forte chuva de verão. Salustiano dava uma volta a pé na invernada, como era de costume diariamente. Sua fazenda não era bem cuidada, mas parece que a sorte estava ao seu lado. O gado não morria e as plantações davam quase que automaticamente sem precisar de muito zelo. O milho e o feijão eram as principais agriculturas cultivada pela família. Uma vida média, sem muito dinheiro, tinham o suficiente para viver tranquilo. Dona Erondina sua esposa , fiel companheira, tinha a saúde muito instável. A maior parte do tempo passava adoentada.

O casal, já com quase doze anos de união, ainda não tinham filhos. Graças aos remédios receitados pelo médico da capital gaúcha, que Erondina pode ter o primeiro filho. A gravidez foi normal até mais ou menos o oitavo mês. No último período começou sentir dores. Salustiano Cabral quase entrou em desespero, não sabia o que fazer.

Sérgio Mendonça, o criado da casa, encilhou o zaino e saiu noite a dentro, até à casa de dona Eleonora, parteira da região. Chegando de madrugada na residência da bondosa senhora, levando consigo outro cavalo encilhado com um selim, para a condução da mulher. Esta como de costume, não se deu por trabalho. Avisou os seus, e lá se foram estrada à fora. Chegaram do retorno quase na hora do almoço. Dona Erondina estava um pouco melhor, já conseguindo fazer os trabalhos domésticos.

As dores haviam cessadas, mas, logo ao anoitecer, voltaram com mais intensidade. As contrações começaram. Passaram a noite em claro, utilizando uma velha lamparina.

A mais ou menos cinco ou seis da manhã, dona Erondina piorou. A velha parteira ordenou que todos os homens se retirassem. Foram alguns para o campo, outros simplesmente saíram para não presenciarem alguém dar a luz. Só ficou dona Eleonora e a comadre Teresa que auxiliava no parto.

O velho relógio da parede marcava oito horas. Ouviu-se alguns gritos. Nascia uma linda menina de olhos azuis. Que alegria. Depois de tantos anos...

Erondina sofria, mas seu coração explodia de júbilo. A linda Suelen... Era a coisa mais importante em sua vida, abaixo de Deus. As lágrimas não cessavam, cada vez que acariciava a criança. Finalmente... Sentia-se a mulher mais feliz do mundo. Os olhinhos claros da bebê brilhavam. Parecia que sentia que fora bem vinda à luz. O batizado ficou por conta de Serginho e a esposa Eliane. Naquela casa estava sempre cheia de amigos e parentes, mas a principal personagem: Suelen.

No primeiro aniversário, a menina estava gordinha e cada vez mais bonita. Quase nunca ficava doente, a não ser de vez em quando, uma dorzinha no ouvido ou na garganta. Em pouco tempo já estava boa. A vizinha Teresa cuidava da criança, devido ao estado de saúde da mãe.

Aos dezoito meses de vida da filha, a mãe adoentou-se pra valer. Tomando os remédios caseiros, estes não faziam mais efeitos. Salustiano a levou até Porto Alegre, para tratamento. Suas economias haviam acabado. Começou a vender o gado, cavalos e outros animais para pagar as despesas com a mulher. Os medicamentos davam uma pequena melhora, mas a dor voltava cada vez mais intensa. Em oito meses dona Erondina faleceu, deixando a pequena Suelen de dois anos e dois meses...

Salustiano havia ficado sem recursos para cuidar da filha. Esta ficara com seus tios, na capital gaúcha. Estes tinham uma vida financeira boa, o que garantia a educação dos filhos e da sobrinha...

Suelen concluiu até o curso colegial em um colégio protestante. Na festa dos quinze anos, conheceu Flórido, jovem moreno claro, olhos esverdeados, baixinho, romântico, poeta e muito gentil. Este sendo órfão de pai, desde cedo aprendeu a lutar pela sobrevivência. Havia colado grau no mesmo colégio há dez anos antes. O encontro dos dois foi uma coisa inesperada, pois ele participou da festa, graças a um trabalho que foi fazer na casa da família Cabral. Os dois entreolharam-se, conversaram e marcaram um encontro fora dali.

Na semana seguinte, em um restaurante na Avenida Farrapos, lá estavam os dois, conversando sobre seus planos futuros. Ele pretendia voltar a estudar e fazer o curso de Engenharia Elétrica. Ela gostaria de formar-se em Letras, pois era a área que gostava. Flórido, com muito custo e timidez, segurou sua mão. Esta correspondeu segurando a dele também. Trocaram sorrisos. Os beijos reservaram para o próximo encontro.

A jovem loira saiu daquele lugar muito feliz. Ninguém havia mexido tanto com seu coração. Dormia e acordava pensando em Flórido Nev. Ele por sua vez, fazia o mesmo. Parece que haviam nascido um para o outro. Todas as tardes ela ia à capela próximo da sua casa para rezar. Rezava pelos amigos e pela felicidade dos dois. Sonhava em viver ao seu lado, poder lhe dar filhos e fazê-lo feliz. Uma semana sem ver seu amor, parecia durar uma eternidade.

A meningite começou a atacar as pessoas sem piedade. A ciência médica não havia descoberto o remédio para eliminar a praga. Suelen recebeu um telefonema. A voz no outro lado da linha quase não saía. A emoção era grande. Uma má notícia. Flórido... adoentou-se, pouco tempo depois... faleceu... O mundo parecia ter acabado para ela. Sentia-se solitária, Ninguém, mas ninguém mesmo, seria como ele. - Pensava. O que fazer da vida? Resolveu dedicar tempo para Deus, e em ajudar as pessoas.

Após ter se formado em Filosofia e Letras, realizado um dos seus sonhos, procurou o Convento da Irmãs Beneditinas, onde foi bem recebida. Com muita inteligência, no tempo certo, já estava trajando o uniforme das noviças. Estava toda feliz. Havia superado todo o choque e a tristeza de ter perdido quem tanto amava neste mundo. Foi também uma alegria muito grande para o senhor Salustiano, já avançado em idade. Para os tios, foi um pouco chocante, pois a família era protestante. No ano seguinte ao da formatura no convento, logo que começou a trajar o hábito, perdeu seu amado papai. Estava órfã de pai e mãe.

Irmã Suelen Nunes Cabral tinha um sonho, que era o de ajudar os menos favorecidos. Após ter cursado a Faculdade, começou a trabalhar com deficientes auditivos, ministrar aula para os surdos. No início achava um pouco estranho, mas aos poucos foi se acostumando.

Levantou uma campanha para arrecadação de recursos para fundar uma instituição em que pudesse ajudar mais pessoas. Do Governo, conseguiu muito pouco. Cortava estradas, a pé ou de carona com esse objetivo. Conheceu um judeu rico, dono de uma tecelagem e uma rede de lojas de confecções e calçados, que preferiu não revelar o nome a público. Este abrira a mão. Financiou toda a obra, inclusive pagando professores que se fizeram necessário, por um período de cinco anos. Pediu que na história da escola, constasse apenas como anônimo. Era só para mencionar como um “Judeu Legítimo”. Aí, a bondosa irmã, realizara o mais importante dos seus sonhos, que era ajudar as pessoas com deficiências auditivas. Era uma escola especial. Estava fundada a Escola de Surdos do Sul.

Uma instituição sem fins lucrativos, ajudando a centenas de pessoas deficientes. Após a morte do velho judeu, já tinham recursos o suficiente para continuar o trabalho. Mais tarde, conseguiram ajuda de outros países. Toda a população pobre se beneficiava, pois as roupas vindas do estrangeiro eram vendidas por preço irrisório. E o tempo foi passando...

Na Escola de Surdos do Sul, ninguém mais via aquela freira dinâmica, cheia de saúde. Ao invés disso, uma irmã paralítica, cega e surda, avançada em idade. Era a presidente de honra. Seu lugar, um quarto solitário, rezando e cantando o tempo todo. Às vezes rezava, às vezes delirava. Não tinha mais noção do que se passava na administração e no funcionamento do instituto, por ela fundado. Perguntava por Flórido, se ele ia chegar, e se havia sarado da meningite. Era conduzida pelas outras irmãs e pelas funcionárias da instituição. Irmã Suelen. Não houve a cura da sua surdez... mas, mesmo assim, era honrada e respeitada por todos. Deixou registrado o seu último pedido. Seu último sonho...

Em um dos jardins da escola, há uma homenagem à irmã caridosa. Sua sepultura, um túmulo simples, coberto de flores. Seu sonho foi realizado. Essa foi A MAIOR PAIXÃO DE SUELEN. Ninguém a esquece... amada irmã...

(Christiano Nunes)

PS. ESTE CONTO ME DEU A FELICIDADE DE UM SEGUNDO LUGAR NO ESTADO DO PARANÁ, NUM CONCURSO LITERÁRIO PROMOVIDO PELA SECRETARIA DE EDUCAÇÃO, NA CIDADE DE CASCAVEL (REGIÃO OESTE DO PR).