Olívia de Bordeaux, Cap. VI

A Associação Médica de Puericultura funcionava numa casa antiga, num ponto da orla da cidade próximo ao Centro. O pavimento térreo dispunha de um confortável salão onde funcionavam, em ambientes separados, o bar e o restaurante. No salão todo caberiam cerca de 120 pessoas, número aproximado dos convidados de Olívia. Às sete e meia tinham assinado o livro de presença menos de trinta pessoas, o que indicava que o número total de participantes não chegaria talvez nem à metade dos que haviam sido chamados.

Havia duas portas que se comunicavam com o pequeno jardim em que quatro ou cinco bancos se abrigavam sob três árvores frondosas. Percebia-se nitidamente, pela disposição das portas em relação ao salão, qual era a de entrada, mais estreita, e a de saída, com pelo menos o dobro da largura da anterior. Curiosamente um vaso largo, contendo uma samambaia chorona em seu suporte de ferro elevado, fora colocado nas proximidades do vão por onde se entrava. O que certamente iria provocar nas imediações dessa porta um acúmulo de pessoas, se viessem todos os que tinham sido chamados. Mas às sete e meia, com menos de trinta presentes, o acesso era fácil, bem como a disponibilidade de assentos. Do que se valeu aquela mulher loura para entrar discretamente e ocupar uma cadeira a um canto do salão, depois de assinar o livro de presenças.

Vestindo um blazer cinza e uma calça comprida na mesma cor, a única coisa que chamava a atenção em Flora eram os óculos escuros, àquela hora do dia. O impacto provocado pela loura entre os presentes, que se reuniam em grupos distintos onde a conversa corria solta e animada, não durou muito tempo, embora ninguém conhecesse a figura. Ficando por conta de alguma excentricidade, por se tratar talvez de uma outra escritora, o uso de óculos escuros àquela hora.

No estacionamento externo, contíguo à saída do jardim (ou entrada da Associação), Gustavo permanecia dentro do carro, verificando se havia alguma incorreção no relatório da viagem que deveria apresentar ainda no dia seguinte em Lisboa.

Às oito horas já tinha aumentado o número de presentes, o que diminuiu a importância que se podia dar à mulher de óculos escuros que ninguém conhecia. E que já tinha adquirido o seu livro das mãos de Olga, encarregada do oferecimento dos exemplares aos convidados.

120 ou 60 pessoas presentes para Olívia daria no mesmo, tal o seu estado de alegria e animação com o acontecimento. Como previra, ela se sentia bem melhor, em relação à parte da manhã em seu apartamento. Para ela o salão estava cheio. Reparava nas pessoas apenas quando elas se aproximavam para o autógrafo, tornando-lhe maior a emoção. Sabia que todos estavam ali – os primos e os irmãos, seus amigos do hospital, seus amigos mais próximos e Dentinho, representando o pessoal da comunidade. A ausência de Abel era sentida e imediatamente anulada, pela certeza do dia seguinte, isto é, dia do lançamento na quadra da escola de samba. Aí, sim, com Verônica, Franciszinha e todo o pessoal da comunidade.

O copo de vinho Bordeaux ao lado. Sendo com freqüência reabastecido pelo garçom. O que não fugia, sempre que possível, à observação cuidadosa de Flora, ainda afastada da mesa ocupada pela autora. Mantendo-se agora de pé, Flora podia ir com os olhos do vinho à Olívia, e vice-versa, sempre que o permitissem as pessoas entre ela e a mesa de autógrafos. E lutar para que a beleza daquele rosto moreno, com aqueles cabelos castanhos, não a iludisse quanto ao que tinha ido fazer ali. Ou procurar não se deixar vencer pela força daquele sorriso estranho que, com as sobrancelhas espessas e quase unidas e a linha leve dos lábios, poderia fazer com que ela jogasse por terra tudo o que tinha sentido e nutrido pela autora de Dulcinéia Divina. Não, aquela viagem não poderia ser em vão. Mas seria preciso vê-la de pé. Saber se as curvas do corpo corresponderiam à perfeição das do rosto. Desgosto profundo por tudo que é belo, eu tenho que ter. Se ela não se levantar até às oito e dez, eu entro na fila. Quando chegar a minha vez, estarei no limite. O que fará com que Gustavo já tenha acionado o motor.

E Olívia não se levantou. Ladeada por duas amigas do tempo da faculdade, não escondia a satisfação por estar autografando uma quantidade de livros que não esperava. Todos tinham comprado. Melhor do que a força do texto era o reconhecimento da simpatia dos amigos. Sentir-se querida. Tola vaidade, alegria boba, mas que nos faz bem.

Dez segundos seriam um ano quando Olívia olhou nos olhos que não viu. A caneta caiu-lhe das mãos com o impacto do primeiro tiro. Com o segundo disparo, na altura do pescoço, a cabeça da autora caiu sobre o livro reservado para Abel. A loura guardou no bolso do blazer rapidamente a arma, que ficou junto ao livro previamente adquirido. E saiu correndo pela porta mais larga, alcançando em segundos o jardim. Um dispositivo acoplado à arma abafou os estampidos dos disparos, fazendo com que as pessoas mais afastadas levassem algum tempo para ter idéia do que tinha acontecido. Alguns dos mais próximos entraram em choque, perdendo a oportunidade de uma reação imediata, e os outros apressaram-se em acudir Olívia, gritando por um médico ou uma ambulância. Ninguém poderia ter previsto aquilo.

E Flora pôde prosseguir em passos apressados, quase que correndo, para sair do jardim e alcançar o carro do marido, com o motor ligado. Ao sentar ao seu lado, admirou-se com a presteza de Gustavo em se achar fora da vaga, já na pista de rolamento.

-Quê barulheira é aquela lá no salão?, indagou Gustavo.

-Não sei, não sei! Parece uma briga.Vamos embora logo! Não podemos perder o avião, respondeu Flora, procurando conter a impaciência.

Quando alguém gritou “Segurança, segurança! Péga, péga a assassina!”, o carro de Gustavo já tinha deixado a rua da Associação Médica e alcançado a via expressa em direção ao aeroporto.

No aeroporto, cerca de meia hora depois, Flora teve tempo, no banheiro, para se livrar da peruca e dos óculos escuros. Guardou-os, juntamente com o revólver – um Magnum 357, 5 tiros –, na bolsa preta de mão aveludada que mantivera dobrada num dos bolsos do blazer. Discretamente num dos saguões do aeroporto, a bolsa foi colocada por Flora na mala dela maior, posteriormente despachada antes da rápida passagem do casal, para um whisky ou licor, pelo ambiente VIP da companhia aérea.

Como previra, às 21h45, portanto, Flora e o marido já se achavam dentro do avião, em função de o acesso para os passageiros de Primeira Classe ocorrer antes dos demais.

Dormiu, após o jantar, praticamente por todo o tempo restante do vôo. O que deixou Gustavo intrigado. Não exatamente porque ela não tivesse falado com ele após a refeição. Ele sabia que atitudes imprevisíveis eram a sua marca. Mas porque não viu Flora levantar-se para ir sequer ao banheiro, nos momentos em que esteve acordado, durante as seis horas de vôo transcorridas. Deve ter sido a praia, ou toda a agitação em função do horário. Ou quem sabe aquele Peixe à Brasileira lá do restaurante ao lado do hotel, delicioso realmente, mas prejudicado pelo azeite que, à exceção do nome, nada tinha a ver com o português genuíno. Ou devia-se tudo a ela mesma, com suas atitudes às vezes estranhas, para não dizer excêntricas, com base num irracionalismo que ele sabia não ser conveniente por à prova.

Não era o dia de Justine Saint-Clair na casa do Dr. Gustavo Henrique de Almeida Toledano. Mas, antes de viajar, Flora pedira-lhe que trocasse a terça pelo sábado. Seria melhor alguém em casa para recebê-los, quando chegassem de viagem. Podia ser que houvesse a necessidade de alguma providência que tivessem que tomar rapidamente após o regresso a Lisboa. Ou a necessidade de ser transmitida alguma informação a alguém que viesse procurar eventualmente pelo casal. A quem deveria ser dito que o Dr. Toledano e a esposa continuavam viajando.

-Justine, tudo bem? Em meia hora estaremos aí, disse Flora, ainda no aeroporto. Prepare um banho quente pro Dr. Gustavo. Apesar de sábado, ele terá que ir ainda hoje ao escritório.

-Mas não vai nem comer alguma coisa? Tomei a liberdade de preparar um lanche.

-Não se preocupe. Deveremos jantar mais tarde na casa do Sr. Ministro. Uma refeição completa por dia é mais que o suficiente.

-Está bem, madame. Fizeram boa viagem? Correu tudo bem? Como foi o lançamento?, Justine mostrava-se mais receptiva.

-Mais tarde conversamos, Justine. Gustavo já vem vindo com as malas. Não gosto muito de usar o celular dele.

-Como preferir, madame. Devo dizer que por aqui tudo normal. Apenas uma correspondência que chegou para a senhora. Coisa sem importância, talvez.

-Ótimo, Justine. Até logo.

Gustavo já havia saído e Flora, depois de um bom banho quente também, saboreava na espaçosa cozinha do apartamento a salada mista com fatias de rosbife frio que Justine havia preparado.

-A senhora vai querer ver agora a correspondência?

-Pode ser. É apenas uma, não? Assim, a gente vê e joga logo no lixo.

Justine voltou em segundos com um envelope num agradável tom amarelo esmaecido. A cor do papel sugeria o convite no sentido de que fosse pelo menos aberto pelo endereçado. Flora notou o interessante logotipo no canto superior esquerdo, mostrando duas ou três silhuetas femininas que conversavam ou se abraçavam. E logo abaixo a inscrição, La Maison Top Models, Beauty Parlor. Definitivamente não deve ser para mim. Mas resolveu abrir, enquanto Justine ia à geladeira para lhe servir um suco. Observou que o fino papel contendo a mensagem tinha a mesma tonalidade do envelope, além de um leve perfume que ainda conseguia exalar. Começou a ler.

La Maison Top Models

Beauty Parlor

Querida Flora,

Sei que sumi. Compromissos inadiáveis. Que aparecem à toda hora. Que não nos perdoam se não soubermos mantê-los. Tão imperdoável quanto a menor negligência com o visual que nos é exigido.

Mas estou aqui de novo. Para o nosso convívio. Ou talvez pra você, se de mim precisar.

Não vou aceitar que não venha ao meu aniversário. Será numa das suítes do Hotel Sheraton Lisboa & Towers. Informo-lhe ainda hoje o número por e-mail. Na próxima quarta-feira, a partir das oito. Apenas meus pais e minhas duas irmãs com os maridos. Nada de fotógrafos. Nada de ninguém por perto. Depois ficaremos sozinhas. Matando algumas saudades. Diante de uma vista magnífica do Castelo de São Jorge e do Rio Tejo. Estou certa de que no dia seguinte poderemos tomar tranqüilas o café-da-manhã em nossa suíte. O marido entenderá. Talvez lhe deva coisas do tipo.

Beijos inusitados,

Helena Monnard

Flora suspirava fundo ao término da leitura, imaginando ter escutado de Justine que uma loura alta, de lábios espessos e pele aveludada, tinha vindo trazer o cartão pouco antes de seu telefonema do aeroporto. Cuja mensagem terminava com beijos que definitivamente nada teriam a ver com um grupo de garotos criados em duas favelas na cidade do Rio de Janeiro.

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 11/11/2009
Código do texto: T1917048
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