Olívia de Bordeuax, Epílogo

A notícia deixou muita gente abalada no Terreirão 3. Em especial a pequena família de mãe e filha que moravam numa das casas em frente. Verônica jurava que não era bem o que tinha entendido no noticiário do rádio. Naquele sábado pela manhã, em que se esmerava em preparar alguns pasteizinhos e bolinhos de bacalhau que tinha prometido a Olívia, contra a vontade da pneumologista de sua filha. Naquele sábado, dia do lançamento do livro na quadra da escola de samba da comunidade. Certamente com a presença de muito mais que as 120 pessoas que a autora tinha convidado.

O dia começava nublado, mas havia indícios de que faria um sol bonito. Verônica já tinha saído mais de uma vez para o Terreirão. Tinha de desabafar com alguém. Chorou no ombro de duas amigas que não eram lá muito íntimas. Reclamou da vida com o Seu Aniceto, o sapateiro, e depois com o Juliano, com quem comprava pão de dois em dois dias. Voltar pra casa? Continuar com os pastéis e os bolinhos? Encontraria Franciszinha brincando na cama com as suas bonecas, uma delas presente de Olívia. A menina já tinha entendido tudo. Por isso brincava sozinha e quieta, o que não era habitual.

Ao sair pela quarta vez para o Terreirão, alguns bolinhos queimados no fogão, se deparou com um Abel chegando assustado, andando apressadamente na sua direção.

-Mas o que foi isso, Verônica? O que foi isso, meu Deus?, o rapaz perguntava em voz alta.

-Ah, Abel. Mataram a nossa guerreira. Mataram a nossa irmã, respondeu Verônica, as lágrimas inundando-lhe de novo o rosto.

-Mas como? Foi lá no lançamento? Foi ontem?

-Foi... foi... ontem. Uma ... uma mulher... loura. Ou... ou um homem... disfarçado.

-Mas ninguém segurou ela? Ninguém correu atrás?

-Dentinho... ele não te... contou? Surpresa, meu irmão. Todo... todo mundo ficou parado. Abel, ninguém esperava, disse Verônica, voltando a chorar copiosamente.

-Dentinho não me falou. Apenas me disse que era pra eu vir depressa de São Paulo. E agora?, perguntou Abel, desolado e triste.

Cerca de 200 pessoas se encontravam diante da porta de entrada da quadra da escola de samba desde duas e meia. Muitas foram avisadas da ocorrência e preferiram não aparecer. Dois vendedores de pipocas vieram logo com suas carroças e um vendedor de cachorro-quente instalou a sua barraca nas proximidades das duas biroscas existentes na calçada em frente à quadra.

Vários pacientes de Olívia chegaram até bem mais cedo. Excepcionalmente o pessoal do “movimento” permitiu que moradores de áreas sob jurisdição de outra facção pudessem ter acesso ao local, em função de serem pacientes da autora do livro que ali seria lançado. Médica por eles também respeitada. Muitos pensaram que o corpo estivesse sendo velado no local. O enterro fora marcado para as cinco horas.

O interior da quadra permanecia praticamente vazio. Ninguém na arquibancada de quatro degraus altos em concreto, paralela ao muro fazendo divisa com a rua. Na lateral direita do primeiro degrau da arquibancada em frente, Verônica olhava para um ponto qualquer no piso da quadra ou para o meio da baliza de futsal. Franciszinha a seu lado, calada, quieta e triste, apesar do vestidinho rodado, novo, de um estampado alegre, comprado especialmente para o lançamento do livro. Na lateral esquerda, no último degrau da arquibancada, Max, Tiago e Dentinho atuavam com atabaques e tamborim na marcação discreta do que ouviam a partir da voz meio abafada de Abel. Sentado numa cadeira na quadra, na direção de seus amigos, mantendo um surdão apoiado nas pernas, Abel entoava algo como um lamento, travestido numa canção de melodia desconexa na qual procura encaixar as palavras que certamente improvisava:

... quem sabe quanta vontade

surgindo, sentindo você

diante do primeiro altar

distante e tão perto de mim

como no dia da tarde

amena e de frente pro mar

não digo que só valha a pena

o que não se deve tentar

na profusão de desejos,

Olívia, mil beijos agora,

não sei o que não me detém...

Na segunda-feira à tarde o movimento podia ser considerado normal numa delegacia do centro da cidade. Verônica tinha conseguido obter do patrão permissão para ausentar-se nesse dia à tarde. E devia esperar pelo atendimento que estava sendo prestado pelo escrivão ao senhor alto e calvo, claro, elegantemente trajado, que já estava sendo ouvido quando ela chegou. Sentou-se com Franciszinha num banco de madeira comprido que dali a instantes, imaginou, estaria tomado por muitas outras pessoas. Todo mundo é vítima de violência nessa cidade. Matam-se as pessoas sem mais nem menos. Um roubo ou assalto a cada esquina. Um estupro à toda hora. E ninguém faz nada. Ninguém reclama. Ninguém dá queixa.

Ao entrar na sala do escrivão, cuja porta era mantida aberta, Verônica deparou-se com o elegante senhor que acabara de ser atendido, sendo por ele cumprimentada com gentileza e satisfação.

-O bacana aí parece contente, comentou Olívia em voz baixa ao sentar-se, ocupando Franciszinha uma cadeira ao lado da sua.

-Conseguimos recuperar o carro dele. Está indo buscar o veículo agora. E a senhora? Em que posso servi-la?, perguntou o escrivão, alternando o olhar entre a tela do monitor e o teclado do computador.

-Vim saber cumu é que estão as apuração do caso da escritora Olívia Bastos de Alencar, médica pneumologista.

O escrivão abriu uma gaveta à esquerda da mesa, dela retirando o que poderia ser um processo de capa cinza, sem olhar ainda para Verônica. Notou apenas que a menina ao lado da mãe havia se levantado. Parecia intrigada com o pequeno boneco de borracha sobre o monitor, representando um papagaio.

-O caso da Associação Médica de Puericultura?, indagou o escrivão, folheando o processo.

-Perfeitamente. O senhor não conseguiu nada ainda? Num deu pra prender ninguém ainda?

-Não deu, senhora. Não é bem assim. Quando fomos acionados, o suspeito já tinha se evadido.

-Mas os senhores não consultaram a lista de presença? Drª Olívia disse que ia ter no local um livro pras pessoa assiná.

-Vamos ver esse livro sim. A senhora é Dona Verônica, não é isso?

-Exatamente.

-Então, vamos ouvir a senhora; a moça que distribuiu os livros, Olga; o rapaz que tocou cavaquinho, o Dentinho. Vamos ouvir todo mundo.

-Os senhores ouviram falar que parece que a mulher (ou homem) usava uma peruca loura?

-Claro, Dona Verônica. Estamos sabendo disso sim. Fique tranqüila que tudo faremos pra prender o assassino.

-O senhor sabe me dizer em quanto tempo? Temos prazo pra isso?, Verônica fez a pergunta sem muita firmeza na voz.

Nesse momento, Franciszinha, que brincava com o papagaio há algum tempo, olhou assustada para sua mãe, por ter o boneco caído acidentalmente no chão. Pensou que ele poderia quebrar-se.

No pátio ao lado da delegacia, o senhor alto e calvo, elegantemente trajado, continuava sorrindo, mas não com tanta satisfação. Verificara que de seu carro 0km havia sido retirado o CD player, com a danificação parcial do painel, e trocados os quatro pneus novos por outros flagrantemente bem utilizados. Os responsáveis pela empresa que lhe vendera o rastreador garantiram-lhe que o veículo deveria estar praticamente intacto, pois os assaltantes o haviam abandonado pouco tempo depois de praticarem o roubo.

Na Biblioteca Estadual Afonsino de Menezes, em frente à delegacia, uma bandinha da rede de ensino de Segundo Grau, no melhor estilo dos velhos tempos, tocava um dobrado, na solenidade em que se comemorava o recém-criado Dia do Aluno. Os estudantes vestiam o uniforme de gala do colégio do estado e o professor-regente um terno azul, de paletó com botões dourados, e um quepe onde se liam as iniciais I.E. – curiosamente significando Imagem e Ensino. Verônica resolveu atender à filha, que parecia interessada em ouvir o som da bandinha, detendo-se na calçada em frente à biblioteca, antes de se dirigirem ao ponto do ônibus.

Outubro de 2005

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 14/11/2009
Código do texto: T1924003
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