Encanto

No apartamento, no último andar, ainda dormia, o sorriso estampado no rosto, os olhos sedutores, entreabertos, uma expressão grave, porém ingênua e a cabeça repousada numa almofada.

Ela era adorável, recém-formada em psicologia. Estatura média, cabelos claros, olhos castanhos. Morava em Campinas, tinha o próprio apartamento. Deixara os pais há cincos anos numa cidadezinha do interior, para poder estudar e ter mais oportunidade de emprego. Realmente fizera uma boa escolha, adorava a profissão e as pessoas com quem lidava. Assim era Marina, doce e meiga Marina.

Cláudia também não era má, apesar de insistente e intrigante. Trabalhava numa clínica de dependentes químicos. Olhos verdes, piedosos.

Pedro, sensível, bondoso e sorridente. O mais jovem de todos. Em várias escolas de Campinas prestava seus serviços, amava as crianças. Alegre, um lindo sorriso, o Pedro.

E, finalmente, Fábio, o mais experiente, decidido e seguro. Testa enrugada, quando pensando. Obstinação era a sua marca, era sempre atento a tudo e a todos, mas sabia ser amável e compreensivo com seus pacientes no hospital psiquiátrico.

Marina, doce, cabelos sedosos. Cláudia, intrigante, olhos piedosos. Pedro, bondoso, lindo sorriso. E Fábio, decidido, fronte enrugada.

Quatro jovens, quatro vidas diferentes, experiências diversas. Porém, tinham algo em comum, além de exercerem profissões parecidas e serem bem-sucedidos em suas carreiras.

Fora uma criança bastante feliz, criada com muito carinho e atenção de todos os familiares. Tinha olhos que enterneciam a quem quer que fosse e um sorriso ingênuo, irresistível. Apesar da doçura e da pouca idade, sempre fora firme nas decisões que tomava e lutava até conseguir o que queria.

Já adolescente, começou a se interessar pelos fenômenos e mistérios que envolviam a mente humana. Sendo assim, passou a estudar, era tudo fascinante e, com um desempenho exemplar, formou-se. Adorava a profissão, sendo exemplo de dedicação e amabilidade para com seus pacientes.

Marina, examinando mais uma vez os cabelos no espelho, sorriu a própria imagem e desceu, pela escada, cumprimentando o porteiro, alegre. Tirou o carro da garagem e encaminhou-se à clínica, montada por uma amiga, mais velha, neurologista. Logo que se formara, Helena a convidou para trabalhar em sua clínica, Marina, sem pensar duas vezes, aceitou o convite daquela figura irresistível, encantadora.

No último andar, no apartamento, o telefone tocava com persistência.

- Ninguém em casa. Onde será que se meteu?- indignado, Pedro indagava à escova de dente que segurava bem diante dos olhos.

Tentou mais uma vez, mas ninguém atendeu. Então, como já estava minutos atrasado, acabou de se vestir, trancou a porta do apartamento, pegou o elevador, pois até o térreo, a quantidade de degraus que teria de descer era a maior possível naquele edifício. Meio desconfiado, olhou de um lado ao outro da rua, chamou um táxi e foi para a escola.

Fábio andava estranho, com a cabeça cheia de problemas, A rotina do hospital o deixava exausto. Com pesar, afastou os cobertores de si e levantou-se devagar. Barbeou-se, pensou nas pessoas que viria naquele dia.

Na garagem, correu os olhos pelos carros estacionados, encontrou o seu, ainda estando com sono, demorou um pouco.

Mal girara a chave, o celular tocou. No visor, analisou o número. Não o reconheceu, mas devia ser algo sem importância, desligou o aparelho e seguiu para o hospital.

Pedro, aproveitando o intervalo de tempo livre, tentara o outro telefone. Ficou irritado.

Cláudia não fora trabalhar, nem se encontrava em casa. Tinha outros afazeres.

Gente nova no hospital. Fábio examinou a figura simpática, mais uma pessoa aos seus cuidados. Geralmente, as novidades o estimulavam. Mas havia alguma coisa naquela voz que o deixava apreensivo.

- Liguei para o senhor hoje, como não o encontrei e não fui trabalhar, resolvi vir até aqui. – e um sorriso inebriante fez-se em sua face.

- Realmente saí mais cedo de casa hoje, e o celular estava desligado.

Apresentações feitas. Julgara mal, estava diante de um ser humano encantador. Ficaram uma hora conversando e ficou resolvido que as consultas seriam no consultório particular de Fábio, já que o psiquiatra avaliara o caso como complexo, mas não a ponto de precisar internar. Insônia, apenas isso.

Despediram-se. Entretanto, a imagem composta por aqueles olhos, cabelos, sorriso, assinalados por uma firmeza surpreendente não lhe saía da cabeça.

Marina estava no horário do almoço, o telefone tocou. Ela reconheceu o número no visor do identificador e atendeu:

- Pode falar. – informalmente, cumprimentou.

- Oi.

- Oi, algum problema, estou atrasada?

- Não. Só queria que viesse um pouco mais cedo hoje. Estou esperando. – docemente, pediu.

- Tudo bem. Estou indo.

Arrumou a mesa do almoço, apanhou a bolsa e desceu. Chegando ao local de trabalho, sorriu à secretária e encaminhou-se a própria sala. Helena andava estranha, nem a cumprimentou quando chegara.

Antes de entrar, surpreendeu-se com o comportamento de quem a esperava. Parecia com medo de alguma coisa. Mexia nos cabelos, bonitos, nervosamente.

- O que foi? Você está bem?

- Não.

- Conte-me, o que houve com você? Levou algum susto? Decepção?

- Não.

Marina já começava a preocupar-se. Era terapeuta daquele ser encolhido na cadeira há algum tempo, e nunca presenciara uma crise sequer. Sentou-se, tomou suas mãos frias entre as suas e, calmamente, pediu que lhe contasse o que havia acontecido.

- Está tudo bem, agora que você está aqui.

- Não quer mesmo falar?

- Não. Foi uma coisa sem importância.

- Bom, então, dê um sorriso para mim. – ela não quis insistir, mais tarde descobriria.

Sorriu, os olhos brilharam. Marina ficou mais tranqüila, talvez não tivesse sido nada mesmo. Voltou a trabalhar. O dia transcorreu normalmente, porém a imagem da pessoa aflita e apreensiva que havia encontrado não lhe deixou um momento sequer, nem mesmo durante a palestra que fora assistir de outro jovem psicólogo, sobre crianças.

Mais uma noite de insônia, Cláudia ficava em pânico quando isso lhe acontecia.

Pedro pensava em Marina, tão atenciosa, ela o acalmara naquela tarde, acabando com todo o nervosismo.

Após algumas consultas, Fábio ficara realmente cativado pela nova personagem que, semanalmente, aparecia em sua clínica. Um caso típico de insônia. Os olhos, intrigantes e questionadores, faziam-no até desconcentrar-se.

Era seu dia de consulta. Marina chegou, foi para a sala. Estranhou, não estava ali, sempre chegava antes dela, sendo a primeira consulta que tinha após o horário de almoço. Não se importava e sempre estava lá, 15 minutos mais cedo.

Abriram a porta.

- Olá, tudo bem?

- Tudo, sim.

- Por que não estava aqui quando cheguei?

- Tive que resolver uns problemas, coisa simples.

- Certo, que papel é esse? – apanhando o papel que deixara cair, Marina quis saber.

- Nada importante. – mas, antes de poder reagir, Marina lera.

- Receita de calmante?

- Estou tendo muitas insônias.

- Por que não me disse?

- Tenho qualificação suficiente para poder tomar o remédio que quiser, não acha?

- Então, por que tem um nome de médico aqui? Fábio Almeida?

- Um amigo. Só queria saber a opinião dele.

Marina não respondeu, nem escondeu sua desconfiança. Se queria uma opinião, por que não pedira a dela?

Tentou agir normalmente depois daquilo, mas a consulta acabou e ela ainda ficou pensando sobre o assunto.

Com os passar dos dias, Helena continuava misteriosa, triste, e Marina não sabia se falara ou fizera algo que a deixara chateada, mas o fato é que a amiga não se abria mais com ela, ficava difícil ajudá-la assim, se estivesse com algum problema.

Inferno. Durante o mês seguinte, era a essa palavra em que se resumia a vida de Fábio. As noites insones da criatura sorridente, com quem ele simpatizara, tornaram-se suas. Ameaçava cometer suicídio, pelo telefone, bilhetes e e-mails, levando Fábio a exaustão na tentativa de conter seu desequilíbrio.

Marina passava a sofrer diariamente, não mais se concentrava nas outras pessoas que atendia. O comportamento de quem a preocupava, depois de descobrir a receita de calmante, piorara nas últimas semanas, tornando-se uma pessoa extremamente agressiva, totalmente o contrário da personalidade doce e alegre que aprendera a entender.

Chegara ao limite, não podia mais suportar aquilo. Todas as noites, às 11h, nem um minuto a mais, nem um a menos. Fábio continuava recebendo, no consultório, quem o transtornava tanto, mas, à luz do dia, era dócil, os olhos cheios de ternura de sempre. Ele tentava, mas não obtinha sucesso em falar sobre o que vinha acontecendo. As posições médico-paciente se invertiam.

Para manter a própria integridade psicológica, decidiu viajar, esquecer aquela personagem que povoava suas noites insones. Parecia-lhe que tinha se envolvido com gente que conhecia muito bem a mente humana, realmente alguém profissional. Que o torturava daquela maneira por puro e maléfico sadismo, para testá-lo, descobrir até quando suportaria.

Pedro estava exultante, atingira seu objetivo, finalmente.

Cláudia, que há muito não dormia uma noite inteira, chegou atrasada ao serviço naquela manhã, visto que dormira demais, pois, finalmente, pôde relaxar, ao menos por um tempo.

Helena, naquela amanhã, parecia disposta, cheia de vida. Vendo-a, Marina alegrou-se, a amiga estava voltando ao que sempre fora. Mas, um pouco mais tarde, ao deparar-se com o caso preocupante, perdeu todo o entusiasmo.

Marina resolveu, de súbito, viajar à cidade em que os pais moravam, pediu a secretária que desmarcasse todas as consultas das duas próximas semanas. Não conseguia mais trabalhar, nem suportar diariamente a presença daquele ser inquietante em seus pensamentos. Avisou Helena, que disse, com um sorriso amistoso:

- Vá, precisa descansar um pouco mesmo, minha amiga.

Logo que Marina saiu, Helena pediu a secretária uma lista telefônica, e pôs-se a estudá-la, queria contatar dois pacientes.

Não podia acreditar, aquele sorriso lindo, de dentes alvos, era mais um caso. Cláudia estava acostumada, gente de todo tipo aparecia na clínica. Dentro de poucas semanas, ela sumira da cidade, demitira-se da clínica e, desesperada, rumara ao refúgio do sítio da avó.

As insônias de Cláudia, antes quase curadas, voltavam depois do encontro com o sorriso inocente. Antes eram causadas pela doença da mãe.

Pedro perdia, aos poucos, todo aquele encanto, o desenho perfeito do sorriso já não lhe acompanhava. Logo agora que, depois de tanto tentar, pessoalmente e pelo telefone, conseguira a sua palestra, cuja espectadora fora a adorável Marina, que acabara com todo o nervosismo, enquanto seus olhos atentos o encorajavam a continuar.

Sendo procurado na saída de um dos colégios em que trabalhava por uma figura encantadora, que dizia ter um filho perturbado, que nenhum psicólogo jamais conseguira ajudá-lo e que ouvira ótimos comentários de sua palestra, foi extremamente atencioso. Foi até sua casa, onde, não vendo nenhuma criança, ficou confuso. Percebendo algo errado, perguntou. A expressão bondosa deu lugar a uma de triunfo, que não combinava com aquela figura.

Foram horas de tortura, a causa de seu sofrimento fazia as mesmas ameaças que levaram os três outros a beira da loucura. Dizia que iria se atirar do prédio (o apartamento era no último andar), e ele tinha que apresentar argumentos para impedir.

De repente, gargalhava alto, chorava, enfim, Pedro não sabia mais o que fazer para manter-se controlado e controlar a outra pessoa. Bebia, deixava-se cair no sofá. Pedro entrega-se ao desespero. A personagem sádica, assim, ria mais alto ainda e começou um interminável discurso sobre a fragilidade dos seres humanos, mesma estando completamente bêbada. Chegado um momento, estendeu-lhe a chave e disse que, caso saísse dali, era fraco, frágil.

Pedro não teve dúvidas, saiu correndo, pegou o elevador, os olhos vermelhos, o rosto pálido, vendo, no semblante do homem que estava no elevador, a expressão diabólica de com quem estivera até aquele momento.

Um táxi estava se aproximando, mas já estava ocupado. Um caminhão também vinha em sua direção e, ele, inconsciente, com a gargalhada ainda ecoando em seus ouvidos, atravessou a rua, correndo.

Logo, do último andar, Helena ouviu a sirene da ambulância e sorriu, sarcasticamente. Aplicara todos os seus conhecimentos de neurologia e também psicologia, já que era leitora assídua do assunto. Queria testar as pessoas e os quatro jovens psicólogos foram vítimas de seu fanatismo e loucura, escolhidos, com a exceção de Marina, através de uma lista telefônica.

Pedro teve piedade da pobre moça, e, no bolso, tinha um remédio fortíssimo usado por um paciente problemático, que atendia excepcionalmente, já que trabalhava com crianças. Só obtivera a receita porque tinha um irmão médico, psiquiatra, que a concedera. Não fazia uma boa combinação com bebida.

Adormeceu, ali mesmo, ainda com o lindo sorriso no rosto, os olhos inocentes fechados, a expressão firme, os cabelos sedosos entre as almofadas. Uma cena encantadora.

Maria Flor
Enviado por Maria Flor em 17/07/2006
Código do texto: T196218