Venezianas Verdes, Cap. 10

Finalmente poder entrar no meu carro. Livrar-me desse peso. Sair livre da delegacia. Juliano entrou no carro achando que voltava à vida normal. Mas sabia que não. Olhou para o lado, o banco do carona. Às seis e meia ela estava aqui, rindo, despreocupada. Agora já não estava. Estava em lugar nenhum. Ou em algum lugar? Daqui a três anos, mais nada. Pó apenas. E talvez os cabelos.

Seus filhos ficariam com a imagem da mãe falecida num quarto de motel. Tá bem que escondessem isso das crianças. Mas por quanto tempo? E de que maneira os pequenos iriam digerir o fato?

E ele ainda teria que prestar esclarecimentos. Não só à polícia, mas a muita gente. Sem falar no marido dela. Cuja reação não poderia imaginar. Ela nunca falava dele.

Sabia que estava dirigindo feito um autômato. É nessas horas que a gente bate. Mas gostaria de ficar dirigindo por muito mais tempo ainda. Para que o tempo viesse encobrir logo isso tudo.

Finalmente viu que se aproximava de casa. Um friozinho na barriga. Agora viria outra batalha. Como explicar tudo à Bernadete? As mil perguntas dela. Todas com cabimento, é claro. Tentaria fugir, mas do café da manhã daqui a pouco não escaparia.

Ainda faltava estacionar o carro. E se deslocar a pé até sua casa. Multiplicou esses dois tempos por dois. Pra quê pressa agora?

Abriu o portão devagar. Bem que poderia ter agora uma cachorrinha que lhe viesse fazer festa ao chegar. Notou que a luz da varanda estava apagada. Mas não a do abajur da sala. Não distinguiu as vozes na TV, se eram de algum filme ou do noticiário.

Bernadete já se dera conta da sua presença. Antes de que ele colocasse um pé na varanda, ela veio recebê-lo.

- E aí, grande homem, o que aconteceu?

Juliano teve que passar pela porta da costureira para chegar até à sua casa. Pelas frestas das venezianas verdes via-se que a luz da sala continuava acesa. Notou por acaso, mas nem sequer imaginou que alguém estivesse trabalhando no interior da casa. Procurava apenas aliviar o peso da carga emocional daquele fim de dia.

Eulália também não estava trabalhando. Costumava deixar a luz da sala acesa para que tivessem essa impressão. Tinha toda a certeza de que Bernadete imaginava que ela vivesse apenas para o corte e costura. Naquele momento dormia a sono solto. Cansara-se de esperar pelo telefonema da Colômbia. E não teve ânimo para conferir em sua caixa se havia algum e-mail de Ostinato Lia.

Acordou por volta de nove e meia. O laptop continuava fechado em sua mesa de trabalho, a dois metros de sua cama de casal king size. Conforto que só se podia ter em casas antigas como aquela, em que os cômodos eram geralmente espaçosos. Um armário com portas de correr em vidro e alumínio na extensão de uma parede à outra, um único criado mudo ao lado da cama e a mesa de trabalho. Integrando uma bancada que se estendia também de uma parede à outra, pelo lado oposto ao do armário, eram as peças principais dentro do quarto de aproximadamente 18m2. Uma cadeira giratória junto à mesa e, na parede em frente aos pés da cama, uma poltrona revestida em veludo vermelho completavam o mobiliário dentro do dormitório.

O outro quarto da casa era utilizado praticamente para depósito de materiais em geral. Quem sabe até de cortes de tecidos. Mas todos acondicionados em dois armários embutidos ou em prateleiras que eram mantidas impecavelmente limpas. Eulália não se descuidava de ter a casa faxinada de quinze em quinze dias.

O celular, junto ao relógio digital no criado mudo, mantido ligado durante a noite, não acusava qualquer ligação. Se não ligou pra mim, muito menos vou ligar pra ele. Tem um séqüito de serviçais. Além do mais, é ele quem está precisando.

Ao entrar na hidromassagem do luxuoso banheiro da suíte, após ter escovado demoradamente os dentes, Eulália escutou o celular trepidando sobre o criado mudo. É o velho agora. Ligo depois. Não vou interromper o meu banho. Será que não se enrolou com o novo número? Trocava de celular com freqüência. Não gostava de que soubessem por onde andava. A cliente que mais atendia sabia onde ela morava. Eram vizinhas.

A toalha felpuda acariciava-lhe o corpo. Viam-lhe imagens de situações há muito não desfrutadas. Quando o tecido macio tocou-lhe o meio das pernas, com uma delas sobre a borda da hidromassagem, lembrou-se momentaneamente dos pelos na virilha de Bernadete, quando ela foi experimentar o vestido. Devo estar carente mesmo!

O roupão de seda às vezes a ajudava a pensar. Mas antes de vesti-lo verificou o celular. Não era o velho. Era o Magno Louro. Talvez tivesse alguma informação importante.

- Oi, Magno. Você me ligou?

- Bom dia. Liguei, sim, senhora. Para perguntar à senhora a que horas devo buscá-la.

- Bom dia. Duas da tarde apenas. Vou só fazer umas compras aqui pra casa. Acho que o Rafael não precisa vir.

- A senhora manda. Aliás, o Rafael me contou uma nova.

- Notícias do velho?

- Do chefão lá de cima não me disse nada. Contou-me só de um acidente com uma cliente... do Duo Digital. A mulher faleceu num quarto lá do Androginos, parece que é esse o nome do motel. Eh, eh, eh, vai ver brincou demais, pilheriou o Magno Louro.

- Interessante a nossa reação quando não se trata de pessoa da nossa família, não é Magno?

- Perdão, senhora. Não quis debochar, respondeu Magno, ciente de que não tinha agradado.

- Seja mais discreto, então. Ou menos brincalhão, manifestou-se Eulália em tom de repreensão. Se tiverem alguma notícia do velho, podem me ligar. Te espero às duas.

- Ok, senhora. Bom dia.

- Até logo, concluiu secamente Eulália.

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 01/02/2010
Código do texto: T2063333
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