Venezianas Verdes, Cap. 24

O jantar estava servido: steak au poivre. Um Moet et Chandon e uma jarra de suco de laranja na mesa.

Bernadete ficou imaginando como Eulália tivera tempo de preparar aquilo. Podia ser que tivesse contratado uma cozinheira para a ocasião. Mas não acho que mereço tudo isso. Podia ser das prendas da cozinha, assim como da costura. Sei lá. Tudo nela às vezes parece um mistério.

Tinha sido recebida com um longo beijo na boca. Que não conseguiu evitar. Nem identificar em si mesma o menor sentimento de pudor. Seus lábios grossos e macios. O seu modo obsceno de se esfregar no meu corpo, valendo-se do dela, mais avantajado. Sempre subjugando o meu. Seus dedos grossos alisando-me os cabelos. Ou mantendo-me a cabeça no lugar para a ação dos seus lábios devoradores. Uns olhos cheios de carinho. Bernadete não imaginando de onde vinha tanta atenção.

- O Moet et Chandon é para brindarmos o fato de nos termos conhecido de uma outra forma. Tin tin, anunciou Eulália, levantando sua taça.

- Ah, mas o que é isso, Eulália?, replicou Bernadete, levantando igualmente a sua, mas mostrando-se acanhada.

- Há muito tempo que não me relaciono assim com ninguém. E não me refiro apenas ao plano físico.

- Você me deixa sem jeito.

- Venho observando seus modos, a candura, a graça – o corpo também, é claro. A confiança que parece ter em mim.

- Sempre gostei de vir à sua casa.

- Sei disso. Deu pra perceber. No início fiz de conta que não me interessava. Mas depois conclui que estava apenas lutando pra disfarçar o interesse...

- Interesse?

- Que eu nem sabia direito qual era.

- Por vezes achei você fria. Cheguei mesmo a duvidar de que pudéssemos nos tornar amigas. Ou que a relação pudesse ir além do plano cliente-profissional da costura.

- Pode falar costureira, brincou Eulália. Não sou debutante nessa espécie de relacionamento. Mas não passou de uma vez. Foi meio intenso. Aconteceu bem depois de eu ter me divorciado, passando a viver só com minha filha. É uma história meio comprida. Um dia te conto com mais calma.

- Sim, você nunca foi de falar muito mesmo. Até que, em relação a mim, mudou um pouco. Felizmente. Mas deve ter percebido que comigo foi a primeira vez.

- Arrependida?

- Não posso dizer isso. Você deve saber que não. Intrigada, talvez.

- Que linda. Quando fala me enche de tesão, sussurrou Eulália, aproximando-se de Bernadete para beijá-la mais uma vez com sofreguidão.

- A primeira vez é sempre única, amor. Devemos persegui-la, continuou Eulália.

- Tomara que não seja a única, revidou Bernadete.

- Não será, querida. Tenha certeza disso. Mas vamos brindar de novo que tenho novidades, anunciou Eulália em voz mais alta.

- Novidades?, perguntou Bernadete, intrigada.

- Face às circunstâncias do momento, que recomendam a sua permanência por aqui pelo menos até domingo, tomei a liberdade de incluí-la em meu vôo de daqui a pouco, 23:45. Vou ao Panamá a negócios.

- Mas Eulália, não estou com roupas apropriadas. Não me preparei para isso. Não poderia viajar assim.

- Pode sim, amor. Você poderá. Veja só: roupas, compro tudo o que for preciso (lingerie, casaco, sapatos, sandálias, etc.); perfumes, condicionadores, etc., temos de sobra aqui em casa; comunicação, tenho um celular especial que fala até no Alaska. Já tentei. E depois, é só até domingo.

- E... e Juliano?

- Juliano será monitorado pelo nosso celular. Você não deve ligar muito pra ele. Deixe-o um pouco sozinho. Quanto mais solto, mais preso ele se sentirá. Por outro lado, é possível que até domingo toda essa questão de ameaças seja só uma lembrança, disse Eulália, mostrando-se convincente no que falou por último.

- Puxa, é uma aventura!

- Aventuras são o que a gente leva dessa vida.

- Como você conseguiu a passagem?

- Tudo na Primeira Classe é mais fácil.

- Então temos que nos arrumar. Pra chegar cedo no aeroporto, surpreendia-se Bernadete com a sua concordância e já com o entusiasmo.

- O carro virá nos buscar às dez. Teremos duas pessoas que nos acompanharão. São meus auxiliares e amigos.

Bernadete sabia de quem se tratava.

Era o final da tarde. Percival aproximava-se de casa a pé. Vinha da estação do Metrô. Deixara o carro em casa. Ao chegar à esquina de sua rua, onde havia uma banca de jornal, ouviu alguém chamar o seu nome:

- Sr. Percival! Sr. Percival!

Não olhou. Aprendera com Comichão que não se deve olhar quando na rua alguém nos chama alto pelo nome. Pode ser perigoso. Coisa de policial.

- Sr. Percival! Pode olhar. Não tem nada!

Aí ele olhou. Talvez movido por certo constrangimento pela presença do jornaleiro, seu conhecido. Tratava-se de um homem magro, de média estatura, com um boné preto, segurando um jornal bem junto à banca. Parecia ter interrompido a leitura.

- O senhor não me conhece, disse o homem do boné ao perceber que Percival detivera-se. Mas conhece o Comichão.

Percival entendeu tudo. Tinha a ver certamente com algo relacionado ao amante da sua falecida esposa. Podia ser até um dos executores contatados por Comichão. E era, como ficou sabendo depois.

Zé Celso não levou muito tempo para convencer Percival a beberem alguma coisa no bar em frente à banca. Percival nunca ia ali, mas achou melhor a idéia de se sentarem numa mesa nos fundos do bar. Seria bem mais discreto que conversarem na calçada.

- Pô, quer dizer então que o amigo desistiu da parada?, provocou Zé Celso, indo direto ao assunto, depois de os dois terem iniciado a conversa.

- É verdade. Mas cumpri o estabelecido, apesar de não ter sido necessária a intervenção de vocês.

- Correto! Correto! Aliás, nem precisava. Era só questão de conversar.

- Nada disso. Trato é trato.

- Tudo bem, Mas por que o amigo desistiu?

- Não ia levar a nada. Não iria trazer Zuleika de volta.

- Mas, se me permite, isso a gente já sabia.

- É, mas às vezes levamos algum tempo até nos convencermos das coisas.

- Deixa disso, Percival, Zé Celso interveio, fazendo questão de ser menos formal. Como dizia Ibrahim Sued, em sociedade tudo se sabe. Temos informações de que você foi ameaçado. Posso lhe garantir que nada vai lhe acontecer se nos disser o que ocorreu. Nosso objetivo é outro.

Percival gelou. Será que não basta querer sair da encrenca? Pra quê fui me meter nessa merda? Pra quê fui me meter com essa gente? Era mais do que natural que Zé Celso soubesse. Vivem 24 horas por dia em função de coisas desse tipo. De pouco adiantaria negar. Além do mais, de qualquer forma o louro e o outro que o ameaçaram iriam saber da sua desistência. O que não lhe prejudicaria. Ao contrário, concluiriam que tinham sido atendidos.

- Bem, não queria mais falar nesse assunto. Mas de certa maneira fui obrigado a desistir.

- E de quem partiu a imposição?

- Não tenho idéia. Fui seqüestrado por um louro atarracado e um outro cara, magro e alto. Os dois bem vestidos, num carrão preto. Vendaram-me os olhos. No meio do mato, deram tiros pro lado e pro alto, para me assustar. Depois de me baterem no rosto. Por fim me abandonaram numa estrada lá na Zona Oeste. É isso aí.

- Tudo bem. Já é o suficiente. Já tenho idéia de quem se trata. Agradeço aí, Percival. Não se preocupe. Não será mais importunado. Nem por nós e acho que nem por eles.

- É o que espero, concluiu Percival.

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 18/02/2010
Código do texto: T2092896
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