A CÂMARA DA MORTE

“La muerte es mas alto premio de la vida”

Yohn Keats

O que somos nós? Será que nenhum homem é capaz de olhar para si mesmo e ver que não passa de um amontoado de defeitos? Somos a autêntica imperfeição – seres limitados que não admitem essa limitação. Não somos nada! Apenas peças de um grande jogo.

Para que vivemos? Entretemo-nos com coisas banais e vivemos até o fim nesta rotina. Somos dominados pelos egos que ditam nossa existência. Uns correm atrás de um ideal por uma simples questão de ambição, outros se conformam em ser passivos, mas no fundo, invejam àqueles que possuem uma melhor vida material. Idiotas! Nunca estamos contentes com nada, porque prendemo-nos a uma vida com conforto e é sempre melhor ter mais. Padrões estabelecidos se transformam em regras irrefutáveis.

Assim somos e não há como negar isso. Somos manipulados de forma inquisidora a agir de acordo com a sociedade. Somos obrigados a seguir os regulamentos sem poder discuti-los, analisá-los. Até a nossa maneiras de pensar é condicionada. Somos máquinas. Agimos mecanicamente em todas as situações. Criam-se regras e temos que nos adaptar a elas. Não somos donos do nosso próprio pensamento!

Nossas ações também são mecânicas, variando de acordo com a situação e a nossa maneira de pensar. Não adianta nem mesmo analisar o que fazemos, pois o nosso intelecto é vergonhosamente parcial! Não temos saída. Aonde quer que estejamos encontraremos coisas que nos farão vacilar. Não adianta condenar uma ação. Sempre há algo mais forte que nos empurrará ao abismo negro.

Tentarei ser um pouco mais conciso, uma vez que o curso dos meus pensamentos está totalmente embaralhado. Não consigo transmitir minhas idéias com clareza. Na verdade não posso negar que sou um simples mortal carregado de defeitos.

Pois bem, o ser humano possui diversas formas de agregados psicológicos que costumamos chamar de pecados capitais. Conhecemos sete, mas existem várias manifestações da luxúria, da ira, da cobiça, da inveja, do orgulho, da preguiça e da gula. Um sujeito da natureza tímida falará de uma maneira extrovertida numa situação de exaltação de seus egos. Na verdade é o seu ego que está falando.

Ninguém tem uma personalidade constante. É uma máscara que trocamos sempre que se faz necessário. Finalmente, nossa mente, a nossa cabeça, o nosso intelecto, seja o que for, não merece o menor crédito, pois a capacidade analítica é inerente à observação abstrata dos fatos, que se traduz numa incompleta e distorcida análise.

O que deve fazer um sujeito desses? Aliás, toda a humanidade.

Fiz essa explanação para que vocês meditem sobre esta questão e cheguem a mesma conclusão do que eu: O SUICÍDIO!

A minha primeira preocupação foi em torno do que ocorrerá após a minha morte. Fiz várias conjecturas e cheguei a conclusão de que nenhuma hipótese deve ser levantada. Temer algum castigo é uma justificativa para querer viver mais, ser idiota por mais alguns anos, até que a morte, inexorável, venha me levar definitivamente. Porque esperar até que chegue esse momento? Quero ter o poder de decidir, de fato, alguma coisa. A morte, a minha própria morte!

Outra preocupação minha foi em relação à maneira pela qual eu deveria morrer. Não queria algo chamativo, como pular de um prédio, como pular de um prédio, pois estaria enaltecendo o meu ego exibicionista. Concluí que qualquer suicídio seria notícia de jornal. As pessoas, em geral, têm um espírito mórbido e lhes agrada ouvir falar ou ler sobre mortes.

Contudo, consegui imaginar uma forma (creio eu, inédita) de cometer um suicídio.

Construí uma câmara, com cerca de três metros cúbicos, hermeticamente fechada, de maneira que, uma vez imersa em água, permanecesse com o interior seco. Esta câmara possui uma pequena porta; rodas, para que possa deslizar de uma rampa com facilidade; e uma placa de chumbo na parte inferior, para que possa afundar ao ser jogado no mar.

Encontrei um lugar, deserto, onde poderei entrar tranquilamente no meu veículo e esperar que ele caia no mar. Aí, então, apenas esperarei que o oxigênio se acabe para ter uma deliciosa morte por asfixia.

Existem outras vantagens, independente da asfixia em si. É o fato de que morrerei gradativamente, em tempo de anotar minhas últimas impressões sobre a vida. Além do mais, ficarei por um grande tempo oculto perante a sociedade. Talvez nunca me achem e eu passe a ser um dos insolúveis enigmas da história.

Bem, está tudo pronto. Aqui termina esta minha narrativa. Deixarei dentro de um envelope junto comigo, na câmara. Lá dentro estarei com um gravador e irei falando tudo o que estiver sentindo. E as pessoas somente saberão o que passou comigo quando encontrarem o meu cadáver. Se é que encontrarão...

* * *

“Alô, um, dois, três... testando. Aqui estou! A câmara está aberta e se mantém inerte devido a um sistema de freio. Estou agora entrando em seu interior..., fechei a porta e agora preparo-me para soltar o freio. Já calculei tudo direito. Não haverá falhas.

Não sei porque, mas um sentimento muito forte está segurando a minha mão para que eu não solte o freio – talvez um amor à vida... incoerente, mas vá lá!

A câmara está deslizando. Meu coração disparou, sinto uma sensação de medo – não sei porque – algo que talvez não dê certo. A velocidade está aumentando, devo chegar ao mar rapidamente..., a qualquer momento...

Finalmente! A queda chegou ao fim. Nenhum problema. Agora resta-me esperar que o oxigênio acabe. Estou numa situação deveras interessante. O suicida é um condenado à morte em que ele próprio é o carrasco. Entretanto ele tem sempre uma chance de escapar da morte. Tirar, na hora “H” o pescoço da forca ou desistir de puxar o gatilho... Mas a minha morte, agora, é inevitável – e eu estou tranquilo com isso.

Não sei o que dizer. Apenas observo as paredes da minha câmara fatal. Mal posso me levantar, aliás, tenho que ficar agachado o tempo todo. Observo que a água exerce uma pressão violentíssima, porém insuficiente para romper alguma das paredes.

Deveria ter trazido algo para comer – parece incoerente, mas o fato é que começo a ter fome. Imagino uma deliciosa macarronada, ou uma pizza...

Para que ficar pensando em coisas inúteis, como “comer” – eu sei que é a gula que me faz isso. Mas já estou sereno novamente.

Pensei em mulheres..., ah, luxúria, mas já afastei isso de meus pensamentos e estou novamente entregue às reflexões do momento. Apenas a observação do meu comportamento neste “Grand Finale”.

O silêncio reina. Nenhum barulho... sinto apenas as vibrações do mar. Estou há dez metros de profundidade. Já mergulhei aqui para analisar as profundezas. Aqui embaixo é só areia e não existem muitos peixes. Poucas pessoas conhecem este lugar.

Sinto que a minha respiração fica mais profunda. Preciso puxar bastante ar até que tenha o suficiente. Começo a temer novamente a dita morte. É inegável, mas este temor é uma realidade. O medo que se manifesta diante da inexorabilidade de um fato. Um fato obscuro!

Estou ansioso. Será que vou conhecer os mistérios do além? Ou será que mergulharei num sono eterno inconsciente? Será que os materialistas estão certos? Haverá reencarnação? Será que esclarecerei todas essas dúvidas?

Meu corpo está tremendo. O peito dói cada vez que respiro. – Condeno-me por não ter trazido algum veneno instantâneo – cianureto, talvez. Evitaria este sofrimento.

Já começa sair sangue pelas minhas narinas, minha cabeça parece que vai explodir. A dor é imensa, completamente indescritível...

Meu Deus! Oh, meu Deus... Não sei porque digo isso. “Deus é um conceito pelo qual medimos a nossa dor” – John Lennon disse isso e estava completamente certo. As pessoas só se lembram de clamar por um Ser Supremo diante do desespero. Quando nada mais é possível! Deus!

Estou feliz, apesar de tudo. A vida sempre foi tediosa e injusta. Desprovida de razão. Minha existência sempre foi inócua e cercada de podridão, falsidade, desconfiança... A morte, agora, é o ideal.

Minhas narinas estão ardendo. Meu peito dói imensamente. Não consigo mais respirar. Não há mais oxigênio. – Não consigo pensar. Falar me é tão difícil... eu não vou aguentar.

A mor-te... de-ve... es-tar... pró-xi-ma...

Tudo está rodando.

Minha visão está escurecendo.

A câmara parece estar balançando... ou seria minha cabeça rodando.

Já não escuto as vibrações do mar...

Agora ouço um barulho infernal...

Ei? O que está acontecendo?

Vão abrir a port....

* * *

Fracassei. Não esperava fracassar. Logo quando estava quase atravessando as barreiras do além.

Alguém que viu a câmara cair no mar, providenciou uma operação de resgate e evitou a minha morte. Poxa! Como eu pude deixar que isso acontecesse? Deveria ter previsto este fato. Mas agora já está feito. Não falarei mais nada.

Um dia eu tento novamente.

Porém, o mais impressionante é que estou satisfeito por continuar vivendo; por ter sido salvo.

Talvez as pessoas, por si próprias, consigam eliminar seus defeitos naturais.

Um dia a morte virá. Eu sei.