O mistério da cangica

O mistério da cangica

Ela era conhecida como Dona Cangica. Quase todos os dias ela saía de manhãzinha com sua sacola de lona e voltava do mercado carregada. Deveria ter mais de setenta e tantos tempos de vida. Vida, cheia de misérias, conflitos, desgraças, cravadas todas, uma a uma, nas rugas de seu rosto magro, nos reflexos de seus olhos impenetráveis, e na brilhante brancura de seus cabelos brancos.

A criançada com a inocência de seus gestos, gostava de atacá-la. Ao vê-la passar se reuniam e saíam correndo ao seu lado a gritar: Dona Cangica, Cangica. A velhinha continuava no seu caminho. E por incrível que pareça, nestas horas sua magra cara, recompunha-se de sua indefinível identidade e colocava para fora de sua boca, os poucos dentes que lhe sobraram numa careta, ensaiando, talvez o que seria um sorriso.

A notícia correu o bairro naquela semana santa. A falta da cangica foi notada por todos. Ela não aparecia mais. Estava doente? Tinha se mudado? Os comentários começaram a rolar de boca em boca. O misterioso desaparecimento da cangica. Uns diziam que ela era uma bruxa que morava na última casa mal assombrada da rua. Alguns arriscavam que ela tinha sido abduzida por uma nave espacial. Os mais equilibrados diziam que os netos a colocaram no asilo.

A verdade era um mistério. Seu cão cinzento vivia pela rua magro e faminto. Ficava horas sentado na esquina, como se estivesse esperando por ela. Certa manhã fria de sábado o dono do armazém da esquina, deparou com o cão deitado à porta de seu comércio. Chutou-lhe, xingou-lhe, e ao ver que o animal não se levantava, Saiu gritando como louco. Alguns disseram que o cão havia encarnado nele.

Com o cão encarnado, ou se viu a face do próprio demônio chamando-o para o inferno, ninguém soube ele gritou, berrou, para todos ouvirem o que ele havia feito.

Incontáveis línguas de fogo invadiram-lhe o corpo enquanto sua voz num ganido horrível ganhava as alturas. Gargalhadas eram ouvidas por todos que abriam as janelas, e que começaram a chegar para ver as cenas macabras que se desenrolavam naquele momento. Em poucos minutos o comerciante se desfazia nas chamas. E o eco de sua voz ficou por muito tempo naquela esquina.

Tempos depois uma sobrinha de Dona Cangica, encontrou seu corpo num necrotério lá para os lados de Duque de Caxias. Fazia sentido os últimos berros do homem.: “- Me deixe em paz cadela do inferno. Cangica, não, foi um acidente, eu não vi quando você estava passando e te atropelei”.

Aradia Rhianon
Enviado por Aradia Rhianon em 11/04/2010
Código do texto: T2191310
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