OS TOTÔNIOS

 
             A temperatura despencou naquele dia. Era frio de outono. Choveu à noite toda e o dia prometia ser chuvoso também. Os meninos gêmeos de quatro anos brincavam no quintal da casa. Antônio Luiz e Antônio Carlos. Esses eram os nomes da crianças. Todos os chamavam de... Os Totônios.

                 Somente a mãe e a madrinha sabiam quem era quem. Eram gêmeos univitelinos. Era olhar para um e ver o outro, e vice-verso. A roupas, os cortes de cabelos, os penteados, a estatura... Enfim, tudo. Tinham boa saúde. Traquinas, como toda a criança nessa idade. Andavam descalços, mas parece que a terra era generosa. Nunca ficavam doentes. Eram inteligentes, e o que toda a vizinhança admirava.

            Antônio Carlos tinha uma pinta em cima da pestana, na ponta superior, do lado esquerdo, em forma de L. Antônio Luiz tinha também, como se fosse a mesma, mas do lado direito. Era como se um fosse espelho do outro. Quem sabia desse detalhe era somente a mãe Andradina e madrinha dona Senhorinha.

            O pai Antônio morreu quando a esposa estava grávida dos meninos. Ele se opôs à política de uma ditadura no Brasil, e simplesmente sumiram com ele. Embora não fizesse parte do Partido Comunista, acharam que o fazia, e assim deram-lhe um jeito, como em tantos outros.

              No corpo de Andradina começou a aparecer manchas , e essas formavam feridas. Inchava algumas partes. Já não conseguia cuidar das crianças, precisando da ajuda da comadre. Vez ou outra , alguma vizinha do sítio ajudava também. Lavando as feridas com ervas remédios caseiros, mas esses não faziam efeitos. Nem podia trabalhar. Recebia doações da comunidade. A situação foi indo de mal a pior.

            Os gêmeos herdaram o nome do pai Antônio e dos avôs. O avô paterno chamava-se Luiz e o materno, Carlos. O Sr luiz faleceu alguns anos antes, acometido de uma forte dor de cabeça e febre, que suspeitaram que tenha sido meningite. O Sr Carlos morava em outro Estado, numa outra região do País. Pequeno agricultor, nem sabia o que estaria se passando. Viu seus netos quando estes tinham um ano de idade, que a mãe com muito sacrifício foi até sua casa para que ele pudesse conhecê-los e dar a sua bênção. Dali em diante a comunicação era por cartas, mas a filha evitava dar notícias ruins ao pai, para não deixá-lo preocupado.

            A mulher foi suspeita de ter doença brava. A hanseníase havia tomado conta daquela vida. Uma comissão da área de saúde da cidade mais próxima fora até sua casa, e tiveram certeza disso, devido aos sintomas... As pessoas começaram a dizer que ela estava leprosa, lazarenta, morfética... Afastaram-se dela de vez. Só ficou a madrinha das crianças, que foi amiga até o fim.

            Uma certa tarde de outono, já frio, enquanto os meninos Totônios (como eram chamados), brincavam no quintal, ouviu-se um ronco, um barulho de que um carro havia chegado. Andradina se assustou, porque da última vez que um automóvel estranho chegou em sua residência, foi para levar seu marido preso, e a partir dali... não vê-lo nunca mais. Era um carro fechado, uma espécie de furgão. O que seria aquilo? Junto com esse esquisito que na verdade era uma ambulância, mas ninguém sabia, chegou outro carro. Era um fuque (fusca) branco, com quatro pessoas. Pararam. Desceu um homem com chapéu preto, um pouco gordo, de bigode e portando um revólver. Perguntou pela senhora Andradina. Tremendo, disse que era ela mesma. Era um delegado. Deu voz de prisão pra mulher, e ainda humilhou-a na frente dos demais. Chamou-a de lazarenta, morfética... Ela só gritou que precisava cuidar das crianças, que ela era pobre e elas precisavam dela. Mas foi em vão, Enquanto os gêmeos choravam, a mãe foi colocada à força pra dentro daquele veículo fechado. Só se via a poeira naquela estreita estrada pelo meio das roças. No caminho, um dos homens lhe falou para ficar calma, que ela estava indo para um leprosário. Que ali estava colocando em risco a vida dos vizinhos. Esse que falou era o que acompanhava o motorista da ambulância. Teve que falar bem alto, porque havia havia o isolamento da cabine com a parte traseira, onde a mulher se encontrava.

           As condições precária não permitiam que dona Senhorinha desse uma vida melhor ao afilhados. As crianças começaram a ficar nas casas dos outros, até que tivessem um lar definitivo.

           Duas famílias adotaram os gêmeos. Uma adoção informal. Nada de documentos, algo escrito... só na palavra. Os meninos eram educados e bonzinhos. Respeitavam seu novos pais como se fossem os verdadeiros. Era comum deparar com algum deles chorando em algum canto da casa, mas todos sabiam o porquê. Tanto um como o outro, algumas vezes acordava aos gritos na calada da noite, porque sonhava que sua mãe estava sendo presa novamente. A mãe adotiva desse, ia até o seu quarto consolá-lo. E assim era a vida dessas criaturas.

             Antônio Luiz fora adotado por um pequeno agricultor. O menino cresceu. Estudava na Escola Isolada da região. Não tinha costume de contar sua história às pessoas. Na parte da tarde ajuda o pai no trabalho da lavoura. No final do dia era ele quem trava da criação. Lá eles tinham porcos, vacas, carneiros, galinhas... A noite chegava. Depois do banho e do jantar, dedicava-se aos estudos. Sua mamãe adotiva era a professora daquela escola rural. Concluiu o curso Primário. Com sacrifícios, seus pais mandaram-no para a cidade, para fazer o Ginásio. Foi para a casa de um tio da professora, a qual o ajudavam-na mensalmente.

            Antônio Carlos fora também adotado, mas por uma família espanhola. Abastada, colocaram-no nos melhores colégios da mesma cidade do seu irmão. A mãe adotiva era uma senhora amável e uma ótima pianista. Desde que o menino chegou, interessou-se pela música. A espanholita lhe ensinara as primeiras notas. Carlinhos começou a tocar as músicas do repertório da mãe. Havia na maioria músicas clássicas e algumas brasileiras. As de Bethoven e Mozart eram as preferidas da senhora, e passaram a ser também do pequeno aprendiz.

           Os dois ficaram na mesma cidade, mas em escolas diferentes. Visitavam-se com freqüência. Antônio Luiz concluiu o curso Colegial e voltou para ajudar a seus pais na agricultura. Tornou-se o braço direito da família. Seus pais morreram e ele passou a conviver com seus irmãos, os quais o tratavam muito bem. Consideravam-no como se fosse um irmão legítimo. Aos vinte e dois anos conheceu Sabrina, com a qual se casou e tiveram dois filhos. Tornou-se um empresário na área de marcenaria, prestando serviço para diversas empresas, tendo prosperado muito.

          Antônio Carlos sempre lembrando com saudades do tempo de criança. Muitas histórias contava. Falava da prisão da mamãe, que ninguém mais soube se morreu no leprosário. Tornara-se músico profissional. Aprendera a tocar vários instrumentos musicais. O violino mais tarde se tornaria sua principal ferramenta de trabalho.

               Passou a morar muito longe do outro irmão gêmeo. Do outro lado do oceano, chorava sua falta. A Espanha tornou-se seu novo país. O contato com o outro Antônio teria se perdido completamente. Com a morte do seu pai adotivo, sua mãe vendeu a fazenda e foram embora do Brasil. Terras brasileiras não eram mais a melhor opção. Mas ela e o filho Carlos formavam duetos na grande casa em que foram morar. Ela no piano, o filho no violino, ou vice-versa.

               Verónica Garcia passou a ser parte integrante na vida de Antônio Carlos. Advogada, mas também músico. Tocava violino, piano, violão... e castanhola. Começaram a namorar numas simples troca de olhares na rua. Até então, nenhum deles sabia que os dois eram músicos. A partir dali, começaram a fazer ensaios e a namorar. Os dois se amavam muito.

          O rapaz começou a ganhar a vida tocando violino. Participava de vários eventos, sendo muito bem remunerado. Em poucos meses Verónica passou a trabalhar junto com o namorado. Quase sempre ela o acompanhava no piano. As músicas de Mozart e Bethoven eram as que mais tocavam. Advogar tornou-se praticamente um segundo plano para a jóvem.

           Antônio Luiz não sabia exatamente onde seu irmão morava. Recebeu uma única carta logo no começo quando foram. Mandou outra que não obteve resposta. Era um nome de rua estranho, diferente, mas guardou com carinho. Conseguiu economizar e juntamente com a esposa viajaram para a Espanha. Os filhinhos ficaram com a vovó. Em Madrid procuraram por aquele endereço. Não foi fácil. Ambos sabiam muito pouco de espanhol. Com muito custo, encontraram. Só havia um empregado da casa, e este não tinha autorização para receber ninguém. Informou que Antônio Carlos e a jovem se apresentariam no dia seguinte num determinado teatro. Com o nome que deu, foram procurar o local e encontraram. Aguardaram até no outro dia.

          O evento começaria às sete e meia da noite. Luiz e Sabrina ficaram ao lado da porta principal, esperando que o rapaz entrasse, o que não aconteceu. Este entrara pelo outro lado. O concerto começou. Os ingressos já estava em suas mãos. Entraram, sentaram e ficaram assistindo com emoção. Cada música executada, era uma lágrima que caía e molhava a face do afoito Luiz. Carlos e Verónica saíram para um intervalo rápido, enquanto a platéia aplaudia de pé. Na primeira parte, Carlos no piano e a namorada no violino. Quando voltaram, inverteram os instrumentos. Era o que costumavam fazer em todas as vezes que se apresentavam.

              Ao retornarem, começaram a tocar “ODE JOY” de Ludwig Van Beethoven, que é uma das da Nona Sinfonia. Antônio Luiz levantou-se e ficou ao lado da parede, na platéia. Antônio Carlos tocava e balançava o corpo ao ritmo da música. Ele e Verónica Garcia trocavam olhares rápido e sorriam um para o outro. Deveriam estarem lembrando que dali a oito dias seria feita a cerimônia de um grande dia. O casamento. Já estava tudo preparado. Aquela seria a última apresentação. Dentro de uma semana sairiam em férias e lua de mel. O destino seria o Brasil. Ele viria também matar a saudade. O sonho de Ivone Maria Garcia era conhecer o país berço da seu amado. Depois de fazerem uma tournee em vários pontos turísticos, iriam visitar o irmão e tentar descobrir se a mãe estaria viva... ou o que teria acontecido...

              Antônio Luiz foi se aproximando. Parou próximo ao palco para observar o irmão e ter certeza que era ele mesmo. As luzes da platéia estavam apagadas. Só acesas as da ribalta. Observou a pinta, do lado da pestana, em forma de L, na face esquerda. Colocou a mão na sua que localizava-se na mesma altura, do lado direito. Luiz trajava calça e paletó preto e camisa branca. Carlos, o irmão músico, um smoking preto, também camisa branca. Luiz subiu no palco. A platéia estava alheia, nem tinha observado, exceto a Sabrina. Reconheceu que era mesmo Antônio Carlos, aquele irmãozinho gêmeo que viveram juntos até aos quatro anos de idade. O rosto, o cabelo... tudo igual e a roupa também parecia. De longe daria pra dizer que era alguém que o estava imitando. Ao se aproximar, os dois se olharam e choraram. Carlos parou de tocar o violino. Verónica percebeu o que estava acontecendo, preocupada, mas continuou a música. Antônio Luiz estava um pouco mais magro que Antônio Carlos. Os dois irmãos dirigiram-se aos bastidores. O piano não foi interrompido. Foi muita emoção do três... dos quatros...

              Nos bastidores a emoção foi tanta, que Antônio Carlos caiu de um lado e Antônio Luiz do outro. Chegou o médico... mas já era tarde...

           Os corpos foram trasladados para o Brasil. Era um pedido feito pelo músico a uma semana antes, para a sua noiva. Ninguém esperava que fosse tão rápido...

             Na pequena localidade onde moravam quando crianças, tem um túmulo simples e uma inscrição numa placa de bronze: “Aqui jaz Antônio Carlos e Antônio Luiz, os Totônios. Nasceram juntos e juntos partiram.”

(Christiano Nunes)