Calada Morte

Friagem lá fora, um vento absurdo e inconveniente. As vozes dos moribundos ecoavam nos corredores. Um sangue escuro manchava as quinas das salas de cirurgias. França olhava por entre as frestas da janela e via poucas pessoas circulando no jardim de terra. Aquele enfermeiro gordo está de folga hoje. Nem sequer a água foi reposta. Visita rara de Carminha, que agora deu pra ceder ao desânimo, também não viu. Calado

ouvia umas vozes na cama do lado. Alguns sussurros que a cortina amarelada insistia em abafar. De que importa as vozes da cama ao lado? De quem importa senão estar ali agora? E a morte, porque não chega logo?

França foi pensando a madrugada, fazendo as malas do seu inconsciente, programando a chegada no outro lado da vida. Foi assim, tranqüilo e sereno que floreava sua morte que chegava firme, mostrando cada vez mais uma parte da sua invencibilidade.

Parecia ser um casal, ao lado. Um jarro de flor elegante adornava a estante. Não se via os pés dos vultos, seus cochichos uniformes sem altear a voz, nem sequer mexiam-se. França Voltou os olhos para fora e sem querer foi escutando as vozes. Dormiu assim, pensando na vida que acabara ali, nas vozes que um dia iria reencontrar e em Carminha que ele perdoou por não ter ido na Terça, nem na Quarta e nem dia nenhum no ano.

Na manhã seguinte Carminha estava lá, presente. Não chorou. Seu novo marido estava em casa e as dores da gravidez já desgastava seu corpo jovem. O serviço funerário levou o corpo do rapaz que estava numa sala onde esteve sempre sozinho. As vozes ao lado da cama não existiram, ou foram simplesmente delírio de mais um morto por aí.

Felipe Vasques
Enviado por Felipe Vasques em 23/08/2006
Reeditado em 27/06/2017
Código do texto: T223818
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