Alguns o seguiram quando deixou o esconderijo seguro no topo das árvores, foram por instinto, por uma fé que ainda não atinavam. Os que ficaram, apenas observaram confusos, assustados, testemunhando a escalada eufórica pelos galhos até o território hostil e desconhecido que os aguardava a partir do sopé do tronco. Ali, os dois grupos se separaram, definitivamente. Naquele ponto, a natureza levantava o muro irreversível que apartaria para sempre os conservadores dos transgressores.

Ergueram-se! Ganharam as planícies intempestivas. Nômades, numa indefinida fuga, procuravam comida, buscavam um destino. Escolheram se abrigar em cavernas sombrias e, certa vez, brincando com pedras, descobriram um Deus, subjugaram um espírito, domesticaram o fogo.

Provaram do gosto sanguíneo da carne, apreciaram a textura e o sabor da morte. Aprenderam a matar para comer. Multiplicaram-se rápido, formaram tribos. Seus dentes mudaram, suas faces transfiguraram-se.

Pensamentos brotavam como água da fonte, passaram a ver, a compreender. Suas mãos inventavam, desenhavam. O mundo deixava de ser um mistério, tornava-se um irresistível convite, um tapete por onde eles espalhavam suas pegadas.
Desafiaram o gelo, sobreviveram à aridez, às queimadas, continuaram a procriar, a povoar.

Numa manhã coberta por um azul opressor, migraram como fizeram tantas vezes. No meio do percurso, cruzaram com seres muito semelhantes a eles próprios. Espreitaram os outros com desconfiança, mas sentiram uma irrefreável atração, um estranho alívio para uma emoção que não conseguiam traduzir, mas que os acompanhou desde que deixaram o aconchego das árvores: a solidão.

Quiseram se aproximar, tocar nos semelhantes e ficaram surpresos ao perceberem que os outros emitiam sons que pareciam criar um elo entre eles. Num reflexo involuntário, sentiram os lábios repuxarem, estavam sorrindo, fascinados.
Escutaram um grito e um deles caiu ao chão após o golpe desferido por um dos estranhos. Não tiveram reação para fugir, mas uma fração de segundos foi suficiente para que entendessem a diferença que cavava o fosso entre eles e aqueles com quem esbarraram no caminho. Os olhos brancos, de uma força que nunca haviam conhecido, os derrubou, um a um. Sucumbiram diante do ódio e da maldade dos mais racionais.

Milhões de anos depois, num sítio arqueológico, um jovem remexia fósseis envoltos na lama negra oculta sob as profundezas da terra, o sepulcro das eras. Resgatou duas ossadas, crânios enterrados pelo tempo. Acomodou-os cuidadosamente numa caixa de isopor e levou-os à superfície. Examinou-os com minúcia, realizou uns poucos testes e colocou as duas cabeças em caixas separadas. Em cada uma pendurou uma etiqueta para identificá-las.

Quieto, fitando as duas caveiras que emergiram de um período remoto, o jovem arqueólogo não conseguia conter suas reflexões. Ali, no limbo daquela savana, encontraram-se duas espécies nascidas do mesmo tronco, dois irmãos se encararam e, provavelmente, não se reconheceram. Para um deles, o mundo foi descoberta; para o outro, tornou-se um império. Foi naquele ponto que a natureza, mais uma vez, subiu o muro que afastou eternamente duas espécies, os inocentes dos transgressores.

Lançou a vista para o horizonte que se descortinava além da tenda em que estava e espantou a dúvida inútil que desejava saber qual seria o próximo passo...

Ajeitou as etiquetas e apagou a luz. Antes de sair, ainda pode lê-las tremulando na penumbra: homo erectus, homo sapiens.
Alexandre Coslei
Enviado por Alexandre Coslei em 19/05/2010
Reeditado em 19/05/2010
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