Redenção, Caminho Para o Paraíso (Capítulo 1)

A cidade de São João Del rei era, a primeira vista, uma cidade como outra qualquer. Tinha seus habitantes ilustres, seus habitantes desprezíveis, seus políticos corruptos, seus segredos noturnos. Tudo o que uma cidade normal tinha, e algo a mais.

Olhando mais atentamente, a cidade era bem estranha. Quando se tratava de arquitetura, a cidade parecia perdida no tempo, em algum lugar entre os séculos XVIII e XX. Não se viam construções modernas com muita freqüência, as ruas em sua grande maioria eram de pedras, paralelepípedos ou bloquetes. Até mesmo os prédios mais urbanos da faculdade eram de arquitetura antiga, bem como seus cursos que, em sua grande maioria, eram voltados para as áreas de humanas.

Esse estilo retro das arquiteturas contrastava demais com o estilo urbano de seus habitantes. Como parte da rota turística Estrada Real, São João estava entre uma das mais importantes cidades de Minas Gerais em matéria de turismo, o que, consequentemente, fazia com que o fluxo de pessoas dentro da cidade fosse enorme. Conseqüência disso, seus moradores acabaram aprendendo tendências dos grandes centros urbanos do Brasil e de alguns outros países. Quando se fala de tribos urbanas, encontram-se emos, metaleiros, roqueiros, pagodeiros, sambistas, playboys, góticos, ou qualquer outra tribo que se encontre em grandes centros como São Paulo. É contrastante também o nível tecnológico da cidade em relação a sua ambientação antiquada. O número de lan houses, danceterias e lojas de informática tem aumentado consideravelmente nos últimos anos. Hoje é mais fácil encontrar uma loja de informática do que uma papelaria na cidade.

Mas a maior mudança de todas não é algo tão nobre ou agradável a seus habitantes. A maior de todas as mudanças na cidade é o índice de violência. Nos últimos anos, a violência da cidade tem aumentado absurdamente. Gangues dominam os bairros da cidade. Jovens andam armados em plena luz do dia. Claro, há quem possa pensar que, na verdade, tanta violência se deve à influência de demônios, vampiros, magos e outras criaturas sobrenaturais na cidade, mas tal fato não é verdade. Essa violência é própria e característica apenas dos seres humanos, o que é irônico, visto que essa é uma das cidades com o maior número de Igrejas do Estado. Pode-se encontrar na cidade Igrejas de quase todas as religiões cristãs do país, e, no entanto, nem mesmo isso é capaz de frear a violência cada vez maior da cidade.

Essa violência teve terríveis conseqüências para a cidade nos últimos tempos. Se as criaturas sobrenaturais não criaram nem aumentaram cada vez mais a violência, com certeza, ao menos, se aproveitaram dela. Tamanhos sentimentos negativos quebraram vários selos sagrados que mantinham as criaturas das trevas longe da cidade. Um destes selos, que trancavam um dos portais existentes para o Inferno, que fica na Praça de Matozinhos, escondido sob a forma de um chafariz, vem perdendo seu eficácia gradativamente. Pequenos demônios já conseguem passar pelo portal, invadindo a outrora pacata cidade. Outro símbolo sagrado, o Selo da Lira Celeste, que fica em pleno jardim da Igreja de São Francisco, no centro da cidade, vem apodrecendo e perdendo sua validade. Esse selo estava disfarçado com as palmeiras da Igreja, que só podia ser visto estando de frente da porta principal e olhando para o jardim. Na forma de uma lira, onde as palmeiras seriam as cordas, esse selo inibia os poderes de qualquer demônio que se encontra-se naquela parte da cidade. Agora, no entanto, esse símbolo está cada vez mais enfraquecido. Três das palmeiras que formavam o símbolo já foram cortadas, e, agora, alguns poderes já começam a se manifestar mesmo na presença do selo, se o usuário do poder tiver força de vontade o suficiente para superá-lo.

Criaturas sobrenaturais na cidade existiam, claro, mas não eram os responsáveis pelo que acontecia em seu meio. Dentre as mais comuns na cidade, podemos citar os pequenos demônios, anjos caídos, anjos, vampiros, magos, e alguns eventuais amaldiçoados, como lobisomens. Ah, claro, não se podia ignorar os fantasmas. Talvez estes formassem a maior parte da população sobrenatural de São João. Fossem de escravos ou de grandes poderosos do passado, os fantasmas estavam presentes em várias das lendas da cidade. Havia um sem número de histórias de fantasmas que protegiam as riquezas de seus antigos donos mesmo depois de sua morte, ou que buscavam vingança pela forma trágica como morreram. Devido a esse fato, a barreira que separa o mundo mortal do mundo de Spiritum é muito frágil, e o número de médiuns e paranormais na cidade também é grande, bem como o número de magos que seguem o caminho dos espíritos.

A fé em Deus na cidade era quase inexistente em certas ocasiões, e muito grande em outras. Durante festas religiosas, para criaturas demoníacas, era quase um sacrifício permanecer na cidade, pois ela emanava uma energia mística de poder da fé enorme, que causava mal as criaturas onde quer que elas se encontrasem, mas em outros períodos, a fé era quase nula, portanto era possível andar tranquilamente pelas ruas.

Aproveitando-se desse “fenômeno”, várias criaturas vinham de tempos em tempos para a cidade, para refugiar-se, elaborar planos, conseguir informações, buscar materiais para rituais e coisas do tipo. Mas havia um em especial que estava para ficar. Havia chegado à cidade há pouco mais de um mês, no fim de maio, em busca dos componentes finais do ritual que pretendia praticar. Com tantos fantasmas e selos quebrados, encontraria facilmente o que procurava, e podia-se utilizar da violência comum da cidade para disfarçar seus métodos de persuasão.

Não pretendia se demorar muito aqui, pois era uma criatura ocupada para os padrões de um demônio, mas um fato o fez mudar de idéia. Além de encontrar com extrema facilidade tudo o que precisava na cidade, havia descoberto que uma pessoa muito especial residindo nela. Tinha jurado vingança, e a havia conseguido, e como havia. Matar a amada daquele maldito anjo caído tinha um sabor especial, doce, suave, extasiante. Vê-lo amargurado, despedaçado, perdido, abandonado, era ainda mais doce. Desde que ele tinha fugido para se preocupar com coisas mais importantes, jamais havia pensado que um dia fosse se reencontrar com Erakel, mas sua sorte havia mudado. Nem fazia idéia que o maldito estava ali, na mesma cidade que ele, e o melhor, sem nem mesmo imaginar que a criatura que mais odiava no mundo estava ali.

Deveria tomar cuidado, afinal, a fúria de um caído pode ser um incomodo que atrapalharia muito seus planos, mas não tinha chegado tão longe para desistir assim tão fácil. Tomaria cuidado, deixaria vazar muitas informações falsas, faria com que o caído seguisse falsas pistas por muito tempo, até que fosse tarde demais para ele. Já tinha a alma da pessoa que fosse amada por um caído, o sangue de um híbrido, penas das asas de um arcanjo e olhos de um médium. Agora faltava pouco, apenas alguns ingredientes, e, se continuasse tendo sorte, acabaria de achando rapidamente a pessoa que lhe daria um dos mais difíceis componentes: sangue de virgem com pensamentos luxuriosos.

Eduardo Setzer Henrique
Enviado por Eduardo Setzer Henrique em 05/09/2006
Código do texto: T233358