Invisível

No carro haviam cinco pessoas, Bia e Pedro no banco da frente, eu, meu irmão Renan e um amigo nosso, Rodrigo, no banco de trás juntos de nós.

A bebida no nosso caso não serviu somente como agravante do acidente, Pedro que estava dirigindo havia exagerado demais, entretanto ninguém encontrava-se em condições de reclamar e sugerir que outra pessoa dirigisse.

Estava tudo bem, a música era alta suficiente para abafar qualquer pensamento pessimista, se bem que eu duvido que alguém ali poderia pensar em outra coisa qualquer.

Pedro e Bia começaram a discutir, e de repente aquilo tornou-se uma briga feia, as vozes superavam a música, os dois tentavam se bater, e o volante ficara sozinho, até que gritaram, não me lembro quem havia gritado, mas essa foi uma das poucas lembranças que tenho dos momentos anteriores ao acidente.

Há também uma vaga memória, acho que Pedro tentou parar o carro, não tenho certeza, mas lembro de ver o carro girar com os pneus ainda no solo, um barulho agudo e agoniante, alto, depois disso é só escuro...

Quando acordei sentia uma dor e um ardor que subiam pelo meu esôfago, tossi em demasia e minha cabeça latejava, a tosse vinha acompanhada de muito sangue, meus braços estavam cobertos por hematomas e meu pescoço estava dolorido de uma forma que não permitia movimentos rápidos.

Eu demorei muito tempo para conseguir sair do carro, a porta estava muito amassada e me pressionava para junto do corpo de meu irmão, minha visão não estava boa, era tudo muito embassado mas a dor era clara e forte para que eu não desejasse ver os machucados. Fui me movimentando devagar até escapar pelo buraco onde deveria estar o vidro e rastejar pela grama até me encostar em uma árvore e começar a respirar.

Um pouco menos desesperada voltei a me aproximar do carro, desse momento em diante a dor e o cansaço misturavam-se aos pensamentos terríveis, as lágrimas corriam sem controle e me sentia engasgada.

Caminhei desgovernada e consegui encontrar a estrada, era muito cedo, o fim da madrugada, início da manhã, minha jaqueta de couro havia se rasgado em muitas partes, sentia a bota apertar e isso não facilitava a caminhada. De segundo em segundo me vinha a cabeça o rosto de Renan, coberto de sangue, Pedro, o piercing dos lábios estava perdido e na boca só se via um enorme rasgo, eu não queria ter sobrevivido para ver aquilo, preferia estar com eles, longe de toda aquela dor estranha e irritante.

Já era de manhã quando cheguei em casa, minha mãe não estava em casa, me tranquei no quarto, precisava respirar, ficar sozinha, porque se fosse antes e o motivo da minha tristeza fosse outro eu estaria presa nos braços do meu melhor amigo desde sempre, meu irmão. A última lembrança dele eram os cortes profundos e o rosto calmo, e sem vida, eu não queria mais ver aquilo.

Ouvi a porta abrir e escutei o choro da minha mãe, ela já sabia, caminhei até ela e me joguei ao seu lado no sofá, ela deitara a cabeça no meu ombro e começara a chorar mais.

_ Ainda bem que está aqui Sara, ainda bem que você voltou.

Eu não pude dizer nada, só fiquei ali, esperando que eu fosse algum tipo de consolo a ela, perder um filho não era fácil, mas eu estava lá pela minha mãe.

Um dia se passou, não fui ao velório, iria depois, falar com meu irmão, a sós, ver o corpo dele inativo de novo não era nada que meu psicológico permitia.

Enquato isso eu escutava minha mãe, chorava no quarto, não dormia, levantava a toda hora, via as fotos minhas e do meu irmão na sala, isso a havia destruído.

Mesmo sendo de madrugada eu fui ao cemitério, era um horário bom, ninguém me incomodaria e eu estaria livre para chorar sem me sentir envergonhada.

Vi todos os túmulos, a dor apertava o peito e eu sentia uma vontade incomensurável de gritar e pedir que me levassem, ou que me devolvessem meus amigos e meu irmão.

Na lápide de Renan não havia cruz, cético, sempre pedia que não colocassemos imagens de santos em casa, e eu me sentia bem perto do local onde ele descansava, falei, chorei e rezei, uma das poucas orações que eu sabia.

Ao lado da lápide do meu irmão encontrei outra que era nova também, cheguei mais perto para ver de quem era, Sara Menezes, era uma lápide com o meu nome.

O desespero foi aumentando e se misturando a todos os outros sentimentos horríveis que eu guardava dentro de mim, mas tudo fora se discipando e dando lugar a uma imensidão de paz de espírito, tudo fazia sentido.

Minhas memórias acabam aí, no exato momento em que meu pés não tocavam mais o chão.

Fernanda Ferreira
Enviado por Fernanda Ferreira em 09/08/2010
Código do texto: T2428622
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