192 Horas
 
     As tardes de inverno trazem de volta minhas mais ocultas reminiscências, lembro-me de fatos da infância, a inocência, as brincadeiras... “bons tempos”, falo comigo, e fatos que sinceramente preferia não os ter vivenciado. Dentre esses, alguns bem fortes na lembrança, como se passassem neste exato momento. Outros mais longínquos na memória, mas que vem à tona como se nuvens carregadas se dissipassem e o sol surgisse repentinamente. Angústias, medo, solidão e prazer, tudo numa incrível e quase sádica mistura, que muitas vezes me levam a temer o ruído dos próprios passos ou uma projeção da própria sombra na parede. Imagens vão aparecendo e desaparecendo... uma projeção de slides na minha cabeça... latejo das têmporas... ranger dos dentes e, por fim vejo com nitidez:

     Eu tinha dezenove anos quando abracei ao militarismo como uma provável forma de vida... ilusão de jovem que aspira crescimento, respira altivez e vive de sonhos. Durante nove meses tudo correu razoavelmente bem, tudo dentro do considerado normal na rotina de um soldado.Tudo parecia dar certo. Mas aquela altivez desaparecera, os sonhos se tornaram em outros ideais, a rotina já não era mais tão aceitável... e veio a repentina mudança nos objetivos. Não queria mais ser militar, não aspirava mais por uma vida de privações e subserviência... assim, o mais desejável era que o tempo do período obrigatório corresse como o vento, logo poderia me ocupar com outras vontades, experimentar outras ideias. Foi quando, por um motivo vago, sem muita relevância e porque não dizer involuntário, fui levado a passar alguns dias na SIC (Seção de Investigação e Captura) do Batalhão de Infantaria do VI Comando Aéreo Regional. Estava preso, recluso como um bandido. Não achava que era para tanto... não aceitava aquilo como medida punitiva, mas como uma arbitrariedade de um comando insano e vil, que ao meu ver, não possuía a menor equiparação com a inteligência que imaginava ter. Mas não havia volta, estava condenado, a poucos dias, mas condenado.

     A cela, quase como um quarto com cerca de 3 metros por 2,5m, tinha uma porta comum de madeira, uma grade por fora e uma mesinha num canto. Havia uma cama que rangia tanto que preferi colocar o colchão direto no chão. E uma janela gradeada muito alta pela qual vez por outra, para fugir da solidão podia ver o jardim externo do batalhão e ouvir o cantar dos pássaros.

     O tempo enclausurado faz do homem indigno de sua própria compaixão. O torna rude, primitivo, duro e o faz mudar de aparência e até de personalidade. Durante o tempo que passei naquela clausura, me tornei tão frio quanto o próprio ambiente de ar pesado, sujo e fétido. Os dias se passavam lentamente e contava as horas e devorava livros para não perder os sentidos. No entanto, sentimentos muito diferentes passaram a me dominar. Já não dormia. Via vultos e sombras pelos cantos a me espreitar e, vez ou outra, uma voz doce e gentil me sussurrava coisas aos ouvidos... coisas agradáveis as vezes e coisas cruéis a todo instante. Quando conseguia dormir, acordava de súbito, assustado e trêmulo. Numa certa manhã, após uma noite atípica de sono, acordei com a incômoda certeza de ter passado toda a noite na companhia de uma mulher... “transamos a noite inteira”, pensei. Incrivelmente meus pensamentos eram afirmativos... “transamos sim... tenho certeza, mas... com quem transei”? Foi um longo dia. Longo e mórbido! A falta da mulher que estivera comigo me apunhalava o coração... a ausência de uma lembrança retorcia aquele punhal que sentia adentrar o peito. E a voz sussurrada e suave me veio soprar aos ouvidos: “... você gostou, eu sei”! Era quase meio dia e ela não parava. Uma tristeza incontrolável me assolou como num nocaute. “Você está horrível... está mal por estar aqui! Mas eu posso resolver isso... posso tirar você dessa clausura... você quer”? Ela parecia ouvir meus pensamentos. Não consegui comer a refeição que o recruta me trouxe. “Me diz... você quer sair? Você me quer? Vou tirar você daqui hoje ainda... vamos dançar na chuva que virá para resfriar a noite... será uma longa noite... os demônios vão dançar ao nosso redor... seremos dois demônios dançando na chuva... e o mundo vai parar”! Depois daquelas palavras, ela se foi. Senti sua falta durante boa parte da tarde. “A solidão é bem pior que a voz que me assombra”, pensei enquanto procurava algum pedaço de papel para escrever uma carta. E eis que relatei tudo pelo que estava passando, meus sonhos sensuais, meus transes alucinados, as visões das sombras e os vultos que se deslocavam na cela por todos os lados. Enfim, tudo confidenciei naquele pedaço de papel a um grande amigo:

Brasília, 07 de maio de 1994.

“Caríssimo amigo Alan

     Das sombras renasce o caos, quando só há traição e injustiça, onde toda obra termina, onde nada tem explicação, na morte premeditada... o fim! Se por um lado existe o medo, por outro há uma singular beleza na solidão do quarto vazio (uma cela) e frio... o mortiço! As paredes brancas, manchadas pelo tempo estampam lutuosamente o macabro ritual que presenciara... expressa em poucas palavras, a poesia da morte:

‘Daqui de baixo
Parece não haver saída
E nunca vou alcançar o teto!
Equívoco!
Posso transpassar a parede
E seguir rumo à liberdade...
Sim, posso passar através da parede
Eu vi isso na TV,
É simples!
Enfim a lâmina passa
E escorre dos meus pulsos
O que há de valor em mim
E aquilo que apenas eu posso tirar de mim...
A dignidade!
Não me arrependo e assino...

1ª Turma de 1991’

     Não é lindo? Sua assinatura avermelhada, estranho eu não conseguir ler o nome, mas torna o ambiente mais atrativo e agradavelmente lúgubre... é como flores no jardim, como a natureza morta a ornamentar a sala de jantar. Assentado ao piso de tacos envelhecidos, já sem brilho e coberto de poeira, fitando o teto branco, deixou-se a esperar que a última gota do néctar da vida escorresse por entre as frestas dos tacos. A morte enfim chegara e sobre o lago escarlate agora dorme por toda a eternidade. Observe a beleza dos fatos embora tenha o infeliz cometido a maior das covardias que se possa cometer! É estranho ver a morte de perto, meu amigo. Ela não é um monstro! Ela é linda como a imensidão do espaço. Ela fala como se beija os lábios de quem está apaixonado. Eu transei com ela ontem... sim... seus cabelos negros me cobriram como a noite, me enlouqueceu completamente, me arrepiando e provocando os mais intensos delírios diante ao eterno e infinito limbo que era o seu corpo. Ela vai me tirar para dançar esta noite.
Sem mais,
G. Maximilan”

     O dia seguinte veio de repente. Nem mesmo notei o passar das horas. Estava frio... muito frio. Uma névoa tensa cobria o jardim que eu sempre via ao subir na janela. O sabiá que sempre cantava no ipê roxo ao lado da cela estava calado. Névoa estranha que insistia em adentrar o meu aposento, bem como parecia querer adentrar também a minha alma. Eu me sentia flutuar e observei que havia alguma coisa escrita no canto da parede, bem próximo ao rodapé, então me debrucei ao chão para alcançar e enfim poder ler. Era um poema escrito à caneta preta e assinado de vermelho, um vermelho muito escuro, quase marrom. A coisa mais original e singularmente terrível que jamais vira. Mas eu não pude alcançar, não consegui ler. Ouvi um forte ruído de dobradiças rangendo. Alguém estava entrando. Vários soldados. Eu passei o ver tudo de cima. “Ainda estou sonhando”, pensei. Um dos homens, dava ordens. Os outros, com fardamento branco, carregaram algo para fora da cela. Um enorme embrulho. Não consegui ver o que era. Falavam sem parar. Uns pareciam estar muito consternados. Vasculharam tudo. Por fim, ficaram apenas dois e eu pude ouvir o que diziam:

     “ O que é isso escrito na parede? Parece uma poesia”! Um soldado se debruçou e leu:

Daqui de baixo
Parece não haver saída
E nunca vou alcançar o teto!
Equívoco!
Posso transpassar a parede
E seguir rumo à liberdade...
Sim, posso passar através da parede
Eu vi isso na TV,
É simples!
Enfim a lâmina passa
E escorre dos meus pulsos
O que há de valor em mim
E aquilo que apenas eu posso tirar de mim...
A dignidade!
Não me arrependo e assino...
S2 G. Maximilian
1ª Turma de 1991”

     Estavam lá as memórias do suicida, seus medos e delírios expressados naqueles poucos versos. Confesso que senti calafrios por todo o corpo. Depois de analisar e muito pensar, o medo deu lugar a curiosidade e passei a tentar imaginar como teria sido seus últimos momentos, reproduzir a cena mentalmente. O que faria em seu lugar? Que sentimento levaria um homem ao extremo? As respostas eram as mais variadas e a vastidão de possibilidades me cansavam e esgotavam os pensamentos. Pensar que houve um suicídio naquele mesmo lugar onde me encontrava era de arrepiar realmente, porém eu achava o medo algo benéfico naquele momento. Tantas perguntas e nenhuma resposta! Algo estava muito estranho. Minha companheira, a voz sensual, não havia me agraciado ainda. Queria muito saber quem eram aqueles homens e o que retiraram da minha cela. E adormeci. Um sono profundo e até mesmo sonhei com o fato, sonho este que supriu a minha necessidade de saber sobre o caso, já que ninguém me diria se perguntasse. Em meu sonho a voz me dizia: “... 192”! Apenas isso me dizia... até que vi a porta da cela se abrir e parei nela, observando o pátio, todos os homens em forma para o hasteamento da bandeira... fiquei em posição de sentido... prestei continência e depois saí... sim... eu saí da cela após ouvir a voz sensual e doce me dizer: “... estás livre”!
Nunca mais seria o mesmo após aqueles oito dias terríveis e belos que passei “hospedado” na maldita SIC, o poema ficou gravado em minha memória e para ser sincero me senti como se não fosse eu o próprio S2 G. Maximilian e provavelmente teria enlouquecido se não tivesse me ocupado em contar as horas para passar o tempo... foram 192 horas exatas até que as grades se abriram.

     Ainda visito o lugar. Ainda me vejo sobre os tacos desalinhados da cela fria e vazia. Sim... ninguém nunca mais foi preso na minha eterna cela.

     Fui encontrado no dia seguinte por um amigo que fora visitar-me. Estava branco como neve, mas ostentava um estranho e leve sorriso, como se a morte fosse a coisa mais bela que vira nos últimos dias de minha agonia, sorriso que deve ter se utilizado de minhas últimas forças. Ao meu lado havia uma lâmina de um barbeador quebrado e uma caixa de cigarros pela metade, um livro de Edgar Alan Poe e um pequeno toca fitas com uma fita onde apenas uma música se repetia, em seu refrão a frase: all you need is love.









 
Augusto Komar
Enviado por Augusto Komar em 21/08/2010
Reeditado em 30/06/2020
Código do texto: T2451714
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