A banda maldita

Aquele não foi mais um caso de loucura, de psicopata. Foi algo mais surpreendente e irreal.

Os jornais noticiaram: “Paulo, líder de uma banda, é gravemente ferido”

- Sangue. Sempre vi isso nos gibis que leio. Ah.... como gostaria que isso fosse verdade. Essa história de beber esse líquido quente e sedutor. Como é difícil a gente colocar nossos sonhos como parte de nossa realidade. Mas não aceito isso eu farei sim se tornar real. Vou fazer algo que vai entrar para a história.

-O que está dizendo Marco? – perguntou Adriana, sua irmã.

-Nada, apenas estou pensando alto.

-Certo.

Marco levantou-se do chão. Soltou o controle do vídeo game. “Resident Evil”. Não queria mais continuar jogando. Passara a manhã inteira em frente ao televisor e a sua vista já estava cansada. Fizera isso nos últimos 5 anos. Hoje com 19, precisava descansar e sair para a realidade. Afinal tinha sua banda de metal. Tocaria no bar “Revivos” , sábado. Tinha apenas três dias para ensaiar. Desligou o televisor, o vídeo game. Pegou sua guitarra, cabo, pedais e telefonou para os três integrantes da banda Submundo. Todos estavam preparados para o ensaio. Nenhum problema.

Encontraram-se, às 20:00, no estúdio nos fundos da casa de Marco.

-E aí amigo, tudo bem?, disse Paulo, o mais velho.

-Tudo.

Naquela noite, Paulo, Marco e os outros dois colegas ensaiaram muito bem. Todas as músicas saíram perfeitas. Havia algumas garotas que sempre traziam para assistir ao ensaio e naquele dia não fora diferente. Foi até melhor: havia cinco delas. Três eram típicas góticas de 17 anos para cima e duas irmãs meio suicidas.

A mãe de Marco trouxe um lanche para todos. Bolacha e refrigerante. Ela adorava a casa animada. Depois que seu marido falecera há oito anos, só arrumava caras asquerosos, pensava Marco e, ainda por cima, drogados. Que diabos minha mãe queria? Era a questão que mais o intrigava em relação aos relacionamentos de sua mãe. Mas preferia não interferir afinal ela tinha 52 anos e precisava estar feliz de alguma forma, após se aposentar. Era bonita, e o filho apenas queria que ela se valorizasse.

-Está tudo bem, Marco? – Disse umas das garotas tipo suicida. Os olhos dela eram grandes e negros e penetraram nos fundos dos de Marco que a encarou. Margareth conhecera o rapaz anos atrás em tempos de escola e alguns shows da banda. Na verdade era o que ocorrera com todas as moças ali presentes. Todas se identificavam com a música pesada e melódica da banda.

-Sim. Sabe, na verdade, gostaria de perguntar algo para vocês.

Os oito pararam de comer e levantaram a cabeça para o vocalista.

-Vocês se lembram da nossa brincadeira de adolescente?

-Qual? – Perguntou, Felipe, o guitarrista e melhor amigo de Marco.

-A de vampiros.

-Ah eu sei. Era muito legal. – disse Margareth.

-Que tal voltarmos a nossa brincadeira. Voltarmos aos velhos tempos só que agora de forma mais madura – disse Marco enquanto se levantava. Começou a andar entre todos que estavam sentados em alguns pufs coloridos que estavam sobre os carpetes acinzentados da sala usada como estúdio.

-Como assim? O que está sugerindo – A voz de Daniel saiu curiosa e com um temor repentino que o assolava que ele mesmo se surpreendera. O baixista ousava discordar de seu amigo algumas vezes sobre as músicas e rumos da banda. Mas daquela vez parecia que estava mais incisivo.

-Na verdade, pessoal, o que tenho para propor a vocês é que façamos uma reunião após os ensaios para que saudemos os espíritos do “rock´roll”.

-Nossa, agora você “viajou” hein Marco, disse Daniel. Mas percebeu que era o único que discordara. Olhou para os lados e percebeu a reprovação por suas palavras no olhar de todos, ali dentro.

-Calma, Daniel, deixe-o falar, disse, Tainá, a irmã de Margareth.

-Bom, eu andei lendo algo sobre a entrega de sangue, que é o símbolo do sacrifício e redenção. Ele é usado em rituais para que um ser supremo conceda benefícios materiais aos seres-humanos.

-Isso é verdade...-disse Margareth.

-E gostaria de propor que façamos a reunião após os ensaios nesse sentido...que façamos sacrifícios em parte de nosso corpo como forma de conseguirmos nosso sonho que é o de gravação de um cd e reconhecimento na mídia.

Todos aceitaram. As garotas porque estariam em um futuro promissor , com aqueles caras. Os rapazes porque estavam envolvidos em uma banda de garagem que apenas tocava em barzinhos para ganhar muito pouco. Sem empregos, não viam outra alternativa e, afinal de contas, chegaram à conclusão, nada de pior poderia lhes acontecer.

Decidiram que fariam os sacrifícios em si próprios. Cada um faria cortes em seus corpos como forma de entrega, desprendimento do corpo. Arranjaram algumas bacias e após o lanche trazido pela mãe de Marco faziam os cortes com uma gilete e deixavam o sangue correr nas águas das bacias de plástico.

A mãe de Marco perguntou o porquê das bacias e ele mentiu dizendo que eram parte de uma encenação que a banda estava fazendo para os shows. Ela aceitou a desculpa.

Passaram-se dois anos e a banda conseguiu fechar um contrato com uma gravadora. As reuniões continuaram por esse tempo. Foram se sofisticando com o uso de velas e panos e mesas cobertas com toalhas de seda e pratos em que eram servidos os sacrifícios. Algumas imagens foram levadas para o estúdio. Elas incluíam um bode azul de dois metros de altura que foi comprado por Daniel que agora era o maior defensor das reuniões.

Era uma noite de apresentação que faria história para a banda e tudo estava preparado. Eles se concentravam no camarim à luz de velas vermelhas e muita bebida. Entraram no palco gigantesco de um estádio no Japão. A banda, enfim, conseguira fechar um contrato promissor com uma gravadora lá de fora. Aquele era o primeiro show de sucesso realmente, pensavam.

Quando Marco viu o número de pessoas que os assistiam, não acreditou. Tudo veio à tona em sua mente: os ensaios, os anos de trabalho, as reuniões.

Agora estava prestes a ser um ídolo do metal. Todos gritavam em uníssono o nome da banda quando o vocalista começou a ouvir uma voz saindo de um ponto de dentro do seu cérebro. “Você precisa se cortar, meu servo. Derrame o seu sangue nesse palco para mim. Eu sou o seu senhor e exijo o seu sacrifício, como oferta e reconhecimento de meu poder”. Marco não entendeu aquilo. De onde saía aquela voz? Como alguém se intitulava seu senhor?

Não tinha como falar para seus amigos que entraram no palco também e começaram a tocar a música mais famosa da banda. O palco explodia. Uma nuvem foi projetada na frente deles pelo organizador do espetáculo. Os efeitos visuais eram profissionais.

“ Ah, seja o que for, vale a pena eu me cortar”, pensou Marco.

Ele pegou uma gilete que andava em seu bolso e fez um corte. Apontou para o ombro e o rasgou.

Todos da banda e do público gritaram.

Marco caiu no chão sobre o seu sangue.

A voz dele não saiu na música. O sucesso tinha sido interrompido. Marco caíra desmaiado.

Médicos subiram no palco e o levaram em uma maca.

No hospital, a banda estava em sua volta e aguardava ansiosa que ele acordasse. Todos estavam dormindo a não ser Daniel que ficou de pé, ao lado da cama.

Enfim, Marco acordou.

-Oi, amigo, o que houve com você cara? Por que fez aquilo?

-O que eu fiz, eu não me lembro?

-Você cortou seu pulso, cara, no palco...

-Droga, eu fiz isso? Eu não sabia o que estava fazendo, Daniel . Sabe eu ouvi uma voz dizendo para eu me cortar, que eu precisava fazer aquilo E eu fiz o corte em meu ombro.

-Nossa, você ouviu uma voz, cara? O corte foi em sue pulso– Daniel não acreditou muito e começava a se preocupar com o amigo. Talvez ele estivesse precisando de sua mãe que estava no banheiro naquele momento – Você não quer que eu chame sua mãe para conversar melhor com ela?

-Não, não precisa, Daniel. Quero que você saiba que precisamos parar com isso.

-Como assim? – disse Margareth ao acordar meio zonza – do que estão falando?

-Fiz algo errado com vocês amigos: pensei apenas em mim quando fiz uma escolha em minha vida. Acabei colocando vocês nisso também. E quase morri.

Margareth acordou sua irmã e Daniel os dois outros integrantes. Marco prosseguiu, com a voz grave de arrependimento.

-Na verdade, quando fazíamos os sacrifícios fizemos pactos com seres ocultos, maus. O que fiz com vocês em não revelar-lhes o livro em que peguei aquilo, tudo estava errado. Hoje eu sei a quem estou servindo e vocês tem que sair disso, pessoal.

-Sabíamos onde estávamos entrando, Marco, não pense que somos tão bobos assim – disse Daniel .

-É verdade – interrompeu Margareth – mas não sabíamos que isso chegaria a esse ponto.

-Só temos um problema - interrompeu Daniel – eu acho que eu causei tudo isso.

-Como assim? – Felipe perguntou.

-Quando coloquei aquela imagem do bode em nosso estúdio. Vocês sabem o que ele representa?

-Ah, isso não é problema – respondeu Margareth.

-É sim. Ele representa Satã, para quem não sabe.

-E daí? – Margareth ironizou.

-E daí é que quando fazíamos as preces, pedíamos para ele, é óbvio.

-E o que acha que devemos fazer – perguntou Marco, assustado.

-O que temos que fazer – ponderou Daniel – é destruir aquela imagem, o mais rápido possível, antes que tenhamos mais problemas.

A questão não era tão fácil assim. A imagem do bode azul tinha sido levada para um local, uma grande igreja que Daniel sugerira fundar. Não havia cruzes nem Cristo lá. Apenas o bode e pedidos de muitos fiéis que compareciam em número cada vez maior, ao longo de um ano da fundação. Havia um pregador que usava a bíblia de satanás lendo-a sem dizer o que era. Ninguém sabia daquilo tudo, a fonte daquele conhecimento. E daquele jeito estava bom. Sem perguntas, era a única regra que faziam as pessoas aceitarem ao resolverem entrar para aquela igreja. E o número grande de fiéis tinha aumentado, além das contribuições. Cada dez por cento do que ganhavam era obrigatoriamente doado para a sociedade. Os fiéis prosperaram.

O que Daniel teria que fazer? Ele não sabia mas apenas tinha a certeza de que a vida de seu amigo estava em jogo e precisava ser rápido.

Ao voltar ao hospital nos dias seguintes percebera que o estado de saúde de Marco piorara. O vocalista pegara uma febre avassaladora de 40 graus que não abaixava e era uma constante em todas as noites juntamente com os pesadelos e sonhos e vozes que não revelara a ninguém a não ser ao seu amigo Daniel. A situação era urgente. Daniel precisava fazer alguma coisa.

A reunião fora realizada entre os membros da banda e as garotas. O plano era simples e foi executado.

A explosão se dera de madrugada. Toda o púlpito foi queimado. A estátua do bode estava em pedaços, com a explosão. A igreja fora consumida pelo fogo. Ao chegar à igreja, Daniel viu um dos bombeiros o chamar.

-Ei, rapaz, venha até aqui.

-Sim senhor.

-Essa igreja era sua não era?

-Sim.

-Tinha seguro contra incêndios?

- Não, não tinha não - ele mentira para o policial. Aquilo tudo acabara.

O plano deu certo. Afinal iriam investigar e nunca descobririam pois mais um botijão de gás havia explodido. Só não souberam explicar um fato: como a imagem do bode pudera explodir.

Enfim seu amigo estava bem. Marco voltara para casa naquela noite, após a explosão. Sua mãe, não tocara no assunto dos motivos de ter se cortado. “Meu filho pode estar estressado. São muitas novidades em pouco tempo. Ele é muito novo”, era o que concluíra.

A banda ainda continuou sendo notícia. “Incêndio na igreja de um dos integrantes da banda submundo”.

Quanto às músicas, continuaram a ser tocadas nas rádios do Japão. O público lembrara do fato ocorrido com o vocalista e estava querendo vê-lo cantar em um palco, finalmente. Todos souberam da estátua e uns condenaram a atitude de culto ao bode, mas a maioria gostou: era algo diferente. Não era careta. Essa era uma banda de atitude. Virou sucesso absoluto. As reuniões nunca mais ocorreram e Marco estava cada vez melhor. Não tinha mais pesadelos. Ele e seus amigos estavam livres.