A FEIRA

A FEIRA

Rubens Alves Teixeira

05/01/2003

Numa manhã de Sábado estava eu andando pela rua onde moro. Meu destino era qualquer um, pois estava andando um pouco para curtir o dia de folga do trabalho.

O local onde eu moro fica na periferia da cidade, onde terminam as casas e começa uma mata rala (cidade do interior, pequena, mas aconchegante).

Ao passar por um terreno onde havia sido feita uma terraplanagem, notei que aquele local era usado pela molecada para soltar pipas e brincadeiras típicas da infância.

Haviam alí muitas “carcaças” de pipas enroscadas nas árvores de baixa estatura (eram apenas as armações de bambu). Resolvi ir até lá e recolher uma dessas armações que seria fácil revestir com papel ceda. Seria uma ótima pedida para trazer meu filho pequeno para brincar um pouco. Na verdade eu também iria ter uma tarde muito divertida nesse local.

Foi fácil recolher uma das armações logo que entrei no terreno. Terra solta daquelas que levanta poeira e encarde a roupa. Já de posse do brinquedo, continuei minha caminhada.

Logo mais à frente deparei-me com uma feira livre típica do interior. Daquelas onde se compra e se vende de tudo. Tinha barbeiro, venda de frutas, verduras, utensílios e tudo o mais.

Pessoas em grande quantidade congestionavam os corredores estreitos. As conversas se confundiam e os feirantes a gritar suas ofertas do dia.

A feira era extensa e terminava pouco antes de uma curva da estrada.

No meio daquela gente toda havia uma muito estranha, um homem de não mais que trinta anos, olhar infantil. É forte, alto e moreno como são os caboclos da região e o que mais chama atenção nele é o fato de que é deficiente mental. Provavelmente daí viria sua aparência infantil.

Todos conheciam aquela figura que perambula pelas ruas sem destino. Seu nome é um tanto fora da sua realidade de caboclo. Chama-se Jonathan e ninguém saberia dizer onde morava ao certo. Família... bem, pelo menos ninguém assume parentesco com Jonathan.

Naquele dia em particular Jonathan estava inquieto a fazer perguntas aos passantes. Na verdade era apenas uma pergunta:

- Qual o gosto da sopa de tartaruga?

Essa pergunta é feita a todos que cruzam seu caminho. Já começava a incomodar as pessoas que já iniciavam uma repulsa àquela criatura.

Na ânsia de obter uma resposta que o satisfizesse, Jonathan continuava sua cruzada interrogando a todos:

- Qual o gosto da sopa de tartaruga?

A resposta quase sempre era a mesma:

- Sei lá qual é o gosto, sai daqui seu maluco!

Noutro lugar mais afastado próximo da ponte logo após a curva, três amigos adolescentes caminham pela estrada distraidos por brincadeiras juvenis, ocupando toda a largura do passeio.

São três jovens, sendo que dois deles tem aproximadamente quinze anos e o outro por volta dos vinte anos. Seguem afastando-se da feira indo em direção à ponte.

O destino sempre vem ao encontro de quem menos o espera. É isso que aguarda aqueles jovens.

Ao chegarem na cabeceira da ponte avistam na outra extremidade um grupo de homens conduzindo um carrinho de mão com vários objetos em cima. Não tomam conhecimento e continuam seu caminho na maior animação.

O estranho grupo é composto de cinco homens de aparência muito suspeita e os objetos no carrinho sem dúvida resultado de pilhagens em alguma residência mais afastada da estrada.

Dos cinco homens, sem dúvida o mais velho, de cor clara, tipo ruivo, cabelos de fogo encaracolados é o mais sinistro. Seu olhar é de quem esconde grande segredo e vive para derrubar qualquer pessoa que ouse desvendá-lo. Não é de grande estatura, porém, é forte como um touro.

Os outros quatro também de sembrante que causa receio em encará-los parecem menos amedrontadores, mas, também não escondem sua índole voltada para o mau.

O encontro fatal ocorreu no meio da ponte. Antiga construção sobre um riacho raquítico que através dos milênios escavou profundo vale. Nas margens do riacho as pedras existem em grande profusão, lembranças dum passado remoto quando o riacho ainda era um rio caudaloso.

No momento que os rapazes perceberam que estava para acontecer algo ruim, já era tarde para retroceder e pararam no meio do caminho.

Como a parede escura da tempestade que se aproxima e é iminente, o grupo de homens vinha chegando cada vez mais perto.

O homem mais velho já vinha esbravejando palavrões e insultos para os jovens.

Também o rapaz mais velho tomou a liderança falando em nome dos demais:

- Olá! Nós não queremos encrencas e nos desculpamos se fizemos ou dissemos alguma coisa errada!

Essas palavras, porém somente aumentaram a cólera do indivíduo rude que escarneceu ainda mais.

- Há!, há!, há!.... o almofadinha sujou as calças!!!

Os rapazes estavam petrificados de medo, o que encorajou o restante dos homens a participar de uma possível pancadaria.

- Vamos dar uma surra nesses piás de merda!!!

- É, vamos pegar esse daí que fala demais!!!

O homem já chegou empurrando o rapaz que não reagiu e tentou se afastar.

- Por favor, nós não...........

Levou um violento soco no estômago que o levou ao chão. Nesse ínteirim, os outros homens já haviam cercado os rapazes, fazendo ameaças.

Parecia que seria inevitável que houvesse um massacre naquele lugar ermo.

O lider dos mau feitores aproveitou que o jovem estava a contorcer de dores caído no chão, pegou-o pela cintura e levantou-o dirigindo-se para a mureta da ponte. Servindo-se de sua superioridade de forças, quase não tomava conhecimento de que o rapaz começava a espernear tentando escapar do abraço apertado.

O rapaz agora acuado entre a mureta da ponte e os músculos do seu adversário pressentia que sua hora final havia chego e começava a implorar pela vida.

- Por favor, não faça isso comigo, eu não quero morrer!!!

- Você vai voar lá para baixo cara! Azar o seu que será uma viagem só de ida seu maricas!!!

Agora o jovem apenas se agarrava na mureta com todas as forças que possuía. Pena que não era suficiente para impedir seu destino. Nesse instante já estava com metade do corpo no vazio.

Os outros integrantes dos dois grupos agora somente assistiam a cena. Os rapazes apavorados e os amigos do bandido esperando o final com o corpo do pobre estatelado lá no fundo do vale.

A ironia dos fatos é que a providência divina parece esperar pelo último resquício de esperança para dar o ar da sua graça. A ajuda divina, se é que se pode chamar assim chega enfim.

Como que surgindo do nada eis que aparece Jonatham com seu olhar de criança e movimentos lerdos, quase preguiçosos. Sem levantar o rosto ele fala com voz mansa:

- Isso é mau, não é bom, é muito ruim!!

O valentão que estava prestes a destruir a vida duma pessoa inocente interrompeu seu intento e puxou o rapaz para fora do perigo de cair no abismo, o mesmo já havia se conformado com seu destino.

Como é típico de pessoas sem sentimentos humanitários, perdeu o interesse no que estava fazendo e voltou-se na direção do recém chegado.

Todos agora concentraram sua atenção nos dois: de um lado “o mau”, do outro “o bem”.

Dos olhos do “mau” agora brilhava ódio incontido como chamas descontroladas.

Talvez o fato de Jonatham ser um sujeito forte e alto fez com que o outro não o atacasse de imediato. Apenas bufava de raiva e esbravejou:

- O que esse idiota disse? Acho que vou ter que dar uma lição nele antes de terminar a brincadeira com o almofadinha aqui!!!

Sem tomar conhecimento das palavras proferidas, Jonatham repetiu sua profecia:

- Isso é mau, não é bom, é muito ruim!!!

Ele estava a uns dez metros de distância do seu oponente e não mais saiu do lugar.

O mau feitor ao contrário se aproximou mais uns metros xingando e tomando coragem para enfrentar alguém maior, porém aparentemente inofensivo.

-Eu vou mostrar o que acontece com quem fica no meu caminho seu retardado. O que é que você está dizendo seu louco?

De repente o tom de voz de Jonatham mudou, tornou-se uma voz de quem tem lucidez e discernimento, sabe o que diz. Dirigiu-se aos garotos dizendo:

- Vocês devem partir logo, pois, algo muito ruim está para acontecer aqui!!!

Aquelas palavras ameaçadoras fizeram com que os outros homens e garotos sentissem um calafrio e tomaram atitude de defesa.

Um dos homens do grupo tomou a palavra, estava muito nervoso:

- Vamos lá chefe, deixa pra lá esses idiotas e vamos embora!!!

- Nem penso nisso, eu vou é dar umas cacetadas nesse idiota e vocês aí calem suas bocas!!!

Jonatham novamente se dirigiu aos jovens para que deixassem o local.

- Rápido, não posso mais segurar por muito tempo algo que está para acontecer e não posso evitar. Rápido, saiam daqui agora!!!

Os rapazes saíram do transe que pareciam estar e começaram a se mexer primeiro devagar e logo em seguida saíram correndo. Os outros elementos estavam petrificados.

O líder do grupo exalava ódio por todos os poros, parecia que ele fazia um gigantesco esforço para sair da apatia, como se alguma força misteriosa o estivesse detendo.

As feições de Jonatham começavam a mudar, agora já não era mais de um menino que lhe era típico. Veias grossas surgiram nas suas têmporas e sua jugular pulsava anunciando algo sinistro. Sua pele adquiriu cor avermelhada e os olhos como que prestes a saltar de suas órbitas estavam injetados de sangue.

O mal feitor reuniu todas suas forças e pricipitou-se na direção de Jonatham. Parecia que ele estava mergulhado numa substância pegajosa que lhe retardava os movimentos e tudo se passava em câmera lenta. Seus passos pesados o levavam cada vez mais perto do seu objetivo.

Jonatham agora já não mais lembrava aquele sujeito pacato, uma criança grande.

O tempo parecia estar caminhando lentamente e as folhas das árvores não se moviam, pois, a brisa também estava lenta, quase parada.

O homem enfurecido agora já conseguira chegar bem próximo de Jonatham, seria mais ou menos um metro e meio. Estava com os braços estendidos na direção do seu adversário com a clara intenção de esganá-lo.

Daí é que a coisa toda aconteceu. Tudo se passou como um relâmpago que vem de repente e nos pega de surpresa.

Um grito muito alto saiu da garganta de Jonatham como que para liberar imensa energia acumulada.

Dos olhos de Jonatham como que um flash desses de fotografia foi emitido na direção do oponente.

A paisagem em volta do grupo ficou mergulhada numa luz branca ofuscante tão intensa que tornou os objetos próximos com uma cor “prateada”.

A luz quando atingiu os homens atravessou-os como se eles fossem transparentes.

O que aconteceu depois disso é muito difícil explicar, pois, não ocorreu nada parecido com isso até agora, pelo menos nenhuma notícia a respeito.

Os corpos dos homens começaram a vibrar como que se houvesse alguma coisa emitindo ondas de alta frequência de dentro para fora.

Seus rostos mostravam a intensa dor que isso lhes causava. Em seguida seus corpos começaram a inchar e pulsar.

Numa fração de segundos houve mais um acontecimento espantoso: numa explosão silenciosa os homens foram desintegrados em suas partículas, cada vez menores que se espalhavam ao vento como uma nuvem de elementos a voltar para compor a natureza.

Tudo continuava a acontecer silenciosa e lentamente. Aos poucos o tempo começa a se normalizar e com ele todos os acontecimentos que dele derivam como os eventos corriqueiros do dia-a-dia.

As feições de Jonatham também começam a voltar ao normal, adquire novamente aquele ar infantil de sempre.

As folhas das árvores já começam a ser agitadas pelo vento que voltou, barulho de insetos e o canto dos pássaros também retornam como se nada tivesse acontecido.

O único vestígio de que algo havia acontecido naquele lugar eram cinco manchas escuras como aquelas que ficam depois que se apaga uma fogueira sobre uma laje e é claro, este que lhes narra toda a história do local onde havia estado a espiar.

Eu havia entrado entre as árvores para satisfazer uma bexiga que pedia para ser esvaziada. Estava ainda paralisado com tudo que vira que não fui percebido por ninguém durante o desfecho de todos os fatos ocorridos.

Jonatham agora já em estado normal voltou a falar sozinho questionando à si mesmo a mesma pergunta que já fazia ao se levantar de manhã:

- Qual o gosto da sopa de tartaruga?

Falava baixo como sempre sem aparentar ter consciência do que havia se passado a alguns momentos atrás.

Jonatham fez meia volta e começou a se deslocar de volta à feira, de vagar, sem pressa.

Eu sai da apatia e o segui a uma distância segura.

De volta à feira, Jonatham continuou sua peregrinação de barraca em barraca e para cada pessoa que cruzava sua frente, sempre a mesma pergunta:

- Qual o gosto da sopa de tartaruga?

Como antes, ninguém lhe dava atenção e quando ele estava de volta ao início da feira, entrou na barbearia e questionou ao barbeiro que o pegou pelo braço e colocou-o lá fora para não incomodar ao freguês que fazia a barba ali.

Jonatham baixou a cabeça e ia seguir seu caminho quando o homem que estava com o rosto cheio de espumas chamou-o de volta e disse:

- A sopa de tartaruga tem gosto de tartaruga!!

- Ah!...., sei!......, obrigado!!! – Disse Jonatham sem se virar e foi embora sem olhar para trás.

Eu estava na porta da barbearia ouvindo e vi quando Jonatham dobrou à esquerda na próxima esquina.

Quanto a mim, também voltei para casa e até hoje mão consegui uma explicação para tudo o que aconteceu naquele dia.

Jonatham continuou perambulando pelas ruas sem destino; dos jovens, os vi mais algumas vezes. Quanto aos desaparecidos......., bem, ninguém sentiu falta ou procurou por eles, acho que não eram da cidade, daí talvez o fato de ninguém se importar.

Nunca comentei com ninguém a respeito por medo de ser taxado de louco; ninguém acreditaria mesmo numa história tão fantástica como esta.

FIM

Tex
Enviado por Tex em 15/06/2005
Código do texto: T24735