Anita, Bernardo e Emílio.

Desde a infância, vivida toda em uma cidadezinha do interior paulista, os três eram inseparáveis. Anita Ferreira Castro era a mais nova, com dez anos na época. Bernardo Felipe Rodrigues e Emílio de Souza Martins eram um pouco mais vividos, o primeiro tinha onze e o segundo era um ano mais velho.

Os três haviam se conhecido na igreja, ou melhor, seus pais haviam se conhecido na igreja e, por estes serem conhecidos entre si, acabaram por semear uma amizade entre seus filhos. Os pais de Emilio eram proprietários de um mercadinho na cidade, tinham uma vida confortável, mas não extravagante, assim como os pais de Anita, que possuíam um pequeno escritório de advocacia. Os pais de Bernardo trabalhavam em um frigorífico aviário da cidade, tinham uma vida simples e bem apertada quando o assunto era dinheiro ou tempo.

Apesar destas diferenças sociais, a amizade, tanto entre os pais, quanto entre os filhos, nunca foi prejudicada. Naquela época as pessoas do interior ainda não ligavam muito para dinheiro. Todos os finais de semana que houveram de existir naquele tempo foram passados juntos, as três famílias confraternizadas, e isso só aumentava a cada dia a amizade das crianças. Houve apenas uma briga na infância desses e – imagino eu – ainda hoje os três se lembrariam se fosse possível.

Foi em um domingo quente – o sol queimava a pino por aquelas bandas –, os pais resolveram ligar os regadores do jardim da casa dos Martins para refrescar o ambiente e também para que as crianças brincassem. Elas adoraram a idéia. Correram para a água, molharam-se todas. Após alguns minutos de brincadeira Bernardo teve a idéia de pegar uma lona, que tinha visto jogada de canto no quartinho de ferramentas dos Martins, e enche-la de sabão para poderem brincar de escorregar. Emílio e Anita correram para pegar o sabão enquanto Bernardo arrastava a lona no gramado e rapidinho fizeram o brinquedo. Esbaldaram-se na brincadeira, escorregavam, viravam piruetas, caiam e nem ligavam. Nem os pais se preocupavam mais a essa altura, lá dentro da casa tinham o sossego esmerado para falar de coisas da vida.

Aproveitavam, seus pais, este sossego até que Anita o interrompeu:

– Mãe! Mãe! – todos correram para fora da casa.

– O que foi, Anita? O que aconteceu? – interrogou a mãe Castro.

– Emílio me derrubou e machucou meu braço! – disse a pequena chorando lágrimas corridas.

Os Martins logo pegaram na orelha de Emílio e lhe deram uma dura:

– Que falta de respeito com a visita, Emílio. Peça já desculpas!

– Mas – disse com a voz tremida de choro – a culpa é do Bernardo, ele me empurrou e eu acabei empurrando-a sem querer.

– Mentira! – interpelou Bernardo.

– Calado! – disse a senhora Rodrigues em tom de advertência a Bernardo.

– Ambos peçam desculpas a Anita – continuou o senhor Martins – e prometam-lhe que nem isso, nem nada semelhante, irá acontecer com ela novamente.

– Desculpa! – disseram os dois, quase em um uníssono de vozes tristonhas.

– Tudo bem – respondeu Anita, agora sem choro.

Esta foi a primeira briga entre eles, e por muito tempo foi a ultima, mas foi a ultima apenas em um intervalo de tempo.

O tempo foi passando e as crianças iam crescendo. Cinco anos depois quase nada mudou, eles ainda eram amigos inseparáveis, viviam juntos na escola, saiam juntos e tudo mais que os jovens tem de fazer. Mas uma coisa mudou em relação a amizade: Anita, agora com quinze anos, tinha se tornado uma jovem muito bela e isso chamou a atenção tanto de Bernardo quanto de Emílio. Nos dois despertava um desejo por ela, mas eles ainda não arriscavam nada. Era ainda platônico.

Aconteceu que um ano e meio – quase dois – depois Anita arrumou um namoradinho na escola. Bernardo e Emílio não gostaram nada daquilo, mas não manifestaram nada dentro de um mês. Depois desse tempo ambos, quando conversavam com Anita, procuravam gorar e botar todo tipo de defeito em seu namoradinho. Sempre mostravam os defeitos do garoto e um complementava o outro nisso, mesmo sem estes combinarem nada, era quase instintivo: Anita chegava e começava a saraivada contra sua paixonete.

Anita pensava realmente no que os dois lhe diziam, afinal, eram amigos há tanto tempo que devia haver de verdade alguma preocupação para que eles dissessem tudo aquilo. Dois meses depois ela terminou com o garoto.

Ela ficou muito triste pelo acontecido. Não por acabar, pois já não sentia nada em relação ao garoto, mas porque o baile de formatura estava chegando e agora ela não tinha mais um par. No mesmo dia ela foi contar para os meninos:

– Terminei com Edgar.

– Que bom...quero dizer, que chato – Bernardo fez a melhor expressão de tristeza que podia, mas isso não quer dizer que tenha sido boa.

– Pois é, que chato – complementou Emílio.

– Comecei a reparar – continuou Anita – no que vocês me disseram e vi que tinham mesmo razão, ele não era tudo o que eu esperava e nem chegaria a ser, afinal me dei conta de que eu não gostava realmente dele. O chato é que agora estou sem companhia para o baile.

Bernardo e Emílio não acreditavam no que ouviam. Era muita sorte, ou o planinho descombinado deles havia mesmo funcionado. Deram um salto, seus corações palpitavam, iriam convidá-la.

– Quer ir comigo ao baile? – disse exasperadamente Emílio, enquanto Bernardo apenas se enroscava com as primeiras silabas.

– Eu adoraria – respondeu Anita.

– O que você ia dizer Bernardo? – perguntou Emílio.

– Não era nada não – respondeu cabisbaixo.

Na verdade Bernardo ficou frustrado. Queria muito levá-la ao baile, mas não conseguiu, ficou tão nervoso quando iria convidá-la que se embananou todo com as palavras, dando passe livre para Emílio fazê-lo.

Emílio não menos queria que ela fosse ao baile em sua companhia. Foi merecido. Faltou sorte para o Bernardo, só isso.

Anita, por outro lado, iria ao baile com qualquer um dos dois. Só restava alguém convidá-la. Esta não nutria ainda nenhum sentimento diferente para com os dois, ainda era só amizade.

Algumas semanas se passaram e o tão esperado baile chegou. Anita e Emílio se encontraram na praça da igreja. Bernardo não foi.

No baile os dois passaram todo o tempo juntos. Riam, conversavam, dançavam e a noite estava muito agradável para os dois. Emílio levou Anita para a pista novamente, tocava uma musica lenta, deliciosa. Emílio segurava Anita perto de seu corpo, segurava firme, mas não chegava a apertar. A musica ia rolando e, no embalo desta, Emílio, olhando fundo nos olhos verdes de Anita, arriscou um beijo. Na primeira tentativa foi apenas um estalido, mas Anita gostou e, segundos depois, os dois embarcaram em um longo e caloroso beijo.

Começava ai a história de amor dos dois, o namoro durou até os vinte anos de Anita, depois vieram o noivado e o casamento. Bernardo foi padrinho.

Mas também, até ai, Bernardo ainda nutria um amor por Anita. Continuavam amigos, da parte dele ainda era tudo platônico, Anita nem imaginava e muito menos Emílio. Mas sim, Bernardo amava aquela mulher, cada vez mais linda e carregava ainda aquele amor frustrado. Toda vez que se fazia a presença daqueles longos cabelos pretos de seus olhos verdes claros, quase transparentes, era um pesadelo para ele. Tinha que se controlar, sofria, sofria calado por aquela mulher, sofria assim como sofreu quase cinco anos.

O casamento entre Emílio e Anita corria bem. Compraram uma casa com boa vizinhança e um bom carro. Emílio administrava a agora rede dos supermercados Martins e Anita cuidava da casa. Seu trabalho lhe ocupava o dia todo. Era extenuante, não dormia direito, não comia bem como deveria, levava trabalho para casa e tudo mais o que há de se passar em um trabalho desses. Anita era sempre compreensiva, às vezes Emílio era grosseiro, mas ela procurava entender, afinal ele estava muito estressado e no fim da noite este sempre acabava por pedir desculpas.

Bernardo também conquistou algumas coisas. Virou policial na cidade e comprou um carro, mas ainda morava com seus pais. Ainda vivia lá por não ter necessidade de uma casa só para ele, afinal seu grande amor já tinha uma casa e tudo o que se espera dela: conforto, status e um marido. Neste ultimo item Bernardo se frustrava, era seu melhor amigo aquele quem roubou, por assim dizer, a mulher da sua vida.

Após dois anos o casamento de Anita e Emílio começou a enfrentar problemas. Emílio bebia muito, muito mesmo. Chegava do trabalho explodindo e descontava toda sua raiva em Anita que já não mais buscava apaziguar tudo, agora ela protestava, ele não tinha o direito de tratá-la daquela forma. Por muito tempo foi assim e piorava cada dia mais. Depois de mais algum tempo, as agressões verbais de Emílio aparentemente já não davam conta de fornecer escape para sua fúria, então começou a agredir fisicamente Anita. No inicio foram fortes tapas e arremesso de alguns objetos, coisas que Anita podia revidar, mas com o tempo começou a literalmente espancá-la. Numa noite, após mais uma discussão, Emílio pegou Anita pelos cabelos e bateu sua cabeça muito forte na parede. Os vizinhos ouviram os gritos e chamaram a polícia.

Como na cidade havia apenas quatro policiais, quem atendeu o chamado foi Bernardo, que ao conferir o endereço da ocorrência logo se desesperou e foi o mais rápido que pode para a casa dos amigos. Quando chegou lá encontrou Anita com o cabelo bagunçado e a testa ensangüentada. Tanto Anita quanto Emílio choravam. Anita de dor e Emílio de arrependimento. Depois de uma longa conversa, com intervenção de Bernardo, Anita resolveu não prestar queixa e deixou para que tudo se resolvesse com diálogo, pois achava que Emílio iria melhorar.

Bernardo, agora, estava decepcionado com o amigo e muito, muito amargurado com o sofrimento de Anita. Este sofria por ela. Lembrava todas as noites de seu rosto a escorrer aquele misto sanguíneo lacrimoso. Isso doía de lembrar, mas não conseguia tirar essa lembrança da cabeça.

Após algum tempo as ocorrências aumentavam na casa do casal e iam tornando-se cada vez mais freqüentes. Bernardo agora aconselhava para que Anita deixasse Emílio, pois as brigas ficavam cada vez mais violentas e ela estava sofrendo muito com aquilo. A amizade que Bernardo tinha por Emílio tinha quase se extinguido, o sentimento mais forte que Bernardo nutria por ele agora era o ódio.

Bernardo falava com Anita quase todos os dias, mas esta não abandonava a casa. Ela ainda amava Emílio, e não queria acreditar que a pessoa com quem ela havia se casado tornara-se um monstro.

Era o máximo que Bernardo podia fazer, advertir. Algum tempo depois da ultima ocorrência, Bernardo recebeu um chamado pelo rádio, era, de novo, da casa de seus amigos. Chegando lá viu Anita sendo levada para a ambulância. Emílio havia quebrado seu nariz. Bernardo ficou enfurecido, mas procurou manter a calma, pois, como bom e sensato policial que era, não iria misturar assuntos pessoais com os do trabalho. Foi para dentro da casa, Emílio estava no sofá, estático, Bernardo o algemou e Emílio não resistiu. Os dois foram até a viatura. Bernardo iria levá-lo até a delegacia.

No percurso Emílio resolveu falar. Começou por tentar se defender, tentando explicar-se para Bernardo, mas esse permanecia calado, apenas dirigia, como se não prestasse atenção no que ele dizia. Isso enfureceu Emílio que começou a gritar, xingar e ofender Anita de diversas formas. Bernardo, apesar de parecer impassível, ia ficando cada vez mais irritado com a atitude do amigo, pensava consigo que aquilo tinha que acabar, não só o que estava acontecendo na viatura, mas todo o resto. Então Bernardo começou a dirigir mais rápido, pegou alguns atalhos e saiu da cidade. Emílio não parava de perguntar, queria saber por que Bernardo não o levou para a delegacia como deveria, mas ele não respondia.

Bernardo parou a viatura em uma estrada de terra perdida e deserta, desceu e ordenou que Emílio descesse também:

– Vamos conversar – disse calmamente Bernardo.

– Conversar o que? Meu casamento não é da sua conta, Bernardo! – gritou Emílio.

– Não se trata disso – continuou Bernardo – trata-se das agressões contra Anita, você tem que parar, ela não merece isso!

– Cale a boca! Ela é minha esposa, o que eu faço com ela é da minha conta!

Bernardo, vendo que dessa forma a conversa não seria nada produtiva, sacou a arma e mandou Emílio ajoelhar-se. Este obedeceu prontamente. Tremia diante da arma apontada para ele.

Bernardo aproximou-se dele, ajoelhou, colocou a arma em sua boca e continuou:

– Vamos ver se consigo ser mais claro agora – Bernardo disse com voz tranqüila –, se você voltar a bater nela eu te mato, juro que te mato! Você consegue entender agora?

– Sim! Eu...eu entendo – mal conseguia falar, tremia e sentia a ponta gelada da arma em sua garganta.

– Tenho certeza que, infelizmente, ela não prestara queixa contra você outra vez, por isso fico de olho e se algo acontecer terei de cumprir minha promessa!

– Tudo bem, nada vai acontecer, eu juro!

Bernardo levou-o para delegacia. Como esperado, Anita não prestou queixa e Emílio foi liberado. Após aquele dia passaram-se longos seis meses sem nenhum problema com o casal. Bernardo voltara a sofrer apenas seu amor frustrado, já não sofria mais pelo que Anita sofria. A vida havia voltado ao normal.

Porém, no dia dois de agosto Bernardo recebeu um chamado. Era grave, tratava-se de um homicídio. Conferiu endereço e um frio correu-lhe pelo corpo. Ficou desesperado, ligou o carro e correu para o chamado. Chegando ao local, entrou na casa, vasculhou e encontrou Anita na banheira, nua e inanimada. Emílio havia agredido-a brutalmente e, não satisfeito, resolveu afogá-la.

Bernardo caiu de joelhos e chorou. Nunca havia experimentado tanta dor. Poderia sofrer a vida toda por não tê-la em seus braços, mas não suportava a dor de não tela presente no mundo. Chorou ali, parado, por quase meia hora, até chegarem os outros policiais e peritos. Teve que sair. Saindo, recebeu a informação de que Emílio tinha ido para a casa dos pais e que estava saindo da cidade. Bernardo enfureceu-se. Pegou o carro e saiu como um foguete.

Dirigiu até onde deveria e parou. Desceu do carro com a arma em punho. Mais uma vez, uma estrada deserta no nada, um rapaz de joelhos. O cano frio do revolver encontrou de novo a garganta. Lágrimas escorriam pelo rosto. Dessa vez Bernardo nem proferiu nenhuma palavra, apenas apertou o gatilho. Fez isso e pôs fim há anos de sofrimento, tanto no passado quanto no futuro. Não iria mais Bernardo sofrer por não ter Anita para si. Não iria mais ter que conviver com aquela situação. Tomou a decisão de, dessa vez, ser o primeiro. Com coragem, pegou seu amor e foi encontrá-la.

Emílio foi preso e pegou prisão perpétua.

Vinicius de Andrade
Enviado por Vinicius de Andrade em 31/10/2010
Código do texto: T2588116
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.