O JARDIM DO AMANHÃ - Cap. III e IV

Capítulo III

Explorando o mistério

Já havia passado uma semana depois do acidente e lá estávamos nós novamente passeando no jardim. A tampa já estava concertada e não havia nada que denunciasse que ali ocorrera algo anormal.

Lembrei-me de um detalhe que me havia passado despercebido naquele dia, no final da avenida existe uma grande praça com chafariz que executa jatos de água dançantes a cada hora. É um espetáculo que ninguém resiste em parar para assistir.

Atrás da praça está sendo construído um prédio bem maior que as “mansões última morada”, é realmente um edifício que pela altura terá bem uns dez andares. Estranha construção contrastando com as demais do local.

Aos associados é distribuído mensalmente um informativo com novidades de interesse, curiosidades, palavras cruzadas e tudo mais para agradar e acompanhar nos passeios pelo parque.

Recordo-me de já ter lido no informativo que aquela construção abrigará uma biblioteca, instalações do grupo que administra o parque, uma emissora de rádio e um jornal ocupando os primeiros andares. Li também que os últimos andares serão destinados para eventos públicos e um mausoléu às pessoas que morreram pela paz em todo o mundo. De fato um projeto grandioso para uma cidade como a nossa com seus pouco menos de dois milhões de habitantes.

Sempre fui um homem curioso por natureza, nunca hesitei em explorar algo novo quando tinha oportunidade para tal. Minha esposa, mulher também dada a procurar explicação para tudo também é como eu, curiosa!

Deixamos nosso filho brincando no parquinho que tanto faz questão de passar algumas horas a fazer estripulias infantis. Com as recomendações de sempre a um filho que fica sozinho, tomamos o rumo da praça do chafariz.

Não hesitamos em entrar na construção que estava na fase de acabamento. Não sei se foi sorte ou coincidência, mas naquele momento não havia ninguém que pudesse nos barrar o caminho e entramos.

Nos primeiros andares estava tudo pronto no que diz respeito à construção faltando apenas a pintura. Salas amplas e adequadas a escritórios em geral, tudo normal para um prédio em construção.

Não sei por que, mas aquele lugar parecia conter uma atmosfera sufocante, não sei como descrever direito tal sensação.

Nos andares seguintes até o sexto as salas mudaram um pouco, eram mais amplas, mais arejadas creio que iriam abrigar a emissora de rádio e a sede do jornal.

Os quatro últimos andares eram formados por amplos salões típicos para galerias de arte ou coisa parecida. No último andar havia uma diferença dos demais, enquanto os outros eram vazios, este tinha numa das paredes algo parecido com uma grande pira para acender uma tocha ou algo parecido. Acho que será realmente para isso, pois existe também uma espécie de mural creio que será nele gravada a lista das pessoas ilustres que morreram por uma causa nobre conforme anunciado pela empresa administrativa. Na parede oposta localiza-se o crematório onde os corpos serão colocados e baixados por um elevador de serviço após o cerimonial fúnebre até o forno no sub solo.

O centro do salão com certeza abrigará os acentos para as pessoas que ali estarão para a última despedida ao ente querido. Num canto dessa sala existe uma grande porta que dá acesso ao telhado. Uma escadaria ampla que permitiria o deslocamento de muitas pessoas e até mesmo de carga nos apareceu quando abrimos a porta. Realmente o topo do prédio nos pareceu normal, há nele um heliporto o que prova a nossa constatação de que seriam desembarcadas tanto pessoas quanto alguma carga por ali. Deduzimos que seria para os funerais dos ilustres cidadãos da nossa sociedade.

Existe também além do heliporto um acesso ao elevador que percorre os andares deslizando bem no centro da construção. Resolvemos retornar ao piso inferior usando o elevador social que já estava funcionando conforme havíamos verificado.

Descemos sem inconvenientes até o primeiro piso e estávamos comentado tudo que havíamos visto. Nossas opiniões coincidiam com relação ao fato daquela obra ser megalomaníaca no que diz respeito à utilidade daquele empreendimento, mas o custo de adesão e manutenção dos serviços oferecidos eram apenas um pouco maior que os serviços convencionais e, portanto não havia motivo para que não participássemos dele.

Fiquei curioso para ficar conhecendo o local no sub solo onde seriam feitas as cremações. Mencionei isso à minha esposa e ela disse que eu fosse sozinho, pois ela iria para o parquinho fazer companhia ao nosso filho que já deveria estar nos esperando para comprar picolé ou um refrigerante.

Depois que ela saiu, procurei pelo elevador de serviço naquele piso, porém não havia ali acesso a não ser a porta com uma placa em letras alaranjadas “acesso somente à funcionários” e estava trancada. Vou tentar o elevador lá em cima pensei.

É uma estranha coincidência a minha permanência ali e não ter encontrado ninguém que me impedisse. Isso aguçou ainda mais minha curiosidade.

Subi até o último andar e verifiquei o elevador de serviço e mais coincidência: o elevador estava funcionando. Era muito estranho, pois as cremações pelo que eu sabia ainda estavam sendo feitas em outro local até aquele dia e mesmo as cerimônias fúnebres eram executadas numa capela na ala sul do parque.

Acionei no quadro o botão referente ao sub solo, meu coração bateu mais forte quando senti a vertigem causada pelo deslocamento repentino que me privou da gravidade que nos mantém no chão. Afinal o falecido não se incomodaria com uma queda brusca até lá em baixo. A parada também foi brusca, o que me fez dobrar os joelhos e ficar assim até que percebi que a porta do elevador não se abrira.

O pânico estava prestes a me dominar, será que depois de tudo eu teria que pedir por socorro justamente a quem eu estava escondendo minha presença?

Procurei me controlar, felizmente a luz estava acesa. Acionei o botão de subida e tranqüilizei-me pois o elevador tão repentinamente quanto havia descido também começou a subir, o que fez com que o meu peso fosse aumentado de início, mas logo me acostumei a ele e rapidamente cheguei ao último andar.

O susto fora grande, mas agora que havia passado ri sozinho da minha atitude. Afinal de contas eu era um clandestino e deveria estar preparado para surpresas.

A minha curiosidade nata voltou a tomar conta de mim, arrastando-me ao encontro das respostas às perguntas a espera de serem desvendadas. Nesse ímpeto acionei o botão de descida e nem senti tanto a falta de peso desta vez e nem tanto a parada brusca.

Como antes a porta não se abriu e agora pude ser dono de situação. Verifiquei todos os detalhes do elevador. Tudo comum, nada de diferente de um elevador de serviço. A exceção é um botão vermelho que fica piscando o tempo todo depois que o elevador pára. Fiquei preocupado, será que se eu apertasse iria disparar algum tipo de alarme? Enquanto eu pensava nessa possibilidade levei um susto quando o botão parou de piscar e a porta se abriu de repente na minha frente. Dei um passo para trás, não havia necessidade, pois ali estava sendo instalado o forno crematório e não havia ninguém naquele dia, pois era domingo e os trabalhadores estavam em suas casas. Sai para minha curiosidade e olhando tudo pude constatar que as peças estavam todas ainda encaixotadas como tinham vindo da fábrica e, portanto, deduzi que não tinha mais nada de novidade naquele lugar.

Voltei para o elevador e acionei o botão de subida e surpresa: o elevador fechou a porta e imediatamente o botão vermelho começou a piscar sem que o elevador saísse do lugar.

Sem dúvida aquele botão não era um alarme e sim um dispositivo a espera de uma confirmação, será que eu deveria pressiona-lo? Qual seria o resultado dessa ação?

Nessa hora dei uma vacilada, valia a pena ir em frente e adentrar ainda mais naquele mistério? Para abrir a porta creio que levou cerca de trinta segundos ou mais um pouco e provavelmente para a subida também, portanto tinha que decidir rápido qual caminho seguir, ir em frente ou subir e ficar na ignorância dos fatos. Novamente tomado por um impulso desbravador pressionei aquele botão que piscava como a duvidar da minha coragem em trilhar caminhos desconhecidos.

Instantaneamente o elevador começou a descer mais! Para onde iria agora?

Desceu rapidamente durante uns quarenta segundos o que na velocidade que desenvolvia deveria ter ido bem fundo.

A expectativa era grande enquanto me aproximava do desconhecido.

Capítulo IV

Irregularidades

A porta do elevador abriu assim que parou, não aconteceu como anteriormente que ficara parado com a luz vermelha piscando a espera de ser acionada.

O que vi de início pareceu-me como uma esteira rolante. Também ali não havia ninguém, pelo menos nas proximidades que eu podia enxergar já que o ambiente estava mergulhado na penumbra com poucas luzes acesas no teto.

Sai cautelosamente explorando os arredores. Era um corredor largo e baixo com a esteira correndo no centro parecendo que ali não haveria movimentação humana com freqüência.

Segui por ele um certo tempo sem encontrar nenhuma porta, o ar era abafado fazendo com que eu transpirasse com abundância. Estava tudo novo, provavelmente não havia sido usado ainda para que fim eu não saberia dizer. Estava prestes a desistir e voltar por onde eu viera quando me deparei com o fim do corredor que pelos meus cálculos devia ter uns trezentos metros. Em ambos os lados haviam portas com visores por onde escapava luz muito clara o que voltou a aguçar minha curiosidade.

Não resistindo mais ficar na expectativa, arrisquei dar uma olhada por um dos visores. A surpresa apesar de esperada foi enorme, não sei como posso me expressar para descrever o que eu estava vendo do outro lado da porta.

A esteira terminava uns cinco metros após passar pela parede e ao lado dela havia uma mesa toda em aço inox, daquelas que existem em institutos médico legal. Provavelmente ali seriam realizadas algum tipo de autópsia. A sala era ampla toda revestida em chapas de aço inox com as paredes cheias de portinholas lembrando realmente os gavetões onde se guardavam os cadáveres a espera de reconhecimento. Estava tudo muito limpo, mas com uma atmosfera que exalava medo. Vencendo essa sensação, enchi-me de coragem e fui ao encontro da portinhola mais próxima, toquei o trinco. Estava frio ali, um frio cadavérico, hesitando por um tempo parecia que aquele frio iria congelar até meus ossos e minha mão começou a tremer recusando-se a obedecer a minha vontade.

Enchi os pulmões de ar como se isso me tornasse mais corajoso, fechei os olhos por um instante e puxei a portinhola. Ela não abriu lateralmente como eu esperava, mas sim deslizou suavemente sobre trilhos revelando algo inusitado.

Eu esperava ver um cadáver de cor escura, congelado como um picolé macabro, mas o que vi foi algo muito diferente disso. Não era uma gaveta, mas sim uma espécie de “aquário” transparente e fechado de todos os lados onde estava mergulhado um corpo aparentemente normal num líquido claro, quase transparente como água. O corpo não apresentava aquele aspecto cadavérico onde é possível constatar que está morto.

Haviam vários tubos flexíveis conectados ao tanque com a outra extremidade desaparecendo no fundo escuro logo atrás.

Abri várias outras portinholas e em todas havia um corpo, não havia discriminação, homens, mulheres e adolescentes. Não vi nenhuma criança ali, também a cor era variada, brancos, negros e pardos.

Minha mente trabalhava tentando encontrar uma explicação para tudo àquilo que estava vendo, mas a única coisa ficava: - Corpos sendo conservados? Não deveriam ter sido cremados?

Aos poucos comecei a entender pelo menos uma parte do processo de como os corpos chegavam até ali. Hoje eram desviados do crematório (processo que não é assistido pelos familiares) e encaminhados até ali pela galeria que havia sido posta a descoberto com o desmoronamento daquele suposto tampo de bueiro.

Assim que o prédio acima do lugar onde eu estava ficasse pronto, ficaria tudo mais fácil, depois da cerimônia fúnebre o caixão seria baixado pelo elevador para supostamente ser cremado e seria acompanhado por um funcionário que acionaria o botão vermelho assim que o elevador chegasse até o nível do forno crematório.

Parece que alguns corpos seriam realmente cremados, provavelmente aqueles vítimas de acidentes trágicos ou doenças que tornassem o corpo impróprio para o andar mais abaixo. As cinzas entregues aos familiares são sem dúvida cinzas, mas não do cadáver do ente querido.

Nessa sala alem das portinholas, dezenas delas, existem também alguns quadros de comando onde sem dúvida são feitos ajustes, liga e desliga funções nos tanques de conservação. Numa das paredes existe uma porta de folha dupla que começa a me preocupar, já estava naquele local a uma meia hora mais ou menos e eu tinha a atenção voltada para ela temendo que a qualquer momento entrasse alguém e me flagrasse bisbilhotando.

Sai dali através do caminho que tinha seguido e encontrei o elevador parado, sinal de que ninguém havia notado a minha presença

Retornei ao último andar e de lá desci pelas escadas procurando evitar dar de cara com alguém lá em baixo quando a porta do elevador se abrisse.

No saguão não havia ninguém, sai cautelosamente e notei que havia um guarda na guarita. Teria que Passar bem próximo a ele para poder sair.

Fiquei um tempo observando e tentando achar um meio de sair sem ser percebido. Por minha sorte notei que ele estava entretido com alguma coisa olhando para baixo, provavelmente uma mesa. Me aproximei sorrateiramente e vi o que o estava distraindo, coisas de homem: Ele folhava uma revista pornográfica. Resolvi pregar uma peça nele, dei a volta pela guarita sempre de olho nele e quando estava de frente para a guarita, falei bem alto:

— Bom tarde!!

O guarda levou um susto tão grande que deve ter dado uma joelhada em baixo da mesa, deduzi isso pelo barulho que ouvi. Gaguejando ele me respondeu:

— Bo-boa tarde!

— Por favor, você pode me dizer que horas são agora? Perguntei.

— Dezesseis horas. Respondeu todo corado pelo susto de ter sido pego fazendo algo errado.

— Obrigado! Respondi, virei-me e sai em direção à praça mal me contendo para não romper numa gargalhada.

Voltei até o parquinho e encontrei minha esposa e meu filho me esperando. Ela estava preocupada, pois eu já havia estado no prédio por duas horas. Perguntou por que eu demorara tanto, quis saber o que eu vira para demorar tanto. Desconversei dizendo que não havia visto nada de anormal e que a minha demora se devia ao fato de ficar jogando conversa fora com o guarda depois de tê-lo pego vendo revista pornô. Contei-lhe o susto que eu havia dado à ele e rimos da situação. Não tive coragem de contar à ela o que eu havia descoberto.

Não contei nada para ninguém, nem mesmo para a polícia e esse talvez foi o meu maior erro.

Voltamos para casa e de noite não conseguia dormir, estava tudo muito vivo na minha memória.

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Tex
Enviado por Tex em 20/06/2005
Código do texto: T26251