A rabo de veludo

E foi assim que tudo aconteceu. Valmir se deslocou da Soterópoles com destino a Córrego da Onça, seu torrão natal. Uma vilazinha encravada entre as serras da Jussara e Temerosa no sul baiano, em visita aos entes queridos. Pelo nome do lugarejo se poderia supor existir por lá muitos destes felinos. Ledo engano!

Dizem os moradores mais antigos que lá havia muitas onças sim, atualmente sumidas daquelas bandas. Felinos de porte restaram apenas gatos silvestres e algumas jaguatiricas. O que existe em abundância mesmo são cobras das mais variadas espécies, venenosas ou não. Como a vila fica circundada por uma fazenda de cacau, mantendo conservados resquícios de Mata Atlântica, as serpentes abundam de tal sorte fazendo periodicamente inesperadas visitas às residências dos habitantes.

O dia seguinte a sua chegada ao lugarejo amanheceu radiante. Os raios solares incididos sobre o orvalho fresco na densa vegetação formavam uma paisagem digna da mais bela tela a ser pintada. Ele levantou cedo porque deveria ir até a aprazível Ilhéus. Antes, porém, teria de se banhar.

Como não existia água encanada nas casas do vilarejo nem estava disposto a tomar o famoso banho de cuia ou tampouco mergulhar nas águas frias do ribeirão que corta o distrito, lhe restava a opção de se banhar no banheiro da fazenda. Um quadrado medindo mais ou menos nove metros de área, paredes de tábuas, cuja bica aproveitava o desnível do regato que cortava o pasto próximo à propriedade, fazendo jorrar um jato d’água bastante forte.

No seu interior, a água abundante formava uma pequena piscina onde duas tábuas de 20 centímetros de largura, estrategicamente colocadas a uns 30 centímetros acima do veio d’água, serviam de prancha sobre a qual os banhistas se despiam.

Matutou e optou pela última alternativa. Ao chegar, trancou-se no banheiro e, sobre a prancha, despiu-se da bermuda, da camisa e da cueca samba-canção, colocando todas as peças nos pregos utilizados como cabides. Nu como veio ao mundo, pôs-se de cócoras, espremeu o tubo de creme dental, abasteceu a escova e começou lentamente a sua escovação, sem atinar para a surpresa a ele reservada.

Friccionava a escova lentamente sobre a arcada dentária, num pachorrento vaivém, quando subitamente sentiu algo gélido a pincelar o pomo do pé direito. Arrepiou-se todo e tremeu nas bases, mas nem por isso perdeu a concentração. A calma sempre foi sua marca registrada. Uma de suas maiores virtudes. Não iria fraquejar naquele inesperado momento. Cessou a escovação, manteve-se hirto por alguns instantes, e não querendo crer em algo pior, imaginou um sapo a lhe tocar daquela forma tão gélida e suave. Se fosse um batráquio ia lhe dar uma lição: um potente chute do mesmo modo como fazia na época de criança. Lembrou-se do tempo junto com os colegas de folguedo, quando não podia ver um sapo-boi, um cururu de brejo ou até mesmo uma delicada perereca sem chutá-los como se fossem bolas de futebol.

Lentamente foi abaixando a cabeça e conduzindo a vista em direção ao pé. Para sua surpresa deparou-se com um vulto preto se mexendo. Quando caiu em si, voou de onde estava acocorado até a porta e ganhou a rua. A roupa ficou lá, pendurada na parede. Ganhou a rua, mas não avançou muito. Teve que voltar por cima do rastro porque a 50 metros dali, Sinhazinha, mulher de João Bisunga, varria o terreiro da frente de sua casa.

Entretanto, não podia entrar no banheiro com aquele animal peçonhento lá dentro. Também não poderia ficar do lado de fora, pelado como estava, porque a senhora Sinhazinha havia percebido o vexame em que se encontrava e mantinha o olhar firme em sua direção. Diante desse dilema, a solução encontrada foi ficar com metade do corpo para dentro do banheiro - escondendo suas vergonhas - e a outra metade para fora aguardando pela boa vontade do réptil em abandonar o local. Só assim poderia entrar rapidamente, vestir a roupa e dar o fora dali.

– Que situação! – pensou.

O réptil medindo aproximadamente dois metros, assustado também, se jogou para o fundo do banheiro, contorcendo-se em espiral, ora mostrando o dorso negro, ora a barriga esbranquiçada, até acalmar-se. Para seu azar o bicho parou bem próximo onde estavam as roupas.

Duro foi esperar pela boa vontade da serpente para ele poder se vestir e sair dali o quanto antes. O animal teimava em continuar no banheiro e a pior parte estava por vir. No fundo do banheiro havia uma pedra a um metro do telhado, na qual a cobra subiu e, usando o próprio rabo fez uma rodilha sobre a qual se levantou na vertical, deixando à mostra sua esbranquiçada e asquerosa barriga. Ainda como se estivesse a lhe pirraçar, calmamente usou a bifurcada língua para catar insetos presos nas teias de aranha.

Ante aquela tétrica cena ele suou frio e se arrepiou todo. Sentiu o corpo gelar ao ver aquele asqueroso animal diante de si sem nada poder fazer. Não podia entrar no banheiro, por causa da cobra toda faceira e asquerosa, muito menos sair, pois a senhora Sinhazinha continuava varrendo o terreiro, olhando-o de soslaio.

Após lhe pregar essa grotesca peça a jararacuçu Rabo de Veludo resolveu sair para o pasto, esgueirando-se por uma fresta entre duas tábuas do banheiro. Imediatamente ele vestiu a samba-canção e - com o restante das roupas nas mãos - debandou a correr de volta para casa. Passou por Sinhazinha, como se ela não estivesse ali. Porém, de olhos bem arregalados ela endereçou-lhe um disfarçado e concupiscente olhar.

Esbaforido e em trajes menores, trêmulo e verde pelo susto recente, chegou à casa dos parentes e relatou o ocorrido. Duro foi acreditar na sua mirabolante narrativa. Para a maioria presente, aquilo não passava de mais uma bela história de pescador. Até hoje os ouvintes torcem o nariz ao escutar seus relatos. Todavia ele jura, finca pé e firma jurisprudência de ser a história o espelho fiel da verdade. Jura, também, só sairá de casa a partir de agora com uma câmera a tiracolo. Munido desse equipamento, acredita em poder matar a cobra e mostrar a danada morta. E não matar e mostrar o pau, como diz o velho brocardo.

Ainda hoje, com asco, se lembra daquele aziago dia e reflete sobre o que poderia ter acontecido. Já pensaram se ao invés do pé a Rabo de Veludo tivesse lambido os quimbas do rapaz? Ou se ele tivesse instintivamente levado a mão para afugentá-la, sendo picado? Cabe uma reflexão.

Dizem que a Rabo de Veludo não é venenosa, mas para ele cobra é cobra podendo matar um até de susto. Na dúvida, melhor não arriscar.

Valmari Nogueira
Enviado por Valmari Nogueira em 24/12/2010
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