† O Segredo da Mansão †

De seus pulsos cortados escorriam o doce e escarlate sangue pela alva banheira. A água estava completamente tomada por aquela tinta rubra e maldita. Seu belo e extasiante rosto, agora não passava de uma mera face do mal, onde os cabelos longos, negros e emaranhados por sua loucura, misturavam-se à cor da morte.

Aquele femíneo corpo aos poucos morria em espasmos e convulsões crônicas, anunciando a negrume chegada da morte. Aos poucos, seus olhos marejados pelo choro compulsivo, cerravam-se. Seus últimos suspiros resfolegantes tomavam conta de sua perdida alma, mas, ainda assim, levantou-se e com seu próprio sangue, deixou um recado no espelho. Recado mórbido, que poderia revelar segredos diabólicos.

Amargurada, despencou sobre o chão umedecido. A morte lhe caíra tão bem que sua alma agora pertencia ao vale das sombras! Que Deus tenha piedade!

*

Inglaterra, sábado, vinte de novembro de 1960, seis horas e trinta minutos da tarde.

- “ ...ainda que eu ande pelo vale das sombras da morte, não temerei mal algum, porque tu estás comigo, tua vara e teu cajado...”

- Sra. Maryanne, o Dr. Charles chegou.

- Faça-o com que entre. Obrigada Sarah.

Sra. Maryanne, viúva, milionária, andava atormentada há tempos, ouvia vozes, passos, sussurros, em sua grande e suntuosa mansão. Com seus 67 anos de idade, cabelos branquinhos, sempre usando um coque, vestidos longos ornado em cores lisas e fortes, possuía uma visão excelente e um faro estridente, quando se tratava principalmente de fenômenos paranormais.

Esperava pelo parapsicólogo e ex-padre, Dr. Charles Piaggio, italiano, naturalizado inglês, passou boa parte de sua vida estudando no Vaticano. Anos mais tarde, expulso por estudar as ciências ocultas, dedicou-se a desvendar fenômenos sobrenaturais e paranormais. Com os seus quarenta e poucos anos de idade, tinha olhos azuis, cabelos lisos e grisalhos com um topete que lhe encobria o olho direito. Era forte, de uma altura de um metro e setenta e sete.

Todas as manhãs e noites antes de dormir, Sra. Maryanne, lia o Salmo 23 da Bíblia Sagrada, para que sua alma fosse protegida e iluminada durante seus sonhos.

- Como vai, Sra.Maryanne?

- Vou bem Dr.Charles, obrigada.

E assim ficaram por horas conversando sobre variados assuntos e claro sobre os tormentos da Sra.Maryanne. Aos poucos o doutor foi percebendo o quão agudo era o caso de sua amiga e paciente.

Ela dizia que durante o sono ouvia alguém chamando por seu nome, tocando em seu corpo, ao longe ouvia passos na escada, ruídos estranhos no jardim, louças e talheres mexendo-se e o mais impressionante de tudo, sangue, muito sangue em seu banheiro.

- A cada dia que passa parece que os ruídos aumentam, acho que estou enlouquecendo Charles. – disse-lhe em voz lamuriada e resfolegante.

- Fique tranqüila Sra. Maryanne, estarei com a senhora, não deixarei que nada lhe aconteça. Farei o seguinte, me hospedarei por essa semana em sua mansão e analisarei cada espaço da casa, cada cômodo, cada objeto, estamos combinados?

- Ok Charles, que Deus o abençoe. Só não se assuste com meus berros – respondeu toda sorridente.

- Antes que me esqueça, meu filho Raphael, chegará amanhã pela manhã da Espanha.

- Sim, claro, quanto tempo não o vejo. Certamente está um belo jovem.

- Realmente, está com seus 35 anos. Um belíssimo rapaz.

- Gloria, Gloria! – chamou Sra. Maryanne por uma de suas criadas.

- Sim, Sra. Maryanne – respondeu.

- Apronte os aposentos para o Dr. Charles. O terceiro quarto do segundo andar.

A mansão guardava segredos que mal Dr. Charles conseguiria compreender.

O doutor então seguiu para seus aposentos, a fim de iniciar seu trabalho parapsicológico dentro da assombrada mansão.

Pegou seu pêndulo, alguns objetos usados em seu passado de exorcista e seguiu na direção dos aposentos superiores da bela mansão.

Cada passo que dava, o assoalho antigo gritava sibilante. Seus passos leves e zelosos, demonstravam todo o interesse em resolver aquele misterioso caso.

Passando pelo corredor sombrio e gelado do segundo andar, pouco depois do aposento o qual havia se instalado; pegou o pêndulo de dentro de seu bolso e iniciou seus estudos.

Naquele momento, ao menos, nada demonstrava a gravidade assombrosa daquele lugar. Por todos os cantos que andava, fitava seus olhos, em todo e qualquer detalhe que poderia lhe parecer estranho.

Finalmente, o pêndulo apontou algo. De um lado para outro, balançava no sentido anti-horário, agonizante. Charles, inerte, observava-o tranqüilo e sentiu um detalhado calafrio percorrendo cada parte de sua coluna vertebral até chegar à nuca.

Assustou-se, e à sua frente, bem ao fundo do corredor em penumbra, avistou um vulto vestido de branco. Era uma mulher com um véu escorrido sobre sua face, cabelos longos e negros como as plumas de um corvo voraz. Esta, caminhando trêmula, encarou Charles ao fundo de seus olhos, e ele, em sua mente, via flashes ou insights de algo ocorrido naquela mansão. Charles então caiu ao chão e desmaiou.

*

- Dr. Charles, Dr. Charles, acorde. – sussurrou Maryanne dando pequenos bofetes em seu rosto.

Charles já estava em seus aposentos sobre sua cama. Os criados de Maryanne haviam lhe colocado ali, ao perceberem que havia caído sobre o assoalho do corredor. O doutor, aos poucos, acordou de seu sono profundo, depois de uma horripilante experiência.

- O que houve Dr. Charles? – indagou a dona da mansão.

- Não sei ao certo Sra. Maryanne, me pareceu um pesadelo, mas era real. – respondeu ainda meio sonolento.

Charles então levantou-se e à porta do quarto, notou que alguém lhe acenara.

- Boa noite Charles, boa noite mamãe – era Raphael, este havia chegado um dia antes, da Espanha.

- Oh! Meu filho, que honra receber-lhe tão cedo. – levantou-se do pé da cama de Charles e foi abraçar seu filho.

- O que houve com você Charles?

- Apenas um mal-estar Raphael, nada incomum – sorriu o doutor, cumprimentando o rapaz recém-chegado.

- Venha filho, deixemos o Dr. Charles em seus aposentos, ele precisa descansar.

- Sim mamãe, aproveitarei para ir à cozinha comer algo, a viagem foi bem cansativa.

- Boa noite Charles, até amanhã. – cumprimentou Maryanne.

- Boa noite Sra. Maryanne, boa noite Raphael.

Fecharam a porta e se foram.

Charles, muito pensativo, apagou a vela ao lado de sua cama, e fitou seu olhar ao teto do quarto, intrigado com os acontecimentos daquela noite.

*

Amanheceu, o dia apesar de ensolarado, permanecia um tanto frio e úmido.

Charles levantou-se da cama desarrumada, vestiu-se e desceu as grandiosas e espiraladas escadarias da mansão para tomar o seu chá matutino.

A enorme mesa estava decorada com frutas frescas, torradas crocantes, chá preto e café. Maryanne estava à sua espera, enquanto que o filho, Raphael, permanecia em seu quarto, a descansar de sua cansativa viagem.

- Dormiu bem Charles?

- Sim Sra. Maryanne, como nunca havia dormido antes! – respondeu resplandecendo um sorriso.

E assim, serviram-se cada qual a sua xícara de chá e café, iniciando a refeição matutina.

- Charles, me responda. O que houve realmente com você na noite passada?

O doutor, ainda um pouco confuso e cabisbaixo, levantou a cabeça, olhou fixo para Maryanne e respondeu:

- Não sei ao certo se foi um sonho, um insight ou sei lá o que; mas dou-lhe a certeza de que tem a ver com os assombros que essa casa lhe prega, Sra. Maryanne.

A velha fitou-lhe um pouco estarrecida e ao mesmo tempo denotou um certo pavor ansioso, mediante as palavras de Charles.

- A senhora, por um acaso, sabe me informar se morou alguém aqui nessa casa antes de vocês? – perguntou curioso.

Maryanne, um pouco pensativa respondeu:

- Não pelo que eu saiba doutor, pois ao casar-me com meu falecido, ele já morava nessa mansão. Ele era um homem excêntrico e aberto, nunca deixaria de me contar algo do tipo.

Charles, terminou sua última torrada, pegou um guardanapo, limpou o resto de café que havia impregnado em seu lábio superior e pediu licença para se retirar da mesa, para assim continuar o seu trabalho paranormal naquela antiga casa.

Maryanne, agradeceu e ali permaneceu por mais alguns minutos.

*

O doutor, ainda cansado e envolto de perguntas sem respostas em sua mente, resolveu visitar a biblioteca que datava quase um século, da antiga mansão. O lugar, ficava no subsolo. Ele deveria descer uma escadaria a qual saía de dentro da descomunal sala de estar e seguir à sua esquerda, onde encontraria a formosa biblioteca. À sua direita havia a porta a qual poderia entrar em um rústico salão onde o antigo dono da mansão, o Sr. Walker (falecido marido de Maryanne), estudava e escrevia por noites e noites estórias fantásticas. Nessa mesma sala, ele escreveu o testamento. O doutor ficou extasiado mediante tal beleza daquela grandiosa biblioteca, pois nunca havia entrado a fundo na mansão, mas sabia onde ficava cada cômodo, pois conhecia o Sr. Walker e a Sra. Maryanne há anos.

Abrindo as portas de madeira, decoradas com vidro fosco, adentrou vagarosamente àquela obra-prima de livros. Colocando os pés nos primeiros assoalhos os quais já pertenciam à biblioteca, sentiu novamente um calafrio e o arrepio eriçado tomou conta de seu corpo.

Olhou para todos os cantos a fim de conferir se fantasma ou espírito algum lhe assombrava. Charles estava acostumado com esse tipo de visão e vibração do além, pois já fora exorcista do Vaticano aos seus trinta e dois anos de idade e estudou uma somática quantidade de formas lúgubres de seres espirituais, sejam eles angelicais ou demoníacos.

Olhando para uma das 25 prateleiras amontoadas, organizadas em livros de diferentes nacionalidades e tipos, avistou novamente aquele espectro nefando, perambulando no local. O ser, novamente encarou Charles, e este, sentiu que deveria segui-lo, para tentar decifrar o verdadeiro segredo daquela mansão.

Entre as prateleiras de número 15 e 16, o fantasma daquela bela mulher, agora sem o véu encobrindo sua face, vestida em uma roupa de noiva esfarrapada, com andar lento e sôfrego apontou algo para o doutor. Seu rosto pálido, cenho fechado, lábios e peito ensangüentados, reluzia ainda mais a face melancólica daquele espírito.

Charles, virando à sua direita e entrando no corredor de número 16, assustou-se ao encontrar face a face com o fantasma.

Ela fixou em seus olhos e com suas mãos gélidas tocou no rosto de Charles, fazendo-o desfalecer novamente.

“- Onde estou? – pensou Charles com ele próprio no jardim de orquídeas em frente à mansão. Sentado ao veludíneo gramado em tom verde vivo, ao longe, observou uma bela carruagem puxada por brancos cavalos, encontrando-se aos os portões de entrada do casarão. Um pouco estonteado e com sua vista turva, notara a presença de um homem vestido de preto, abrindo uma das portas da bela abóboda da carruagem, descendo da mesma e acenando com uma de suas mãos, a fim de ser lisonjeiro em ajudar uma bela dama a sair da mesma.”

- Ah! – acordou Charles após seu encontro com aquele espírito, sendo acordado por um dos mordomos da casa.

- Senhor! Senhor! Está bem? Precisa de alguma coisa? – indagou o mordomo.

- Não! Não, obrigado Walter. – respondeu ainda estonteante, estendendo uma de suas mãos para o mordomo ajudá-lo a se levantar.

Charles levantou-se disse: - pode ir Walter, ficarei bem.

- Qualquer problema é só me chamar senhor.

- Obrigado.

Charles, aguardou o mordomo sair do local e continuou sua peregrinação por aquelas prateleiras à procura de pistas ou provas.

Passou minutos e depois horas por ali, fuçando e remexendo nos livros encobertos de pó e traças esfaimadas; mas, nada encontrou.

Pegou uma escadinha, subiu na mesma e começou a tirar livro por livro da parte mais alta de dois metros e poucos, da prateleira de número 16.

A maior parte deles, eram livros antigos de outras nacionalidades, mas, algo lhe chamou atenção em meio a tanto pó e folhas amareladas. Uma pequena portinha por entre as prateleiras. Com um pouco de esforço, Charles a abriu, pois ela ficava abaixo de alguns livros da prateleira, e qual foi a sua surpresa: dentro dela havia um belo anel ornado em ouro, decorado com um suntuoso rubi ovalado em seu ápice.

Pegou o anel, assoprou o pó e viu uma insígnia na parte inferior - “R & S” - a qual imediatamente desapareceu como se tivesse sido pintado em tinta. Estaria Charles novamente sonhando? Ou foi mais um sinal do fantasma? Intrigado, fechou a portinha, colocou livro a livro em seus devidos lugares, guardou a escadinha e saiu da biblioteca. Antes de voltar à parte superior da casa, resolveu dar uma apreciada na sala de estudos do falecido Sr. Walker. Tentou abrir a porta, mas esta, encontrava-se trancada.

Sem mais insistir, subiu as escadarias chegando à sala de estar, para então subir ao segundo andar até seus aposentos. De repente um grito ensurdecedor. Era uma das empregadas da casa. Rapidamente Charles saiu de seu quarto e no mesmo andar, em outro quarto lá estava o bom e velho mordomo o qual minutos antes, o ajudara a levantar-se. Era Walter, enforcado a uma das lapas de madeira as quais contornavam o teto. A empregada desesperada, prostrara-se diante de seus pés, aos prantos. Maryanne, assustada, quase teve um ataque cardíaco ao ver seu fiel mordomo, ali, desfalecido.

Charles acudiu a velha e a levou para os seus aposentos, pegou uma jarra de água, encheu um copo e ofereceu à dona da mansão.

- Charles, faça-me um favor, chame o pessoal do hospital para levar Walter daqui.

- Sim Sra. Maryanne.

E assim o fez.

Minutos depois de Charles ligar daquele telefone a qual datava alguns anos antes de 1960, a ambulância chegara.

Charles levou os dois médicos para o quarto onde o defunto havia se suicidado, acompanhado todo o processo de retirado do corpo. Ao cortarem a corda para assim tirarem o corpo, algo caiu de um dos bolsos do paletó do morto. Era um pergaminho velho, o qual Charles cautelosamente pegou do assoalho.

Os médicos então cobriram o morto em um manto branco, e saíram do quarto para levarem-no ao morgue.

Charles, conferindo se havia mais alguém por perto, abriu o pergaminho e teve uma notável surpresa.

*

- Sra. Maryanne! – chamou Charles a dona da casa ao pé da porta dos aposentos da velha.

- Entre Charles.

- Onde está Raphael, seu filho?

- Ele saiu assim que acordou.

- Mas, para onde ele foi?

- Creio que foi ver sua namorada, a senhorita Sarah.

- Quem? Sarah?

Sem mais delongas, saiu imediatamente dos aposentos de Maryanne, segurando dentro de um dos bolsos de sua calça, o anel a qual encontrara na biblioteca.

Maryanne, intrigada, levantou-se trôpega da cama, na tentativa de falar com Charles.

- Charles, por favor, espere.

- Sim Sra. Maryanne, diga.

- Porque tanta pressa?

- É que eu precisava esclarecer algo com seu filho, mas, vejo que terei de aguardar o seu retorno.

- Você me parece tenso, o que está havendo Charles?

- Por enquanto nada Sra. Maryanne, mas, assim que eu tiver boas notícias, eu lhe aviso, certo? – respondeu cauteloso.

A velha, ressabiada, resolveu averiguar algo que estava lhe preocupando.

Charles voltou para os seus aposentos.

Maryanne desceu as escadarias até chegar à biblioteca. Imediatamente correu em direção à prateleira de número 16 e lá, constatou o já esperado.

*

- Mamãe, mamãe! Cheguei para o almoço! Mamãe? – procurou Raphael por toda a casa chamando o nome de sua mãe?

- Raphael! Está à procura de sua mãe? – do alto das escadarias do segundo andar, indagou Charles.

- Sim Charles, você a viu?

- Conversamos há um tempo, mas, não sei para onde ela possa ter ido.

-Vou procurá-la .

- Espere! Antes preciso conversar contigo, meu rapaz.

- Certo, e sobre o que seria Charles?

- Você reconhece esse objeto? – questionou o doutor tirando o anel de seu bolso, mostrando ao rapaz.

Raphael, espantado, arregalou seus negros olhos e em total ira, indagou:

- Onde encontrou esse anel Charles, onde encontrou?

- Por que o espanto? O que tem esse anel de tão importante?

- Não lhe interessa, quero apenas saber onde pegou esse anel?

- Venha, eu lhe mostrarei.

Descendo as escadas para a biblioteca, viram que na bifurcação entre a biblioteca e a sala de estudo do antigo dono da casa, a porta da mesma estava escancarada.

Espantados e absortos, ambos fitaram-se e resolveram checar o local, pois desde que o Sr. Walker se fora, ninguém mais abrira aquela porta.

O local estava escuro e na penumbra perguntaram se havia alguém por perto.

As paredes do pequeno salão eram cobertas de rochas acinzentadas e sólidas e por ali, ainda permaneciam os livros e bicos de pena, que o Sr. Walker usava em suas estórias extraordinárias.

Por entre o pó e as figuras rupestres de antigas esculturas ali presentes, uma sombra os acompanhara.

E, em cima de um antigo túmulo via-se o corpo da Sra. Maryanne estrangulado por algum objeto cortante. Seu pomo de Adão, fora tirado. Suas entranhas saíam de seu abdômen, o sangue rubro descia langue por entre as dobras de seu corpo, respingando ao assoalho de pedras. Ainda agonizava, e em espasmos chamou por seu filho. Este, sem entender o que por ali estava acontecendo e aos prantos, correra em direção de sua mãe.

- Mamãe, o que aconteceu, quem fez isso à senhora? Quem? – e assim, ela apontou ao doutor Charles, como se quisesse dizer algo.

O doutor, sem entender o por que ela lhe julgava, saiu correndo do salão.

Raphael, abraçando sua mãe e misturando-se ao seu sangue, despediu-se da mesma, levantou-se e correu para tirar satisfação com o doutor.

Charles, já havia entrado em seu automóvel, anos 50. Ao dar a partida, Raphael, em toda sua ira, quebrou o pára-brisa. Charles se protegeu dos pequeninos cacos os quais espatifaram em seu rosto, cortando-lhe sua testa e os seios de sua face.

Raphael, iracundo, puxou-lhe pelo pescoço e ordenou que ele saísse imediatamente do automóvel.

- Espere Raphael, espere! – sussurrou o doutor tentando lhe dizer algo.

- Seu infeliz, o que você fez à minha mãe? – e ferozmente deu um soco no nariz de Charles, fazendo-o sangrar ainda mais.

- Calma Raphael, você sabe muito bem que não fui eu quem fez aquilo! – respondeu assustado.

- Claro, mas ordenou que alguém o fizesse, não é mesmo?

- Não, não! Precisamos esclarecer algo.

- Seu mentiroso, cretino! – chutou-lhe o abdômen ao chão.

Em espasmos, o doutor pegou o anel e mostrou novamente ao rapaz, perguntando-lhe:

- As insígnias que vi no anel, é você e quem? Sarah? – indagou em voz trêmula.

- O que você tem a ver com isso.- aos prantos, prostrou-se à frente do doutor.

Charles levantou-se com muito esforço, pegou o rapaz por um de seus ombros e caminharam em direção da casa.

Raphael ainda aos prantos e de pé, fitou aos olhos de Charles, levando-o ao banheiro superior da mansão.

Ao subirem as escadarias, uma ventania estranha tomou conta do lugar, e a mesma mulher que antes assombrava a mansão, apareceu a ambos.

Raphael, espavorido, disse:

- Suzann, Suzann, é você? – correu em sua direção totalmente fora de controle.

- Raphaeeellll. – sussurrou o espectro.

Mas ela, desaparecera antes que o rapaz pudesse tocá-la.

- Suzann? – sussurrou Charles.

- O que foi que você disse, idiota? – correu Raphael em desespero pra cima do doutor.

- A questão não é essa Raphael, mas sim, o que você fez com Suzann? Qual o erro que ela cometeu para você acabar com a vida dela?

- O que? Quem lhe disse uma barbárie dessas?

- Suzann. Ela mostrou-me as provas. Intuiu-me a encontrar a verdade sobre essa mansão, você, sua mãe e seu falecido padrasto. Por que vocês a mataram?

- O que você sabe sobre isso doutor? O que você sabe?

- Bem, primeiramente os espíritos os quais sua mãe se queixava, era na verdade um – Suzann. No dia em que fiz uma visita na biblioteca, tive uma visão, Suzann me mostrou. Vi dois noivos saindo de uma carruagem, mas, não consegui distinguir quem eram. Minutos depois, encontrei esse anel, indicado é claro, por Suzann.

- E o que tudo isso tem a ver?

- Eu é quem lhe pergunto. Quem eram os noivos e porque a mataram? – pressionou o rapaz contra a parede, e ameaçando o rapaz com um punhal o qual carregava consigo, em seu pescoço, Charles fez com que Raphael confessasse.

- Está bem, eu conto, eu conto...Afaste esse punhal de mim, por favor, eu conto!

Charles assim o fez.

- No dia do nosso casamento, na parte da manhã, estava eu passando pela sala de estar, quando um ruído me surpreendeu na parte debaixo da casa. Era o pequeno salão onde meu padrasto, o Sr. Walker, costumava escrever suas estórias. Descendo lentamente as escadarias, na espreita, o vi agarrando minha noiva ardorosamente e a beijando-lhe insistentemente e ela, o abraçava com vontade e astúcia; entregando-se sem pudores àquele velho. Tomei-me de uma ira possessa e sem saber como resolver tal situação, conversei com minha mãe a respeito. Havíamos combinado algo realmente que mudaria o futuro de todos nós nessa casa.

- E o que fizeram? – curioso, perguntou Charles.

- Naquela noite, minha mãe esperou o Sr. Walker dormir, para então agir. Já era tarde da noite, quando tudo aconteceu. Esperamos os empregados seguirem para seus aposentos. Mamãe tramara um crime quase perfeito, sem pistas e sem ruído algum, não fosse por você vir até aqui e descobrir tudo. Antes de meu padrasto cair em sono profundo, ela o envenenou em altas doses, despejando uma boa quantidade de Belladona dentro da jarra de água a qual o Sr. Walker todas as noites bebia. Este pouco agonizou, pois o veneno era muito forte. Queria vê-lo morto, por ter me traído com a minha noiva e traído à minha mãe. Ambos traíram a minha confiança e o meu afeto, fiquei frustrado, decepcionado e só a morte dele me confortaria.

- E quanto a Suzann, onde ela estava a essas horas?

- Também estava dormindo, pensei eu, mas não, estava ela na biblioteca mexendo em alguns livros. Quando cheguei, ela um pouco assustada, colocou os livros em uma das partes da prateleira de número dezesseis.

- Hum! Ela estava escondendo o anel, mas por que?

- Sim, o anel, eu não sabia que ela o guardaria na biblioteca, foi você quem me transpareceu o sumiço dele.

- O que tinha de tão importante neste anel?

- Ele é um objeto sagrado da família e vale milhares de libras! – delatou o rapaz - É a mais cândida riqueza meu caro, a mais preciosa, pura! Esse tão cobiçoso anel não poderia cair em mãos erradas. Suzann havia ganhado do Sr. Walker, mas tal objeto, jamais poderia ser entregue a alguém que ainda não fosse da família, pois se assim fosse, quem o adquirisse, seria amaldiçoado.

- Como assim, amaldiçoado?

- Este anel tem o poder de corromper as pessoas, e eu, fui incumbido em destruí-lo. O anel era uma ferramenta do mal, o qual praguejava sobre as pessoas a insanidade e afã pelo poder. Ele fora confeccionado por um mago no século XVI e por muitos anos pertenceu à família do Sr. Walker. Como ele era estudante das artes negras e não como você pensava, que fosse um mero escritor de contos fantásticos; permaneceu em sua família por longos e longos anos.

- Mas porque ele daria o anel a Suzann?

- Suzann era jovem, atraente e tinha uma forte personalidade. Walker precisava de um precursor, para assim, o legado do anel continuar vivo, ele queria que Suzann fosse rica e poderosa após sua morte. Ele era sábio! Tinha certeza de que morreria rapidamente, mas não pelas mãos de minha mãe. O anel era o testamento que ele deixara a Suzann e ela, cobiçosa, não se apaixonara por mim por acaso, queria algo mais, usufruir de riquezas, luxo e conforto. Somente o Sr. Walker poderia entrega-lo a ela, pois eu e minha mãe nada éramos perante o império que ele possuía. Ele era o dono de toda essa riqueza onde nós nos encontramos e temia que eu me casasse com Suzann, para assim ter parte no testamento.

- Mas porque você matou Suzann?

- Era a única maneira de evitar que o pior acontecesse. Cada dia que se passava ela transformava-se em uma pessoa má, podia-se ver em seus olhos o ar malévolo e frívolo, denotando essa presença maligna em seu âmago. Mas, na verdade, eu não a matei, foi ela quem se matou. Naquela mesma noite, após a morte de Walker, Suzann perambulava impaciente pelos corredores da casa, parecia que ela sabia o que estava por vir. Foi então que, como lhe disse, a peguei na biblioteca e subi com ela até os nossos aposentos e começamos a discutir. Suzann estava fora de controle e totalmente desequilibrada, me agredia com palavras e violência sem eu ter levantado um dedo sequer a ela. Foi então que ela entrou no banheiro de nossa suíte, trancou-se e por lá permaneceu por vários minutos, até acabar com minha paciência, arrombar a porta e ver aquele belo ser, ensangüentado ao chão. Seus pulsos estavam cortados, havia sangue por todos os cantos do banheiro. A água da banheira estava avermelhada e respingos do líquido rubro por toda a parte. Prostrei-me à sua escultura e ao levantar-me olhei para espelho e li algo escrito com o seu próprio sangue – “Vingança à Maryanne – Voltarei no sombrear da próxima lua”.

- Isso explica a morte de sua mãe há algumas horas atrás, não? – perguntou Charles.

- Sim, mas, foi Suzann quem a matou?

- De acordo com os indícios; sim. – confirmou Charles – me diga mais uma coisa Raphael, e quanto ao mordomo? Por que ele se suicidaria?

- Ah! Walter! Ele era o braço direito de mamãe. Maryanne deixara com ele um pergaminho e este pergaminho era o testamento que o Sr. Walker havia concedido a Suzann. Walter o guardara para depois queimá-lo e assim, nada seria herdado à ela. Certamente que o seu suicídio foi devido às visões que ele teria de Suzann o perseguindo devido ao porte do testamento.

- É, mas eu encontrei o testamento no bolso de Walter e certamente ele não o queimou por essa razão, leia.

Ao ler espantou-se com o escrito.

O testamento havia sido adulterado pelo mordomo, passando todos os bens do Sr. Walker para o seu nome, colocando em risco a amizade e cumplicidade com Maryanne.

Novamente um forte calafrio tomou conta de ambos e o espírito de Suzann reapareceu, avançando sobre Raphael. Ela estava ainda mais poderosa e temerosa. Seu olhar era de ira profunda e sua fisionomia à de um demônio.

Charles, sem saber o que fazer, pegou o anel e mostrou ao fantasma iracundo.

Suzann, instintivamente, como se farejasse alimento, saiu de cima de Raphael e caminhou na direção do doutor a fim de pegar novamente o artefato.

Esta, tomou do doutor, colocou em seu dedo delgado e desforme, sentindo-se a poderosa.

Com todo o poder que o anel lhe proporcionara, Suzann atacou-os com suas garras afiadas, arrancando-lhes algumas gotas de sangue de seus corpos.

Raphael, ensangüentado e temeroso, puxou Charles dizendo:

- Venha, vamos para a sala de estudos do Sr. Walker, lá poderemos encontrar alguma resposta para enviar Suzann para o umbral – e correram para a sala de estudos.

Suzann, atônita com seu poder, apenas gargalhava tal qual uma bruxa megera.

*

O terror batia em seus corações tal qual aquele espectro atroz corria em sua direção. Foi então que Raphael, fuçando em umas das gavetas daquela sala de estudos, encontrou o Necronomicon – O Livro dos Mortos – livro antigo escrito pelo árabe Abdul Alhazred. Dr. Charles conhecia muito bem o conteúdo daquele livro e por ali já teve uma prévia noção do acontecido.

- Raphael, ouça-me! – chamou a atenção do rapaz em meio ao caos dos gritos espavoridos do espírito. – Seu padrasto, certamente, após a sua morte, deve ter invocado alguma entidade demoníaca para que Suzann ficasse presa entre os dois mundos, para, enfim, fechar o ciclo.

- Qual ciclo Dr. Charles?

- Veja, lá no céu. – apontou pela janela o eclipse lunar o qual já estava em quase sua totalidade.

- O recado que Suzann havia deixado pouco antes de morrer - “Voltarei no sombrear da próxima lua”.

- Exato meu amigo, mas, não é ela que retornará, veja, atrás de Suzann.

De repente um calafrio pela espinha de ambos tomou conta de seus corpos, perante a assustadora figura negrume a qual transparecia juntamente com o espírito de Suzann.

- Me..me..meu padrasto? – assustado e trêmulo apontou Raphael ao espectro.

- Exatamente!! E o que é pior, em sua forma demoníaca e indevassável.

A energia daquele ser era tamanha, que jogou os dois rapazes metros de distância. Sem saber como agir, Charles só pensou em uma coisa: usar de sua experiência, para de alguma maneira, mandar aquela criatura de volta para o inferno e salvar a alma de Suzann. Seu pêndulo girava acintosamente no sentido anti-horário, isso significava, logicamente, que estava lidando com o mundo espiritual.

O doutor tinha a necessidade de agir rapidamente, caso contrário, ele e Raphael seria dizimados por ali mesmo.

- Charles, me diga, como sairemos dessa?

- Bem, seu padrasto era apenas um humano, tal qual nós, quando reencarnado; portanto, esta forma a qual estamos vendo é tão somente uma maneira do mostrar-se o poder que detém, portanto, não devemos temer, pois esta realidade não é a nossa.

- Como não? Pra mim é uma baita realidade o que estou vendo, e quão real é.

Aquele ser nefando, aos poucos, aproximou-se de ambos e gritou em seu tom gutural.

- Dêem-me o que eu quero e os deixarei em paz!

Os rapazes olharam-se e sem compreender nada perguntaram:

- Mas o anel já está nas mãos de Suzann, o que mais você poderia querer de nós?

- Dêem-me o que eu quero e os deixarei em paz!

- Não sei do que está falando, Walter! – exclamou Raphael.

O espectro então enfureceu-se e num só tapa, mandou os dois a poucos metros dali.

Raphael bateu com a cabeça, abrindo uma verdadeira fenda em sua caixa craniana, em uma das pilastras que segurava o teto daquela sala e por ali desfaleceu. Charles tentando acudir o rapaz, aos tapas, de nada adiantava. Foi então que Suzann deixando de ser corrompida pelo poder da maldição, em um momento sóbrio de sua perdida alma, segurou em uma das mãos do doutor, fitou profundamente em seus olhos e telepaticamente dizendo-lhe:

- Charles, confie em mim, pois suas crenças são além deste mundo.

E assim, aquele espírito em total desprendimento, apossou do corpo de Charles, fazendo com que sua força fosse aumentada e este pudesse encarar o poder do espírito do Sr. Walker.

Charles levantou-se, denotando um olhar expressivo e assaz diabólico, encarou inerte o Sr. Walker. Este, enfurecido pelo ato de Suzann, voou para cima do doutor, esbofeteando seu rosto. Respingos de sangue de Charles, manchavam as paredes rústicas do salão e mesmo assim, o rapaz, possuído pelo espírito de Suzann, munido em seu dedo pelo poder amaldiçoado do anel, apertou o pescoço de Sr. Walker fazendo-o alçar um vôo de mais de dois metros de distância, caindo sobre a mesa do escritório, quebrando-a ao meio.

No ápice do sombrio eclipse, no realinhamento de alguns planetas, Charles sentiu a comunhão constante com Suzann e, a partir daquele momento, ambos tornavam-se um único e poderoso ser. A lufada fazia-se presente no ambiente e então, uma fenda imensa abriu-se no chão, onde gritos e horror devassavam o comportamento do espectro do Sr. Walker.

Charles, em alto e bom som, disse encarando ao olhar soturno daquele espírito:

- Quando exclamou o que queria algo de nós, naquele momento, eu não sabia; mas agora eu sei, criatura das trevas! – exaltou-se levantando aquele ser com uma de suas mãos fincada ao pescoço. – Você queria a nossa alma, não é mesmo?

- Sim, imbecil, a alma de meu enteado, que era ainda pura por não ter copulado com uma mulher mais a sua, santa e sombria; dariam-me o poder necessário para que eu pudesse resgatar do Necronomicon meus padrinhos trevosos e fazer da terra um lúgubre lugar para se viver, ou melhor, para se morrer! Eu imperaria por aqui, meu caro, se não fosse o atrevimento de Suzann.

Sr. Walker então, iracundo, saiu daquela posição tentando um último refugo: tirar o anel de Charles.

O doutor, envolto pela energia de Suzann, percebendo as intenções das trevas, tirou o anel e disse-o jogando àquela fenda escaldante em fogo e paúra:

- Ainda quer o anel, besta? Pois então vá pega-lo!

- Nãããããoooooooo!!!! – gritou o ser.

Naquele momento então, daquele roto profundo, os gritos espavoridos de dor e angústia, clamavam em tons melancólicos pela alma de Walker. Os sonidos estridentes enlouqueciam-no, e aos poucos, sua alma fora levada por outros seres em ascensão para sua cura espiritual.

Aos poucos, daquele buraco, nada mais se via ou ouvia, apenas os lamentos do vento brando, o qual ainda sibilava por aquele negrume salão.

Suzann então deixou o corpo de Charles, e este, sem forças, caiu ao chão trôpego, mas consciente.

A moça agradeceu o rapaz pela ajuda e seguiu em direção à luz, que aos poucos, tomava conta do ambiente. O doutor, um tantoo sonolento, via seres de luz e harmonia levando a alma de Suzann para o aconchego eternal, onde seria preparada para mais uma reencarnação, anos mais tarde.

***

Vinte e cinco anos mais tarde, Charles, um pouco acima do peso e acintosas rugas espalhadas por sua cansada face, caminhava tranqüilo pelas ruas de sua amada Itália, pensando em tudo o que já havia passado por sua vida.

Em uma praça, perto dali, um mendigo alimentava os pombos. O doutor e ex-padre, abençoou aquele pobre ser, oferecendo-lhe ajuda pra com a alimentação dos pombos. O mendigo, concordou e logo na primeira jogada de restos de pão aos animais, dirigiu-se a Charles dizendo:

- Dê-me o que eu quero e o deixarei em paz!

Tiago Tzepesch
Enviado por Tiago Tzepesch em 10/01/2011
Código do texto: T2720118
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.