O ARTISTA

A noite sem luar e sem nuvens exibe exuberantes estrelas. A brisa noturna trás dos ermos distantes aromas e fragrâncias de flores. Da janela o observador contempla aquele espetáculo em profundo e respeitoso silêncio.

Está cansado e a dor se faz presente em cada músculo de seu corpo. Houve um tempo em que a dor era sua inimiga. No entanto, hoje ele a domina e a transformou em sua companheira, sua ferramenta de trabalho.

Então volve o olhar na direção da coisa que se encontra a suas costas. Trabalhou arduamente sobre aquilo por horas e ainda está inacabada. Ele deixa a janela e aproxima-se da coisa disforme. Examina o que fez e imagina o que ainda tem que fazer para finalizar sua obra.

A coisa move-se, algo parecido com uma cabeça pende descontrolada para trás. Os cabelos desgrenhados revelam uma face masculina desfigurada, dos cortes goteja sangue.

- Por quê? Indaga uma voz rouca e inumana.

- Essa é a pergunta que todos fazem. Sua mente ainda está presa a convenções, não consegue ir além. Acredita que é preciso uma razão, um motivo para tudo existir nesse mundo. Não aceita que algo possa apenas existir por si mesmo. Ele aproxima-se ainda mais, a coisa procura recuar, mas está amarrada numa cadeira. “Está se perguntando por que eu escolhi você em seis bilhões de seres humanos que infestam a Terra. Vou lhe dizer: eu não estou com câncer e nem pretendo dar uma lição em babacas, não lhe conheço, nunca o vi antes, você nunca fez nada contra a minha pessoa, não há nada de especial em você, eu apenas o escolhi, só isso”.

- Eu não quero morrer. Choraminga a coisa.

- Eu também não quero morrer, mas, infelizmente, meu amigo, um dia nós dois iremos morrer. Faz parte da vida. Você deve estar pensando que sou louco e talvez esteja com a razão, mas como definir o que é normal ou não? Você sabe que em pleno século vinte e um pessoas são condenadas a morte por apedrejamento? Que governantes ainda agem como senhores feudais? Isso eu acho loucura. A coisa chora copiosamente. O observador simplesmente a fita. “A dor, meu amigo, é algo que nos força a evoluir. Tudo que o homem fez nesses milhões de anos vou inventar meios de fugir dela. A dor provocada pelo frio nos fez dominar o fogo, a dor da perda dos entes queridos nos fez inventar as religiões, ‘tudo é dor e toda dor vem do desejo de não sentimos dor’ já dizia Sidarta Gautama em 510 a.c. Mas eu não fujo dela”. Então ele caminha até a mesa e entre as inúmeras ferramentas apanha um martelo. “Quando eu tinha oito anos de idade, numa determinada ocasião, corria pela casa e cai da escada. Foi inevitável, eu quebrei meu pé. Não me lembro de ter sentido tamanha dor até aquele momento. Eu não conseguia me erguer, por mais que eu tentasse. Gritei de dor e ninguém veio me ajudar. Fiquei horas ali estendido esperando até que um imbecil apareceu e me levou para o hospital. Daquele momento em diante decidi que nunca mais seria refém dela, a dor”. Com o martelo empunho aproxima-se da coisa. “A primeira coisa a fazer era descobrir meus limites” então com violência ele golpeia seu próprio pé com o martelo, a coisa estremece. “Devo ter quebrado alguns ossos, no entanto, eu controlo meu corpo e minha mente e nada sinto”. O observador sorri. Retira a camisa expondo o tórax. “Cada uma dessas cicatrizes possui uma história. Umas são de bala, outras de faca e algumas de choque elétrico, todas foi eu mesmo que fiz. Eu conheço a dor e a domino, isso só Deus é capaz de fazer”.

- O que quer de mim? Indaga a coisa entre soluços.

- De você? Nada. Ele caminha até a mesa e deixa o martelo. “Gosta de ler a bíblia?” a coisa move negativamente a cabeça. “Em Genesis capitulo 2, versículo 7 está escrito: ‘E formou Deus o homem do pó da terra e soprou em suas narinas o fôlego da vida’ Sabe o que isso significa?” novamente a coisa responde negativamente. “Significa, meu amigo, que a humanidade é apenas barro que Deus modelou, deu forma e sentido. Ou seja, o Bondoso Deus é um artista”. Então o observador apanha um formão. “Assim sendo, eu comecei a pensar: e se alguém fosse um artista como Deus poderia reformular a sua criação, tornar-la melhor, retirar de seu interior toda a maldade, transformar o homem em anjo?” Ele aproxima-se da coisa. “Eu acredito que sou este artista e que posso melhorar a obra de Deus. É por isso que por anos venho trabalhando em cima do barro que é a humanidade. Não é um trabalho fácil, mas estou disposto a fazê-lo e você, meu amigo, é apenas uma peça insignificante. Pois, quando em terminar com você ninguém lembrará ou saberá seu nome. No entanto, eu serei reverenciado por milênios como um semideus, aquele ser iluminado que transformou a humanidade”. Ergue a mão pronta para golpear a coisa, que grita e implora por sua existência. Então um estampido invade a sala e pedaços de crânio espalham-se pelo piso. Um corpo cai sem vida sobre a poça de sangue. A porta é arrombada e cinco policiais de arma em punho entram. A coisa chora e grita descontrolado.

- Acalme-se, terminou. Fala um dos policiais. Em seguida o desamarra entregando-o aos cuidados dos paramédicos que o leva para fora. Os policiais aproximam-se do corpo.

- Está me devendo cem reais, Sousa. Fala o sargento ao colega de farda. Os outros sorriem.

- Tudo bem, eu lhe pago Miranda, afinal de contas foi um tiro certeiro, bem no meio da testa, como havíamos apostado. Mas por que demorou tanto tempo para atirar? Você poderia tê-lo acertado quando estava janela e teria poupado o coitado do refém de se borrar todo. Gargalhadas inundam o ambiente.

- Não ia ter graça nenhuma, tava fácil demais. Mas quando ele se afastou aí eu fiquei preocupado. Se ele permanece mais um pouco para a direita eu teria que gastar mais balas. Mas o maluco voltou a ficar de frente para a janela, parecia que tava até fazendo posse para levar o tiro.

- Quem vai entender esses doidos. Esse desgraçado aqui seqüestrou, torturou e matou dez pessoas antes dos investigadores descobrirem quem era. Acrescenta outro policial.

- Agora ele vai é falar com o capeta.

Sannyon
Enviado por Sannyon em 04/02/2011
Código do texto: T2772143
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