Ave Sonora - Parte IV

Quanto tempo passaria?

Clara perdia as contas das vezes em que a claridade do amanhecer se transformava no escurecimento do anoitecer, visto apenas pela janelinha da cela.

Fome, frio, dor, humilhação. Nem o “Chicão” a fizera falar.

- Cabrita que é cabrita é acostumada a arreganhar o rabo!

Disse a voz de homem que parecia rosnar perto do seu ouvido.

Clara achava que não tinha coisa pior. Perdia a noção de tempo, de espaço, o domínio de fezes e urina. E tomavam o cuidado para não causar nenhum ferimento letal.

Descobriu que tinha. Um “Chicão” de verdade.

O estupro talvez não seja a parte de todo ruim, mas o depois. Dor por dor é uma troca igualitária. E o rins e entranhas doem o tempo todo, mesmo. Mas não saber se tem a partir daquele momento uma doença incurável, ou uma criatura para colocar no mundo dentro daquele inferno é cruel. Este ato ultrapassa qualquer barreira de integridade psicológica. Já ouvira sons de partos, gritos furiosos e definhamentos por alguma praga pegada. Doenças acabavam com a morte, e Clara sentia ela de perto. Os filhos dos porões já tinham destino: o orfanato das freiras da Santa Casa de Misericórdia (E nem precisavam entrar pela roda dos enjeitados... os milicos levavam pessoalmente às “santas” mulheres que os encaminhariam a novas famílias.).

Certa noite, sentindo o ar frio e ouvindo muito longe o barulho dos poucos carros que passavam pelas ruas do Centro Histórico da Capital, uma confusão se estabelecia nas reflexões e pensamentos de Clara. Muitas vezes se questionara se valia a pena entregar o amigo. Difícil seria ter certeza se continuaria viva depois disto. Era bem possível que não. Até por que o segundo questionamento era sobre a integridade mental dos soldados. A acusavam de coisas que não havia ouvido nem falar, perguntavam se conhecia pessoas das quais nunca havia visto o rosto, e isto só podia ser perseguição de gente louca. Ou talvez Otávio as conhecesse, e por aproximação, os militares acreditavam que ela também.

Clara não era de todo inocente. Espalhava informações, questionava alguns atos do governo, mas nunca havia matado alguém. Nunca havia visto nenhum cadáver, até o dia fatídico em que espiou por uma fresta e viu carregarem um corpo como se fosse um saco de lixo pelo corredor.

E toda a vez que ouvia passos de coturno se aproximando doía-lhe o corpo inteiro.

Às vezes rezava. Lembrava da grande Igreja muito branca, que estava tão perto e pedia para Nossa Senhora das Dores abreviar seu desespero e matar-lhe na próxima vez em que a procurassem.

Estava sentada no chão, encolhida, com muitas dores no baixo ventre.

Alguém entrou na cela. Um homem, sozinho e encapuzado.

Trancou a porta e aproximou-se dela.

-Clara... tem alguma coisa pra dizer? Acendeu um cigarro.

Ela reconhecia a voz. Era o mesmo homem que a violentara seguidas vezes, junto aos colegas torturadores. Ela encolheu-se mais ainda, com as costas muito juntas à parede.

-Não precisa ter medo... pode falar comigo.

Ela não sabia se o homem estava sendo sádico, irônico, ou sincero.

Ele aproximou-se dela. Abriu suas pernas. Ela fechou os olhos muito fortemente. Ele olhou seu sexo.

-Está menstruada ou machucada?

Talvez a intensão dele não fosse má.

-Acho que os dois... – Ela disse com voz exitante.

-Espere um pouco.

O homem saiu e em poucos minutos voltou.

-Trouxe roupa e um absorvente. Te levarei para tomar um banho.

Não podia ser verdade. Porém, se Clara se negasse a acompanhá-lo até o chuveiro, corria riscos; se fosse, corria da mesma forma.

Entraram no vestíbulo de azulejos azuis e mofados. O homem que a acompanhava ficara de costas. Desconfiada, Ela abriu o registro e tomou o banho apenas com a água fria de sempre.

- Sabe, guria, tenho admirado o que tem feito. Eu no teu lugar já tinha aberto um bocão do tamanho de um bonde.

Continuaram em silêncio. E foi assim, em silêncio que ele acompanhou-a até a cela, novamente. Havia como que uma cama de concreto feita a partir da parede. Em cima, um cobertor velho que antes não estava ali.

-Te enrola no cobertor. – Ele ordenou.

-Quanto tempo faz que estou aqui?

-Não contou?

-Perdi a conta.

-Quarenta e cinco dias. Tem certeza que não tem nada pra me dizer?

-Não. Não sei onde anda o Otávio. Ele a esta hora já deve ter dado falta de mim. Andávamos sempre juntos. Mas se ele fez algo de errado e viu que me pegaram, na certa já saiu até do país. Não sei que tipo de contatos ele tinha. De certo ele nem tinha me falado nada pra não me prejudicar, sei lá. Já foram até a casa dele, não foram? Um dos teus colegas me disse que sim. Fora o endereço de lá, não faço idéia. Se quiserem, me matem de uma vez, mas não tenho nada para falar, então não falo.

Amanheceu. Clara saiu de dentro do rabecão vendada. Ouviu a voz do homem que esteve na sua cela no dia anterior sussurrando em seu ouvido:

- Não diga onde esteve, assim como não disse onde estava teu amigo. Sabemos de todos os teus passos. Não diga nada. E demore pelo uma semana para voltar para casa. Assim que ouvir o carro arrancando, tire a venda.

O carro arrancou. Clara se viu de frente para o mar, quase ilesa. "Te admiro..." a voz do homem latejava em sua cabeça.

Caroline Garcia Cruz
Enviado por Caroline Garcia Cruz em 23/02/2011
Código do texto: T2810698
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