DESCONHECIDOS - 46

DESCONHECIDOS – 46

Rangel Alves da Costa*

Só não puderam partir nesse mesmo dia porque Dona Doranice decidiu que a viagem e os objetivos propostos ficariam muito difíceis de serem alcançados se ficassem tendo que alugar transporte para cada local que quisessem ir.

Então perguntou se algum daqueles assessores era bom motorista, habilitado e entendia de veículo grande, como van ou micro-ônibus, e mandou revirar Mormaço de cima abaixo para comprar o mais novo e melhor conservado, custasse quanto custasse.

De resto, após dormitar um pouquinho à tarde, assim que levantou convidou os seus dois fiéis acompanhantes para conhecerem pessoas e moradias nos locais mais afastados do centro da cidade, nos chamados conjuntos e adjacências. E foi já sabendo o que iria encontrar, pois assim que colocou os pés no outro lado de um riachinho, o que passou a ver e sentir foi a miséria, o abandono e a carência em suas formas mais gritantes.

Um menino seminu estava em cima de um morro soltando uma pipa colorida, um papagaio, como se dizia por lá, e nem parecia enxergar o mundo que se estendia adiante e ao redor. Estava de olhos erguidos para o alto, para os céus, acompanhando a trajetória de sua pipa e talvez com vontade de voar também, de sair de vez dali, de abandonar aquele mundo de sofrimento.

Quem também olhava para os céus naquele momento e não se cansava de olhar assim era João, o pescador, o ribeirinho solitário, no rochedo de sempre às margens do São Pedrito, o rio das águas que passam e voltam a passar novamente pelo mesmo lugar.

Desde que numa tarde igual aquela e naquele mesmo lugar, ele sentiu a presença de sua falecida esposa dizendo que tomasse cuidado dali em diante porque desconhecidos viriam para atormentar sua vida, jamais teve sossego. Era um aperreio só no pensamento, principalmente para conhecer o exato sentido daquelas palavras.

Ora, dizia consigo mesmo, desconhecido pra mim é todo mundo que vem, que chega, que passa, que fica um dia, dois dias e depois vai embora. Todo mundo é desconhecido porque vivo sozinho, e todo mundo se torna mais desconhecido ainda porque não se pode confiar mais em ninguém desse mundo.

E dizia ainda que muitas vezes até ele mesmo era um desconhecido. E um desconhecido porque pensava maluquices demais, pensava em fazer besteiras, ficava matutando bobagens. Sentia-se desconhecido porque achava muito bem o que queria naquela vida de solidão, de água, de peixe, de acordar, viver e adormecer cheio de planos e de saudades.

E ficava pensando e pensando sobre os desconhecidos que poderiam aparecer por ali. E matutava que num lado e no outro do rio, desde a nascente até muito mais adiante, já onde o leito desembocava no mar, as pessoas eram as mesmas de sempre, a vizinhança era a mesma desde que passou a viver ali, a vida quase não havia mudado e apenas um ou outro estranho chegava naquelas ribanceiras para logo seguir adiante.

Conhecia muito bem tudo ali. A sua tapera de pescador ficava num lugar afastado da beira do rio, mas não muito distante, de cada lado e até pelos fundos, de pequenas vilas de pescadores, de lugarejos quase abandonados, de casinhas cujos moradores morreram ou partiram deixando as portas trancadas. Em muitas delas o vento batia na porta e parecia que uma mão do outro lado abria e mandava entrar. Isso noite e dia, dia e noite, num cotidiano fantasmagórico.

Em muitos destes casebres vez por outra aparecia um morador de passagem, coisa de um ou dois dias, e novamente as portas ficavam escancaradas, ou somente empurradas, guardando por dentro os seus fantasmas. Se a choupana era de ripa, graveto e folhagem, nem precisava andar muito para encontrar aqueles verdadeiros esqueletos pendendo e quase caindo com a força do vento. Se era de alvenaria, primeiro sumiam as portas e as janelas, depois o telhado, restando por fim somente paredes nuas caindo aos pedaços. Desse modo, em muitos lugares pelas beiradas do São Pedrito o que se via era um verdadeiro cemitério de casas mortas e pessoas que ninguém sabia para onde tinham ido.

Por lá todo mundo conhecia uma lenda dizendo que o próprio rio cuidava de ir buscar os velhos e doentes beiradeiros nas suas moradias e conduzia-os em cima de uma onde até as profundezas de suas águas. Por isso mesmo é que as pessoas simplesmente sumiam dali sem que ninguém soubesse o destino tomado.

Sete dias após o rio ter selado o destino do beiradeiro ele era visto passando à meia-noite dentro de um barquinho. Assim que passava em frente ao local onde o falecido morava o barquinho descia novamente nas águas, sumindo de vez.

Contudo, o maior medo que João tinha não era nem que o rio viesse lhe buscar quando já estivesse bem velho ou muito adoentado, mas de um barquinho que de vez em quando passava à meia-noite sem que fosse avistado ninguém lá dentro. Era só o barco remando lentamente, talvez esperando o seu passageiro.

E os mais velhos diziam que quando o barquinho é avistado assim, sem nenhum falecido dentro dele, é porque está procurando alguém para que o rio vá logo buscar.

continua...

Poeta e cronista

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