PERTO DEMAIS

Entro no apartamento, pego Clara me roubando, calmo, fico calmo, ela está nervosa, ela faz coisas que não entendo, ela fala em outra língua, ela fala sem dizer nada, digo que aquele dinheiro é meu e que ela não vai fugir da minha vida daquele jeito.

Clara divaga, fuma, dá risada, quer fugir, eu sei o que ela quer, eu sei o que ela pensa, minha calma a destrona, pego um copo de água, faço panca vendo ela se desesperar, explodir, estourar, ela joga a maleta de dinheiro na minha cara, que quebra o copo de água, cortando minha jugular.

Sangro ininterruptamente, exageradamente, dinheiro, sangue, morte, Clara chora, Angélica Histon sai de dentro da sombra do apartamento, ela estava lá o tempo todo, ela fuma um cigarro, as duas catam o meu dinheiro e fogem.

Assisti essa fita umas trinta vezes. Gostava desse filme, gostava de Angélica Histon, gostava de Clara, um trailler do nosso relacionamento. Clara chegando na minha vida, me roubando e indo embora.

Sentia-me exatamente assim, como se Clara houvesse me roubado algo, não algo que se rouba um ladrão ou usurpador, mas de quem trafica órgão transplantado, vísceras, carne, sangue, coração, a dor de um recém operado, era assim que me sentia, um operado.

Clara entra:

—Clara! Sabia que você ia voltar.

—Não me toque, vai amassar o meu vestido. Uhm, você está fedendo, a casa está fedendo.

—Estou apodrecendo, apodrecendo por sua causa.

—Não me coloque no meio dessa merda.

—Agora que você voltou, tudo vai melhorar, eu prometo!

Barulho de buzina. Corro até a janela, uma limusine preta.

—Quem é?

—É o Paulo, estamos indo à ópera no Municipal, passei só para te dizer adeus. Adeus.

Adeus, um pequeno tornado, adeus, se formando na minha cabeça, adeus, adeus, adeus ao diabo. Um furacão.

Pego a pistola negra que estava escondida no guarda comida.

—Que porra é essa?! — ela grita.

Agarro-a pela cintura e meto a pistola na cabeça dela.

—Você ficou maluco?

—Daqui você não sai!

—Ai, meu Deus!

—Diz pro merdinha lá embaixo, que daqui você não sai.

Empurro-a até a janela, meto a cabeça dela para fora, Clara grita, a polícia chega, os repórteres.

—Quero um helicóptero e uma AR15, diz pra eles.

Empurro a cabeça dela para fora da janela, ela chora, soluça, gagueja.

—Diz direito, porra!

Clara escapa das minhas mãos e cai lá embaixo.

Para falar a verdade, nem sempre terminava assim. Outros sonhos eram mais elaborados. O grupo de choque da policia entrava atirando para todos os lados. Outro: mandavam uma repórter para me filmar e a vaca tinha um revólver dentro da câmera, era da polícia, dava dois tiros na minha cabeça. Outro: Clara aparecia na janela e dizia que me amava, que a vida era linda, todos aplaudiam, os policiais se abraçavam, entrava uma escola de samba, uma grande festa, e tudo acabava em carnaval.