A BRUXA DE FONTÃO

A BRUXA DE FONTÃO

Conto

Jorge levantara-se cedo nesse dia mais por impaciência do que por qualquer outra razão, já que acabara de vir do Porto expressamente para tentar compreender fenómenos paranormais que lhe chegaram aos ouvidos na faculdade onde finalizava o curso de psicologia.

Ao longo da sua ainda curta vida, o agora quase doutor, deixava a curiosidade expandir-se mantendo contudo uma sensação de incredulidade perante as diversas narrativas que ia ouvindo sempre repletas de mistério o que ainda mais lhe espicaçavam o desejo de desvendar esses segredos.

Não foram só esses alertas, muitas vezes dissimulados a rasar o que de mais cómico e mirabolante poderiam conter, mas também o viver de uma experiência estranha e deveras assustadora que ainda hoje não conseguiu explicar e apagar da memória.

Altas horas de uma noite, acabado de sair de um pesadelo horrível, no quarto da pensão onde vivia na rua da Boavista, acordado, ouviu bater as quatro horas da madrugada nos sinos da igreja de Cedofeita quando se apercebeu-se de um vulto erguido aos pés da cama única naquela divisão. A sua primeira reacção foi certificar-se que a porta e a janela se encontravam fechadas, aliás como as tinha deixado quando resolveu deitar-se, porem era impossível vislumbrar completamente todo o espaço na penumbra mas pareceu-lhe que tudo estava como tinha deixado e no entanto aquele vulto indecifrável avançava de mãos estendidas numa tentativa de o agarrar. Quis gritar apavorado mas da sua garganta nem o mais leve sussurro conseguiu sair. Uma sensação de gelo percorreu-lhe o corpo hirto onde só os olhos tinham processo de controlo e viu então petrificado a sinistra figura avançar ao seu encontro. Primeiramente tocou-lhe nos pés que Jorge tentava sem êxito recolher debaixo da roupa depois, lentamente curvaou-se sobre a sua cara atónita e emitiu um bafo gelado e surdo que pelo teor odorífico se assemelhou a respiro de canal de esgoto o que quase fez desmaiar o pobre rapaz.

-Eu sou o diabo! Murmurou o fantasma na escuridão.

Foram apenas alguns segundos e quase da mesma forma que tinha surgido, desapareceu a sinistra aparição. É inenarrável o desespero do estudante a debater-se em vão contra a impossibilidade de se mover de fazer apenas um gesto que pudesse aliviar-lhe um pouco o sofrimento.

Já meio recuperado verificou a porta e a janela do aposento e constatou que se encontravam fechados e seria impossível alguém entrar por ali até por que a chave da porta se encontrava no interior.

Seguiram-se dias de desespero, inquietação e de medo, em cada esquina de rua, em cada lugar menos povoado e iluminado da cidade, Jorge julgava ver a figura daquela noite. Foram meses de tortura que o deixaram magro e abatido que provocaram nele uma cede de compreender a verdade do que se tinha passado abeirando-se de um declínio que o poderia ter conduzido à loucura.

Procurou conhecimento mas foi muito pouco o que encontrou nos livros e muito mais o que recebeu da sua fé cristã ao ponto de quase ter esquecido aquela noite trágica, até que um amigo lhe narrou acontecimentos fantásticos àcerca de uma feiticeira que a virtude que tiveram foi despertar-lhe novamente a antiga curiosidade ao ponto de deixar a cidade e ir ao encontro desse misticismo.

Jorge não poderia ainda compreender os dramáticos esforços da humanidade para conseguir controlar forças desconhecidas que actuam neste mundo impunemente. Na sua fé, na sua religião católica, buscou na Bíblia uma luz a que se pudesse agarrar e de facto encontrou. No Novo Testamento existem relatos de exorcismo praticados por Jesus.

Da ciência, Jorge tinha aprendido que nos actos de possessão e do exorcismo, o ritual provoca o equivalente a uma espécie de purgação mental e emocional em que as tensões dos problemas de conflitos neuróticos, estão quase sempre sujeitas a um determinado grau de descontracção que é quase impossível perceber e até avaliar. No entanto o estudante podia ainda contar com relatos públicos de pessoas que foram vitimas de morte cerebral temporária e regressadas à vida todas disseram que prefeririam ter ficado do outro lado pois tinham experimentado um sentimento de paz, de amor e de beleza que explicaram embora de maneiras diferentes que esse local se assemelharia àquilo que definimos hoje de paraíso. Todo este somatório de informações, constituíram na realidade um avivar das causas que provocaram o grande interesse no estudante pelas matérias místicas.

Chegou nos primeiros dias de Agosto a Fontão e em vão procurou pousada na terra pois aqui não há nem nunca houve albergue ou residencial. A primeira pessoa com quem deparou no meio do largo da feira foi com um pobre diabo andrajoso e de fraca figura, de cara comprida e magra, nariz pencudo, olhos desorbitados a mancar de uma perna, dirigiu-se ao estudante num cambalear assustador. Olhou-o com os olhos arregalados e raiados de sangue onde era nítido o espanto que lhe provocou a presença do rapaz neste local. Parou sùbitamente e antes que Jorge lhe dirigisse qualquer palavra saudou-o:

-Boa tarde! Quem é o senhor!?

O estudante mediu-o de cima a baixo e não fez qualquer comentário dado a surpresa da pergunta e, imediatamente a seguir o homem continuou:

- Eu sou o diabo de Fontão, moro lá em cima nos penedos!

Cada vez mais intrigado o estudante foi dizendo que viera do Porto e que procurava pensão. Na cara besta do tolo, desenhou-se uma espécie de sorriso que mais pareceu um esgar ameaçador. Da boca onde apareceram à mostra três dentes raros e podres, saia uma baba que escorria pelas barbichas espetadas no queixo e lhe emprestavam um ar de autentico bode. De vez em quando limpava com a manga do casaco a torrente de saliva que não conseguia conter.

- Pensão!? A gargalhada estalou naquela cara ridícula e tomou forma disso mesmo no tremer do pescoço comprido, desproporcionado ao resto do corpo:

-Aqui não há pensão nenhuma, só manjedouras de touros ou buracos nos penedos dos mortos onde eu moro!

O estudante olhava o velho surpreendido e perplexo, aquele rosto parecia-lhe demasiado familiar e ainda mais a rouquidão da voz que iria jurar já ter ouvido noutra altura. O velho pareceu ler-lhe os pensamentos e antes que a memória lhe trouxesse mais recordações daquele cara, já ele cambaleando seguia pela rua abaixo rindo à gargalhada.

Ao cimo do largo existe uma taverna onde se junta o povo, ali Jorge deu conhecimento aos presentes da sua pretensão de ficar pela terra uns tempos afim de estudar os modos de vida daquela gente. Mentiu consciente de que lhe seria mais fácil passar por estudioso dos hábitos rurais do que investigador de assuntos praticamente vedados à maioria das pessoas.

O taverneiro, homem de compleição física avantajada, ouviu o pedido de Jorge e foi dizendo que dispunha de um quarto fora de casa, mas que nunca pensara em aluga-lo a quem quer que fosse. Conversa puxa conversa e a troco de vinte contos por mês lá conseguiu estalagem. Alguns dias depois, os do povoado já o tratavam por doutor. Bastou para isso ter dito ser universitário que o povo logo lhe passou o diploma sem grandes formalidades.

Durante dias o estudante deambulou pela terra falando com este e com aquele, tirando alguns apontamentos e até gravando algumas conversas num pequeno aparelho portátil, porem a sua atenção estava voltada para a quinta de Fontão e só passada uma semana, já era praticamente amigo do proprietário, isto é do marido da bruxa.

No pequeno quarto onde dormia, ia catalogando todas as vivências dos dias que passava em Fontão. O rosto ignóbil daquele velho surgiu-lhe repentinamente na lembrança. A percepção de já ter visto aquela cara algures, era cada vez mais uma certeza no seu espírito mas por mais voltas que desse à cabeça não conseguia a exacta recordação que desvendasse esse intrigante mistério. Nestas conjecturas de vida adormeceu tranquilamente.

Mal os primeiros alvores do dia despontavam e os raios de uma medrosa claridade inundavam o aposento, já ele metia pés a caminho até à quinta de Fontão onde foi fácil tomar conhecimento com a Maga como era conhecida aqui Margarida a figura que personificava a razão absoluta da sua estadia neste lugar solitário e perdido nas margens do Douro.

Meio dentro dos assuntos secretos da bruxa, não foi difícil convence-la a permitir que a acompanhasse nos rituais diurnos e nocturnos a troco de guardar absoluto sigilo sobre as matérias e os factos que por ventura ocorressem. Pacto estabelecido e o estudante passou a fazer parte da comitiva da bruxa. Mal sabia ele o que o esperava, se pretendia conhecimento iria tê-lo, se vinha apenas satisfazer curiosidades, iria sofrer grande desilusão. Do que se faz nestes casos, não se sabe o princípio nem se poderá garantir um fim, se a Maga acabar, outra lhe seguirá o conhecimento. Já foi assim no passado e provavelmente será assim no futuro. Por estranho que pareça, o povo tem as suas próprias leis e as suas próprias crenças que muitas vezes o levam a práticas religiosas muito distantes da sua vocação cristã. Essa era a contundente razão por que Jorge jamais conseguiria penetrar na totalidade desse mundo místico onde ninguém sabe onde acaba o pagão e começa a verdade da sua fé em Deus. É pois um mistério complexo e indesvendável sem deixar de parecer fácil entender este paradoxo. Quando se pensa ter adquirido um grau de conhecimento capaz de poder desvendar este puzzle milenar, logo tudo se transforma numa tal normalidade que deita por terra todas as teorias acerca dos factos. Factos!? Se parem poder existir, logo são negados por todo um povo que jura a pés juntos nunca ter ouvido falar de tais assuntos. Ao estudante restar-lhe- à pois, ver, ouvir e calar.

Naquela tarde e de regresso à improvisada pensão, esbarrou com o velho de pernas abertas no meio da rua, o mesmo aspecto assustador, olhos desorbitados e a baba a cair nas barbichas, a mesma sensação de frio na espinha das costas que o apavorava e aterrorizava. Parecia estar à sua espera a diabólica personagem:

- Vem de Fontão?

- Venho! respondeu o estudante.

- Então já conhece a bruxa!?

- Bruxa? retorquiu o rapaz.

- Bruxa sim e do pior que existe, qualquer dia acabo com ela! A raiva instalou-se naquele ser repentinamente, a baba saia em abundância pela boca fora e ia caindo ao chão sem que o velho manifestasse preocupação em limpa-la com a manga do casaco.

- Bruxa! agora a voz tornou-se naquele sussurro que Jorge identificou imediatamente. O quarto da Boavista, o frio de gelar, o corpo petrificado e aquele som cavernoso que parecia vir das profundezas do inferno, eram sinais demasiado evidentes para não perceber a dramática analogia entre as duas situações.

- Bruxa, exclamava furibundo o velho. Um vento repentino começou a agitar as árvores e a levantar em redemoinhos a folhagem e poeiras do chão assemelhando-se a súbito ciclone. O céu ainda há pouco azul celeste adquiriu um tom de chumbo e o próprio sol pareceu querer esconder-se num universos sem nuvens numa fracção de segundos. Jorge estremece apavorado enquanto o velho se afasta a coxear pela rua abaixo.

Quem será este homem, interroga-se !? Tinha de saber o mais rapidamente possível de quem de facto se tratava.

Entrou na taverna agitado e sem mais perda de tempo indagou junto ao taberneiro:

- Conhece um velho manco que diz morar nos montes?

- Esse é o diabo, não me diga que já o encontrou!?

- Duas vezes respondeu o estudante!

- Duas vezes? O senhor doutor está com sorte, passam-se meses sem que ele apareça por aqui!

- Mas afinal de quem se trata, perguntou!?

O taberneiro limpava com um pano branco uma jarra de vidro, olhou-o de uma maneira tão estranha que este se apercebeu do incómodo que lhe estava a causar a conversa, lacónico respondeu:

- É só o diabo!

O Pontes servidor de copos e canecas sabe muito mais que isso, aliás sabe tudo e por isso mentiu na resposta que deu. O diabo ou o velho perturbador e feio não é nem nunca foi figura desta terra e jamais alguém por mais antigo que seja guarda memória desta sinistra criatura.

- É só o diabo! Como sabe o taberneiro que o homem com quem Jorge se cruzou corresponde exactamente ao senhor dos infernos!? São segredos, são coisas que pairam nos dias e nas noites de Fontão quando os mortos resolvem pedir acertos e vinganças vagueando pelas ruas desta aldeia perdida na serra a mendigar remedeios para crimes que não têm perdão. São fantasmas primorosamente tornados reais nas mentes culpadas que reclamam rectificações de áreas de terrenos que a cobiça fez com que roubassem em vida. São aqueles que desviaram águas, condicionaram vidas por maldade, que inventaram calúnias que fizeram muita gente sofrer. São os que padecem nas profundezas do inferno ou purgatório o castigo pelos delitos que cometeram durante a existência terrena que de vez em quando regressam à terra para penar ou causar ainda mais desassossego.

A noite não estava muito escura pois uma claridade lunar deixava distinguir os contornos das serras em volta. O monte da Senhora da Graça ergue-se imponente na difusa paisagem. Na profundidade do vale, centenas de luzes tremulam e afirmam a existência de um povoado ali.

O táxi parou a escassos metros da entrada da capela e a bruxa saiu primeiro dirigindo-se ao santuário enquanto balbuciava uma oração. As outras três pessoas, duas mulheres e o doutor, aguardavam no banco de trás algumas instruções. A vidente abriu um saco e começou a tirar os apetrechos indispensáveis ao ritual que se avizinhava. Assumindo uma atitude de autentica exorcista, ficou estática de corpo enquanto os olhos encovados naquela cara larga, adquiriam um brilho estranho no meio da noite. As duas mulheres encolheram-se mais no interior dos xailes, arrepiadas de medo e estupefacção. Com uma voz que nada tinha de parecido com a sua, a bruxa chamou uma delas:

- Maria, venha para aqui para o meu lado, a senhora pode ficar ai mas descruze as pernas, disse virando se para a outra que aguardava sentada no muro da capela.

Jorge assistia à cena a pouca distância demasiado absorto nos seus pensamentos para entender a realidade do momento. A mulher ia acendendo velas em volta da entrada do templo formado um circulo ao mesmo tempo que dispunha estrategicamente conteúdos indecifráveis de frascos e pequenos sacos. Num prato derramou substancias a que chegou o lume e o ar perfumou-se com um cheiro que parecia incenso. A outra, pelos vistos a paciente, era uma estátua sem vida, sem vontade à espera de um qualquer milagre que a vidente iria fazer.

Já tendo dispostos, todos os apetrechos inerentes ao acto a bruxa iniciou o que parecia uma oração:

-Esconjuro-vos demónios excomungados ou maus espíritos baptizados, se com os laços maus, feitiços, encantamentos do diabo, da inveja que seja feita em ouro, prata, chumbo ou arvores solitárias seja tudo destruído e desapegado e não prenda causa ao corpo de Maria aqui presente ou acaso pois de aqui em diante se o feitiço ou encantamento está em algum ídolo celeste ou terrestre seja destruído por obra e graça de Deus pai todo poderoso pois tudo o que vem do inferno é ruim.

Eu confio em Jesus Cristo nome deleitável e assim como Ele aparta e expulsa da terra o demónio e todos os seus feitiços, assim como o disse o deliciosíssimo nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, fujam todos os demónios, fantasmas e espíritos malignos em companhia de Satanás e seus companheiros para as suas moradas que são nos infernos onde permanecerão perpetuamente em companhia de todos os feiticeiros e feiticeiras que fizeram a feitiçaria a esta criatura chamada Maria. Todo o feitiço e o mal que ele encerra fica desfeito e anulado, esconjurado, quebrado e abjurado debaixo do poder da Santíssima Obediência e pelo poder de Cristo em Deus Padre e das três pessoas da Santíssima Trindade e do Santíssimo Sacramento do altar. Ámen

Maria cai desamparada no chão de terra e inicia um estertor violento arranhando-se, espumando da boca e nos olhos desorbitados surgem lances de descomunal loucura como se todo o corpo se tivesse transformado e deformado de repente. Grita desesperada e arranha a terra do chão com violência e fúria. Já não é uma mulher, é mais um ser animado por demoníaca força sem que ninguém a socorra.

Sem se perturbar e agora mais audaz a bruxa recomeça a ladainha enquanto o corpo da mulher em estertor medonho salta desconexa mente no meio da noite:

-Com toda a santidade eu vos esconjuro e degredo demónios malditos, espíritos malignos rebeldes ao meu e ao teu Criador. Pois eu vos ligo e torno a ligar e prendo e amarro às ondas do mar e que elas vos levem para as areias grossas do mar coalhado onde não canta galinha nem galo ou para o destino que Deus Nosso Senhor Jesus destinar. Levanto, quebro e abjuro e esconjuro todos os requerimentos, empates preceitos e obrigas que fizestes a este corpo da Maria. Desde já ficais citados, notificados e obrigados, tu e os teus companheiros para seguires o caminho que Jesus vos destinar sem apelação nem agravo pelo poder de Deus Nosso Senhor Jesus Cristo e de Maria Santíssima e do Espírito Santo e das Três Pessoas Divinas da Santíssima Trindade que são um só Deus verdadeiro em quem eu firmemente creio e por quem levanto pragas, raivas, vinganças, medos, ódios e más vistas. Quebro e abjuro todos os requerimentos, embargos, empates, preceitos e obrigas pelo poder do Santo Verbo Encarnado e pela virtude de Maria Santíssima e de todos os santos e santas, anjos, querubins e serafins criados por obra e graça do Divino Espírito Santo. Ámen

Havia um brilho estranho nos olhos da Margarida e, em dado momento aqueles holofotes desorbitados pareciam deitar chispas de lume enquanto o rosto se tornava severo e granítico, também os cabelos se agitavam como sacudidos por ventos violentos. Assemelhava-se agora toda ela à figura de uma bruxa furiosa numa transformação tal que o estudante se encolhe ainda mais dentro da roupa.

Do interior do silêncio aterrador que se fez a segui, ouviu-se uma voz vinda das profundezas da terra ou do íntimo do universo que gritava em aflição:

- Eu não sou Satanás, sou uma alma perdida em busca da luz!

Jorge assusta-se ainda mais, tinha imaginado até onde o levaria este ritual indescritível mas nunca poderia prever semelhante espectáculo, semelhante representação já por si tão confusa, desconexa e irreal que desordenava o seu próprio espírito. Mesmo assim o seu olhar percorre as pessoas e todo espaço circundante em busca da proveniência daquele apelo. Tentando apressadamente encontrar justificação para o acontecimento, pasma-se ao constatar o total isolamento do ermo e a impossibilidade de haver por perto alguém previamente preparado para animar o cenário. Antes de completa a sua desesperada tentativa de readquirir a normalidade interior, já a bruxa respondia ao inaudito pedido daquela possível alma penada:

- Então o que tu queres é que reze por ti!? Perguntou!

- Quero, respondeu a mesma voz no meio da escuridão.

Margarida convida os presentes a ajoelhar-se e já com a voz normalizada responde.

-Descansa que nós oraremos a Deus Nosso Senhor por ti.

Uma breve pausa antecipa mais uma prece que a bruxa inicia com voz mais suave:

-Sai alma cristã deste mundo em nome de Deus Padre todo poderoso que te criou e em nome de Jesus Espírito filho de Deus vivo que por ti padeceu e em nome do Espírito Santo que copiosamente se te comunicou. Apartai-vos deste corpo onde estais porque o Senhor te recebe no seu reino. Jesus ouve a minha oração e Sê meu amparo como és amparo dos santos, anjos e arcanjos, dos tronos e denominações, dos querubins e serafins, dos profetas dos santos apóstolos e dos evangelistas, dos santos mártires, confessores monges, religiosos e ermitãs, das santas virgens e esposas de Jesus Cristo e de todos os santos e santas de Deus o qual se digne dar-te lugar de descanso e gozes da paz eterna na cidade santa da Celestial Sião onde o louves por todos os séculos, amem.

A mulher entretanto serenou e recuperou o aspecto inicial de calma e tranquilidade.

Jorge olha Margarida e já não vê naquele corpo a figura transfigurada em que por momentos se havia transformado. Como começou também encerrou a sessão sem qualquer palavra. Uma espécie de terror pairava no ar e as duas mulheres rápido se aconchegavam no banco de trás do carro, enquanto a bruxa ia recolhendo os objectos do ritual.

Já na cama da improvisada pensão, Jorge não conseguia conciliar o sono. Na sua mente desenha-se em retrospectiva as imagens mais marcantes do seu passado religioso Baptismo, comunhão solene, o Santo Crisma, as missas dominicais a que nunca faltava e também a sua fé profunda nas doutrinas cristãs. Tudo questionado nesta noite de exorcismo. Como classificar e aceitar estas práticas religiosas que a sua igreja não rejeita mas é extremamente cuidadosa procurando sempre excluir todos os factores psicológicos e fisiológicos antes de se pronunciar sobre um caso de possessão. Poderia então sem o perigo de pecar contra os dogmas da sua fé participar nestes actos correndo o risco de que o contacto com esta realidade pudessem de algum modo alterar todo o conceito doutrinário que adquiriu ao longo da vida!?

Longe estava o estudante de saber que as suas angústias foram já as angústias de celebres pensadores que pretenderam resolver o insolúvel enigma da morte e da vida no além. Homens de ciência, debruçaram-se sobre os mistérios da e da morte mas nenhum deles chegou até hoje a qualquer conclusão. As hipóteses são muitas mas nunca passaram disso mesmo, meras hipóteses. Ninguém poderá afirmar em boa verdade que as nossas personalidades passam para outra existência ou esfera, como também ninguém pode afirmar cientificamente existir qualquer comunicação com formas de vida extra terrena, com os mortos. Ninguém sabe se no último momento, todos os elementos que formam a nossa personalidade se desintegram ou conseguem sobreviver à morte do corpo. Nesta última possibilidade podia ser possível que a pessoa tentasse contactar com os vivos de alguma forma. Ou será que cabe, por desígnio divino, a alguns mortais esse privilégio de estabelecer contacto com entidades conhecidas e desconhecidas? Não se sabe mas uma verdade é certa; algo existe que condiciona a vida e a morte. Ninguém conseguiu até hoje sobrepor-se aos desígnios do destino que continua a ser sumo nesta matéria.

Todas estas conjecturas afloram ao cérebro do estudante e haveriam de permanecer ali eternamente sem respostas adequadas.

Adormeceu já por volta da quatro da manhã mas o sono transformou-se em horrível pesadelo. No seu subconsciente ganham forma cenas de cemitérios com campas profanadas, de mortos a surgir da terra de corpos decompostos e esfarrapadas vestimentas bramindo espadas que iam decepando os esqueletos uns dos outros. Das cavernas oculares das caveiras surge o mesmo brilho de lume que estalara nos olhos da bruxa. O seu corpo meio inconsciente treme e um suor gelado corre-lhe por todo o corpo. A cara de bode do diabo toma forma de visão sinistra onde os olhos esbugalhados parecem ir saltar das órbitas e uma gargalhada besta acompanha a dolorosa aparição. Acorda sobressaltado e exausto e só muito mais tarde conseguiu serenar.

-É Só o diabo!

Esta frase do taberneiro acorda na sua mente com sabor a mentira. Ninguém é só o diabo e no entanto o Pontes tinha-o afirmado sabendo bem que alguma coisa estranha e misteriosa se esconde por trás daquela carcaça disforme e feia ou não estaria a pensar em toda a dimensão do significado da palavra!? Diabo pressupõe uma carga mitológica de tal amplitude que Jorge duvida ser o taberneiro capaz de compreender.

Debaixo de um calor que prometia avançar ao longo do dia dirigiu-se a Fontão onde já Margarida o esperava junto do táxi. O ambiente rural da quinta manifestava-se num bando de galinhas que despreocupadamente esgravatavam a terra.

O carro partiu em direcção a Mansores aldeia de um concelho vizinho. Umas duas centenas de casas rurais encravadas junto ao rio constituíam a totalidade do povoado que indiciava um certo abandono do progresso. O táxi avança cauteloso por uma rua estreita e poucos metros à frente aparece uma mulher aflita a indicar ser ali o local de paragem.

-Bom dia Guidinha julguei que ainda demorava!

-Vim logo que pode, o que tem de ser feito faz-se o mais depressa possível, ela está calma!?

-Quando sai de casa estava, mas tem sido um tormento. Todos os dias ao meio-dia em ponto cai para o chão como morta, falam pessoas nela, está só pele e osso a coitadinha.

Chegaram a uma casa de lavoura onde apetrechos agrícolas se espalhavam por uma vasta área. A mulher subiu lesta a escada de pedra que levavam ao primeiro andar da habitação.

-Venham por aqui, disse ela indicando uma porta que conduzia a uma sala.

-Ela está ali no quarto!

-Deixe-a estar, primeiro tratamos da casa e depois tratamos dela, disse a bruxa.

-Descruzar pernas e braços e silêncio, aqui quem fala sou eu aconteça o que acontecer!

O medo voltou a estar-se na cara dos presentes e o corpo da mulher estremeceu ao ouvir as palavras de Margarida cuja voz já não era suave mas agreste como de homem ou animal bravio. O próprio rosto tinha já sofrido alterações e perdera a normalidade de há poucos minutos atrás.

Levantou o crucifixo que segurava nas mãos à altura da cabeça e com voz rouca iniciou o exorcismo:

-Eis a cruz do Senhor. Fugi, fugi, ausentai-vos inimigos da natureza humana.

Eu vos esconjuro em nome de Jesus, Maria e José, Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus.

Eis aqui a cruz de Nosso senhor Jesus Cristo. Fugi partes inimigas que venceu o Leão da tribo de Judã e da raça de David. Aleluia, Aleluia, Aleluia, exaltado seja o senhor, nos abençoe, nos guarde e nos mostre a Sua divina face, se vire para nós e nos mostre o Seu divino rosto e se compadeça de nós. O rei David veio em paz, assim como Jesus se fez Homem e habitou entre nós e nasceu de Santa Maria Virgem pela sua infinita misericórdia. Santos Apóstolos, bem aventurados do Senhor, rogai-lhe que me valha a mim para que eu possa destruir tudo quanto aqui foi feito. S João, S.Mateus, S Lucas, eu vos rogo que vos digneis livrar-nos e conservar-nos livres de todos os acontecimentos. Tudo esperamos de quem vive e reina com o Padre e Espírito Santo, por todos os séculos dos séculos. Amem

Sucedem-se uns breves segundos de pausa silenciosa em que parece meditar e logo reinicia as preces:

Jesus, Jesus, Jesus a vossa paz e a vossa virtude e Paixão, o sinal da cruz a inteireza da bem-aventurada Maria Virgem, a bênção dos santos escolhidos de Deus, o titulo de Salvador nosso na cruz, Jesus de Nazaré+e rei dos Judeus, seja triunfável hoje e todos os dias entre os meus inimigos visíveis e invisíveis, contra todos os perigos da nossa vida e do nosso corpo em todo o tempo e lugar. Eu terei o sumo gosto e alegria em Deus meu Salvador.

Jesus, Jesus, Jesus se-de por nós Jesus. Jesus Criador e Compreendedor, Jesus do Universo porá os maus sobre o inferno e impedirá que o demónio atormente as sua criaturas. Jesus filho de Maria, Salvador do Mundo pelos merecimentos da bem-aventurada Maria Virgem e dos seus Santos e Anjos, Apóstolos, mártires, confessores e das virgens, pois o Senhor seja contigo para que te defenda e esteja dentro de ti, para que te conserve e te conduza e acompanhe e guarde e esteja sobre ti para que te abençoe o qual vive e reina em perfeita unidade com o Padre e Espírito Santo pelos séculos dos séculos. Amem.

A bênção de Deus Omnipotente, Padre Filho e Espírito Santo, desça sobre nós e permaneça continuamente. Virgem santíssima Nossa Senhora do Amparo, eu, o maior dos pecadores, vos peço que rogueis ao vosso amado Filho que quebre todas as forças ao demónio para que jamais possa atormentar esta casa e esta criatura. Dou fim a esta santa oração e terão fim as moléstias pela bichação dos espíritos malignos.

O silêncio é total, de olhos fechados a bruxa ergue as mãos numa atitude de agradecimento e recita mais uma oração:

-Senhor meu Jesus Cristo dou-vos infinitas graças, pois, pelos merecimentos da Vossa Paixão Santíssima, do Vosso precioso sangue e por Vossa vontade infinita, vos dignastes livrar-me do demónio e dos seus malefícios. Assim vos peço e suplico agora, vos digneis preservar-me, guardar-me para que o demónio de agora em diante, não possa jamais molestar-me de modo algum, pois eu quero viver e morrer debaixo da protecção do Vosso Santíssimo nome. Amem.

Reza um Pai-nosso e uma Avé Maria.

Terminada a oração final Margarida pede à mulher que traga a rapariga doente.

Quem aparece do quarto é uma mulher alta e muito magra de olhos azuis apagados nas profundas covas cintadas de um violeta impressionante. O seu olhar perde-se no aposento sem se quedar em nenhum dos presentes como se morto e indiferente à realidade que a cerca. A bruxa pega-lhe nas mãos e arrasta-a para perto de si. Coloca-se por trás da rapariga e põe-lhe a mão esquerda sobre o ombro. Com a mão direita retira do bolso da saia uma chave de proporções médias. Puxa a criatura para si e vira-a de frente perguntando como se chama. Num sussurro abafado ouve-se a palavra Joaquina.

A bruxa encosta a chave ao peito da mulher ao mesmo tempo que inicia mais uma prática:

-O Senhor lance sobre ti Joaquina, a sua santíssima bênção e o seu santíssimo poder para que te dê a virtude efeicaz, para que toda a morada ou porta por onde entra Satanás, por ti seja fechada e jamais os demónios e seus aliados por ela possam entrar. Abençoada sejas em nome do Padre e do Filho e do Espírito Santo. Amem

Jesus seja comigo. Deus omnipotente, que do seio do Eterno Pai vistes ao Mundo para salvação dos homens, dignai-vos pois Senhor, de por preceito ao demónio ou demónios para que eles não tenham, mais o poder de entrar nesta morada. Seja fechada esta porta assim como Pedro fecha as portas do Céu às almas que lá querem entrar sem que primeiro expiem as suas faltas. Dignai-vos Senhor permitir que Pedro venha do Céu à terra fechar a morada onde os malditos demónios querem entrar. Pois eu Margarida, em vosso Santíssimo nome ponho preceito a este espírito do mal para que desde esta hora e para o futuro, não possam mais fazer morada no corpo desta rapariga, que lhe será fechada esta porta perpetuamente, assim como lhe será fechada a do reino dos espíritos puros. Amem

Retirando água benzida de uma garrafa vai espargindo a rapariga e pronuncia uma bênção.

-Em nome do Pai do Filho e do Espírito Santo!

Escreve o nome de Satanás num papel e chega-lhe o fogo enquanto cita nova oração:

-Desaparece Satanás, vai-te assim como o fumo da chaminé!

Ouviu-se um grito na sala e a rapariga caiu inanimada.

-Deite-a na cama, precisa de descansar, vai ficar boa!

A bruxa selou assim o exorcismo e despediu-se da mulher sem mais comentários.

Regressaram a Fontão sem falar e mal entraram na quinta apareceu o marido da bruxa com um recado urgente. Um homem das amizades do casal e vizinho acabara de entrar em agonia. O pedido correu célere para que Margarida assistisse aos últimos momentos do amigo. O carro mal chegou a parar e logo arrancou para o centro da aldeia onde morava o moribundo.

Uma mulher apareceu à porta da habitação com os olhos marejados de lágrimas informou a Bruxa da situação:

-O Justino está no fim coitadinho!

Um homem aparentando ter entrado já na casa dos oitenta quem se debatia desesperadamente com a morte. Era um a luta desigual e o suor corria-lhe pela testa num ardimento de febre. Os olhos bailavam inquietos ao fundo de duas cavernas já sem ver. A respiração ofegante e apressada fazia crer que a todo o momento aquela luta teria um fim.

Margarida aproximou-se do doente e chamou-o pelo nome:

-Justino, Justino!

Não houve resposta, o corpo quase sem vida era só um coração a teimar extinguir-se batendo ainda as últimas pancadas da vida. Breves foram os instantes desta agonia e a calma regressou ao corpo minado pela doença. Um estremecimento convulsivo e a paz desceu sobre o Justino. A bruxa assumiu então uma postura eclesiástica e com a habitual voz cheia de firmeza inicia a encomenda da alma deste pobre a Deus:

-Jesus meu Redentor, em vossas mãos deposito a alma deste servo para que vós Salvador do Mundo a leveis para o Céu na companhia dos anjos. Jesus, Jesus, Jesus seja contigo para que te defenda, Jesus esteja na tua alma para que te assente, Jesus esteja diante de ti para que te guie, Jesus esteja na tua presença para que te guarde. Jesus reina, Jesus domina, Jesus de todo o mal te defenda. Esta é a cruz do divino Redentor. Fugi, fugi, ausentai-vos inimigos das almas remidas com o sangue preciosíssimo de Jesus Cristo. Jesus, Jesus, Jesus!

Maria mãe de graça, mãe de misericórdia defendei-o do inimigo desta hora. Não o desampareis Senhora, rogai por este vosso servo Justino a vosso muito amado filho, para com vossa intercessão, sai livre do perigo dos seus inimigos e suas tentações.

Jesus, Jesus, Jesus recebei a alma deste vosso servo Justino, olhai com olhos de compaixão, abri-lhe os braços, amparai-o senhor com a vossa misericórdia pois é feitura das vossas mãos e a sua alma imagem vossa.

Jesus, Jesus, Jesus de vós meu Deus lhe virá o remédio, não lhe negueis a vossa graça pois eu Margarida Vos chamo, ó Deus poderoso para que venhas receber esta alma nos Vossos Santíssimos braços. Vinde Senhor, vinde em seu socorro assim como viste em socorro de Cipriano nas batalhas com Lúcifer.

Jesus, Jesus, Jesus creio Senhor firmemente em tudo quanto manda crer a igreja católica, apostólica Romana, fortalecei pois a alma deste vosso servo Justino. Vinde Jesus ó vida verdadeira de todas as lamas. Livrai-o Senhor dos seus inimigos como médico soberano curare todas as suas enfermidades. Purificai-o Senhor com o Vosso precioso sangue pois prostrado a Vossos pés clama pela Vossa misericórdia.

Ó Maria Santíssima mãe de nosso senhor, agora é tempo de mostrardes que sois mãe de todos nós. Socorrei-o nesta hora tão arriscada pois em Vossas mãos temos posto a importante causa da nossa salvação. Tirai-o deste conflito em que se vê desta agonia e ponde-lhe a alma na presença de Vosso amado filho. Jesus salva-o, socorre-o, ampara-o. Ó meu Deus meu Senhor tende compaixão de todos nós, livrai-nos de todos os males, assim como o cedro deseja a água das fontes também vos deseja a minha alma. Quando chamareis por mim!? Oiçam já meus ouvidos da vossa sagrada boca aquelas palavras:

-Entra e vem alma minha no gozo do teu Senhor!

Jesus, Jesus, Jesus em Vossas mãos, Deus meu, ofereço e ponho o meu espírito que justo é que torna a Vós o que de Vós recebi. Sede pois por nossa alma, justo e salvai-a das trevas. Defendei-a senhor de todos os combates para que eternamente cante no Céu a vossa misericórdia.

Misericórdia dulcíssimo Jesus, misericórdia amabilíssimo Jesus, misericórdia e perdão para todos os Vossos filhos pelos quais sofrestes na cruz. É pois justo que nos salvemos. Amem

Margarida dirige-se à esposa do falecido e com aquela certeza que a caracteriza disse-lhe ao ouvido:

-O Justino está no Céu!

Desceu as escadas de pedra visivelmente cansada e caminhou sozinha em direcção à quinta de Fontão.

Jorge exausto do corpo e da mente entra no quarto da pensão quando um manto de silêncio cobre a aldeia e só a melodia dos Raros e o ladrar de cães quebram a monotonia do entardecer. Tudo é paz e tranquilidade quando a natureza se prepara para adormecer e os homens cansados vão repousar nas camas.

Tudo parece difícil de compreender ao estudante que perturbado vai

refazendo as ideias e tirando algumas conclusões acerca de tudo o que presenciou até hoje.

-Como é possível coexistirem estas práticas com sentimentos religiosos e de fé tão enraizadas no povo!?

Se porventura alguma vez desse conta aos amigos da cidade o que até aqui presenciou, cairia no ridículo absoluto.

Passa água fria na cara tentando acordar do que lhe parece um sonho. Incapaz de definir as próprias emoções, sente-se frustrado quando finalmente se deixa vencer pelo sono.

Passaram mais uns dias sem que tivesse acontecido qualquer solicitação dos trabalhos da bruxa. Deambulou pela aldeia meditando sobre os acontecimentos sem encontrar explicação para a desordem em que se tornaram as suas ideias. Tudo o que de convicção existiu no seu espírito, aparecia agora questionado pela existência de crendices que jamais julgou poderem existir. Dúvidas são o que paira na sua mente perturbada incapaz de um raciocínio lógico, pragmático ou objectivo. O povo tem mistérios insondáveis, cumplicidades colectivas que criam este misticismo insolúvel, doentio e muitas vezes perigoso. A verdade, ninguém a sabe e jamais alguém a conseguira saber mas a procura dela neste pântano terreno, é a grande responsável por estes sentimentos paralelos, desconexos e brutais que muitas vezes conduzem à infelicidade e até à própria morte.

A manhã rompe em Fontão com um sol ainda verde a tentar iluminar a aldeia que já mexe nas tarefas do campo.

Na quinta onde Jorge acaba de chegar, já Margarida trata das lides agrícolas alimentando o gado. Range o portão de ferro da entrada e aparece a correr a Rosa uma amiga de Margarida.

-Parece que não tens palha na cama mulher, se ao menos tivesses gado para alimentar até se compreendia, ora assim!...

-É um recado que trago para si, dizem que é urgente! Telefonaram do Porto!...

A Rosa é a dona da pequena Mercearia que tem instalado o posto dos correios e o único telefone da aldeia.

-É um caso um bocado sério…parece que um rapaz se esbarrou com uma mota e está para lá no hospital há mais de um Mês sem dar sinal de vida! É filho de gente importante que não olha a meios o que quer é que a senhora faça o que tem a fazer!

-E o que foi que você lhe disse mulher! Perguntou a bruxa.

-Que viesse logo à noite por volta das nove e fiquei de esperar à beira da Igreja!

-Fez bem Rosa, vamos ao S. Domingos que é advogado de Deus! Ele há-de interceder pela criatura!A Rosa saiu apressada e foi certamente confirmar o acto marcado para essa noite.

Pouco passava das oito e meia e já o táxi estacionava no pequeno largo de fronte d templo. Ali já a Rosa acompanhada pelo doutor e uma senhora de aspecto fidalgo o esperava e mais adiante um potente carro com um senhor ao volante, parecia estar também a aguardar a chegada de Margarida.

Jorge olhava para as duas figuras desconhecidas tentando lembrar-se de onde já tinha visto aquelas caras. A figura do homem, mais que a da mulher era-lhe familiar e iria jurar já os ter visto em qualquer parte. Após alguns minutos rebuscando nos seus arquivos fisiológicos consegui localizar as duas pessoas. Eram figuras públicas sem sombra de dúvida mas o estudante tentou disfarçar o espanto que lhe causou a constatação dessa nova realidade muito embora questionasse sem êxito a razão lógica que os trouxera a Fontão. Conhecendo como conhecia já a universalidade dos clientes da bruxa, sentiu-se espantado e sobressaltado de espírito por ver ali pessoas tão importantes e famosas. Acabava de penetrar no mais complexo dos labirintos da vida e dali jamais sairia com algumas certezas apenas com cada vez mais dúvidas e muitas perguntas que nunca obteriam resposta. O Mundo estranho que se lhe abre agora à frente dos olhos, há-de fechar-se irremediavelmente tornando este acontecimento irreal e apenas mais uma das suas muitas alucinações.

Entraram os quatro no táxi menos o cavalheiro que seguiu atrás no carro de luxo.

-S. Domingos é um mote que desafia o céu e tem no alto uma capelinha, rodeada por árvores, que emerge na noite majestosa e branca.

Este é o local que a bruxa escolheu para interceder pela vítima de coma profundo. O porquê de ser aqui, só Margarida é quem sabe e difícil seria obter dela qualquer explicação.

O táxi estaciona ao fundo de uma comprida avenida e logo atrás pára a viatura com o tal senhor. Margarida sai com a Rosa e dirigem-se por uma rua lateral até um crematório onde dezenas de velas ardem sozinhas. Este parece ser um espaço reservado para este fim específico. Dá a ideia que muitas outras bruxas e bruxos utilizam este local para os mais variados actos de que são protagonistas.

Margarida coloca no rebordo do espaço alinhando-as no queimador, vinte e uma velas de cera que Jorge fica a saber tratar-se da correspondência à idade do doente, vinte e um anos.

Agora chamou a senhora e o senhor pedindo-lhes uma fotografia do rapaz e o respectivo nome.

-Bruno Miguel respondeu a mulher visivelmente emocionada e medrosa.

-Vamos então fiquem aqui em frente à porta e guardem silêncio!

Já dentro do pequeno adro, a bruxa inicia a prática que trouxera de tão longe:

-Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Senhor meu Deus Pai omnipotente por quem todas as coisa foram feitas, as visíveis e as não visíveis. Tu que decides o principio, o meio e o fim, Tu que coordenas e alinhas todo o universo, Tu que vês sem ser visto, Tu que nos enviaste o teu próprio filho a fim de remir os pecados do mundo, tu que tudo ouves e que tudo sabes, escuta a minha oração.

Pai celeste, por intercessão do teu muito amado filho Jesus Cristo, abre as portas do Teu Reino àqueles que buscam a tua luz. Senhor Jesus fonte de toda a vida misericordioso, amabilíssimo Pai de todos os Santos, Rei do sofredores, Glória das Glórias, bondade das bondades, Tu a quem o mundo glorifica e enaltece, Tu que deténs o poder sobre a vida e a morte, Tu que amas os teus filhos com amor sublime e eterno, Tu que nunca os abandonas um só momento, vem em meu auxilio, vem escutar as minhas preces criatura divina, vem socorrer o Bruno Miguel que regressou ao Limbo e luta desesperadamente com a morte que Tu ainda não decidistes, vem em seu socorro Senhor Jesus, abre-lhe os caminhos de regresso àqueles que ansiosamente o esperam. Tu que dissestes: Eu sou a verdade e a vida, tem misericórdia de nós Senhor. Ele que recebeu o baptismo da Tua Santa Igreja espera aflito que o socorras nesta hora de agonia.

S. Domingos, senhor dos milagres, advogado de Cristo, ajuda o nosso irmão Bruno Miguel, trá-lo á minha presença em nome do Pai do Filho e do Espírito Santo. Amem

Medita ajoelhada segurando a foto nas duas mãos parecendo querer rasgar o Céu com os seus apelos. Levanta-se e caminha em volta da capela balbuciando uma prece quase imperceptível:

-Ó meu Deus e meu Senhor, compadecei-vos desta criatura vossa. Ó Deus de Abraão, ó Deus de Isaac, ó Deus de Jacob, compadecei-vos de Nuno Miguel. Enviai em seu socorro S. Domingos, que lhe dê saúde e o defenda das misérias da carne e do espírito. E vós S. Domingos, defendei e curai este servo do Senhor que vos mereceste dele ser bem-aventurado e a graça de livrar as criaturas de todos os males e perigos.

Eis aqui a cruz do Senhor que vence e reina! Ó salvador do mundo salvai-o, ajudai-me vós que pelo Vosso sangue e pela Vossa cruz me remistes, salvai-o e curai-o de todas as moléstias do corpo e da alma. Eu Margarida vos peço tudo isso por quantos milagres e passadas destes sobre a terra enquanto homem. Ó Deus Santo, ó Deus forte, ó Deus imortal, tende misericórdia de nós.

Cruz de Cristo salvai-o, cruz de Cristo protegei-o, cruz de Cristo defendei-o em nome do Pai do Filho e do Espírito Santo. Amem.

Margarida pede aos presentes que se ajoelhem e citem o Credo e uma Salve Rainha a Nossa Senhora e fica ali ajoelhada em frente da capela por largos minutos.

Visivelmente cansada, lança um último olhar pela paisagem encaminhando-se para o táxi. Da sua boca não sai nem mais uma palavra. Encerrada em si própria, só se lhe nota no rosto uma serenidade que impressiona o estudante absorto em pensamentos confusos julgando ter sido este acto apenas uma espécie de encomenda da alma de Bruno Miguem ao Senhor. Não se apercebeu de ter acontecido ali qualquer acção tão extraordinária e capaz de mover as montanhas que separam ou condicionam a vida e a morte esse poder que só Deus tem. Nestas conjecturas ia deitando o olhar no alcatrão iluminado pelos faróis do automóvel que avançava indiferente aos silêncios que transportava sem notar que um telemóvel vibrava na carteira da senhora e trazia a mensagem que marcaria definitivamente a sua existência e haveria de fazer luz no seu confuso espírito:

Ás vinte e três horas e quarenta e cinco, desse dia dezassete de Agosto de mil, novecentos e noventa e oito, o Bruno Miguel saíra do como profundo em que se encontrava à mais de quarenta dias.

Jorge consulta o relógio e verifica que tudo acontecera à mesma hora em que a bruxa fizera as orações. Foi a chave do puzzle esta revelação. Agora compreendia finalmente a que se devem os milagres de Margarida. Tudo tão simples, demasiado simples para ser percebido à primeira vista e antes do raciocínio divagar por probabilidades tão remotas mas lógicas e compreensíveis.

Fé! É tudo uma questão de crença e fé!

A bruxa, esta mulher calada que dormita no banco da frente do táxi, não é mais que um poço de credulidade e de fé. Se ela move montanhas, provavelmente também moverá a vontade dos Deuses e dos Santos. Julga que a ouvem, acredita cegamente nos seus poderes e assim consegue milagres. Tão generosas serão as Entidades Divinas que cedem aos pedidos desta mulher simples e analfabeta.

Então o caminho da Verdade é o mais curto de todos os caminhos terrenos, pensa o estudante.

O carro parou a pedido da mulher que quis ali mesmo dar a noticia ao marido. Ela tinha a rolar pelas faces lágrimas gordas e ele olhava espantado e incrédulo a serenidade do rosto de Margarida que parecia já ter recebido a alegre novidade há muito tempo. Quis beijá-la mas a Rosa impedi-o aconselhando silêncio.

Jorge olhava-os a todos sem qualquer espanto reflectido nos olhos. Já nada neste mundo o poderá sobressaltar depois da conclusão a que chegou

Tudo uma questão de fé!

A viagem continuou sem mais palavras como sempre acontecia como se existisse um prévio pacto de silêncio a que todos se sentissem obrigados a obedecer.

Agosto permanece quente em Fontão. Nos campos que cercam quase toda a aldeia nada mexe nem mesmo a habitual brisa dos fins de tarde. É estio profundo que provoca um encantamento silencioso a esta terra perdida no sopé do monte e a beijar o Douro.

Sentada nas escadas de granito que uma ramada ensombreia, Margarida protege-se do calor sufocante e com um lenço vai ventilando a cara onde umas gotas de suor aparecem. A tarde vai avançada mas a noite demorará a chegar.

Tudo está já preparado para acudir a alguém que padece de doença incurável lá para os lados de Louredo. A Rosa combinou tudo e informou a bruxa de que a paciente regressara a casa desenganada pela medicina. Tudo se resumirá a uma questão de tempo que o colapso será inevitável. Telefonaram à procura de um milagre última esperança de quem vê sofrer os seus familiares.

Jorge foi informado de tudo e mais uma vez se apoderou dele o cepticismo que o tinha acompanhado ao longo da vida.

-Em que tipo de trabalhos se vai meter Margarida!? Como pode esta mulher rural desafiar a medicina convencional ao ponto de deixar pairar nas pessoas uma esperança que todos sabem ser vã!?

Mesmo aquela fé que pode existir na mulher não será suficiente para vencer um terrível cancro. Quando a doença se torna irremediável, ninguém consegue de forma alguma inverter o seu progresso degenerativo.

Que poder conserva dentro de si esta vidente que lhe confere tamanha certeza no êxito das acções que pratica!?

Ali sentada nas escadas, vai lançando o olhar tranquilo pelos campos crestados pelo sol enquanto escuta a persistente melodia das cigarras. Naquele pensamento fechado, ninguém conseguirá penetrar jamais. Quem será esta mulher!? Que poderes ocultos maneja impunemente sem parecer uma santa!? Que espécie de Entidades contacta afim de obter as garantias que põe nos trabalhos que faz!?

Só silencio recbe o estudante às suas muitas interrogações e no entanto assiste a este jogo que todos aceitam sem conhecer as regras e sem o saber jogar. Estranho jogo em que quem dá foge e quem recebe não fala. Será então apenas uma questão de fé ou haverá algum poder divino materializado nas simples orações que a bruxa soletra solenemente!? Possivelmente será muito mais que uma questão de fé, algo que é comungado por todos numa mística de identidade celestial suprema, o ver mais além que só aos simples é permitido conseguir, o utilizar das referencias matrizes de um passado milenar que constitui a riqueza do conhecimento que só esta gente vai aproveitando. Não há explicação para tais comportamentos que são autenticos e constituem uma realidade encoberta.

Nunca será fácil penetrar neste mundo de misticismo e mistério onde a alma se eleva de forma natural e confere as certezas a estes actos que praticam. Crenças enraizadas na cultura de um povo sem ser seu exclusivo pois é também assumida da mesma forma secreta por gente de formação superior e dos mais variados extractos sociais. Possivelmente o ser humano é mais que a matéria que estamos habituados a ver e a conhecer mas também o expoente de componente espiritual que nunca dominou e o angustia. Não é conhecedor da sua origem como não sabe o seu futuro o que constitui o maior factor de perturbação da sua consciência viva. Desalentado, procura nos actos sagrados, nas práticas adivinhatórias, nos rituais de magia as respostas para as suas inquietações.

O táxi deixou Fontão em direcção a Louredo. Jorge contempla o rosto de Margarida que inspira paz e confiança. Rosto largo de traços bem definidos a enfeitar uma cabeça de cabelos longos e negros como as noites de Fontão a cair sobre os ombros, ligeiramente presos com uma fita que permite ver as arrecadas doiradas que se desprendem das orelhas.

-Quem será esta mulher!?

-Uma santa ou uma bruxa!?

Ninguém sabe, apenas que é uma mulher do campo que cava a terra, que trata dos animais e de toda a lide da quinta.

Chegam finalmente a Louredo e param junto a uma casa de arquitectura engraçada. Á porta estava uma mulher à espera. A comitiva entrou e viu sentada no sofá da sala uma senhora com as pernas cobertas por um cobertor que não aparentava sinais de estado terminal embora um olhar mais atento constaste a ausência de cabeleira e uma certa palidez no rosto. Olhou-os a todos com uns olhos negros onde o brilho da vida teimava em morar. Olhos que mostravam uma tristeza infinita e procuravam a bruxa a pedir esperança.

-A senhora acredita em Deus Pai? Perguntou Margarida dirigindo-se à doente.

-Acredito, mas Ele abandonou-me! Disse magoada a senhora.

- Não, o nosso Pai do céu nunca abandona os seus filhos e é por isso que eu estou aqui! Tenha fé e reze comigo a oração que o Senhor nos ensinou!

Rezam um Pai-nosso ajoelhadas e a Bruxa tira de um bolso um crucifixo que mostra à doente e inicia uma invocação:

-Este é o filho de Deus, aquele que sofreu na cruz por todos nós. Quem acreditar Nele terá a vida eterna

Em nome do Pai, do filho e do Espírito Santo. Jesus Maria e José, eu Margarida, como criatura de Deus, feita à sua imagem e semelhança e remida com o seu generoso sangue, ponho preceito aos teus padecimentos assim como Jesus Cristo aos enfermos da Terra Santa e aos paralíticos de Sidónia, pois assim, eu Margarida Vos peço Senhor meu Jesus Cristo, que Vos compadeçais desta vossa serva. Não a deixeis Senhor sofrer mais a s atribulações da vida e lançai antes sobre ela, a Vossa Santíssima bênção. Eu direi, com autorização do teu e meu Senhor que cessem os teus padecimentos.

Amabilíssimo Senhor Jesus, verdadeiro Deus, que do seio do Eterno Pai Omnipotente fostes mandado ao mundo para remir os aflitos, soltar os encarcerados, congregar vagabundos, conduzir para as suas pátrias os peregrinos, pois eu Margarida Vos suplico Senhor, que conduzais esta enferma ao caminho da salvação e da saúde já ela está verdadeiramente arrependida.

Consolai, consolai Senhor os oprimidos e atribulados e dignai-vos livrar esta serva da moléstia de que está a padecer, da aflição e tribulação em que a vejo porque Vós recebestes de Deus Padre Todo poderoso, o género humano para o comparardes e, feito homem prodigiosamente nos comprastes o paraíso com o Vosso precioso sangue estabelecendo uma inteira paz entre os anjos e os homens.

Dignai-vos Senhor estabelecer em minha alma a paz para que esta Vossa serva e todos nós vivamos com alegria, livres de moléstias tanto do corpo como da alma. Meu Deus e meu Senhor, resplandeça pois a Vossa paz a Vossa misericórdia sobre mim e todos nós assim como praticastes com Isau tirando-lhe toda a aversão que tinha contra seu irmão Jscob, estendei Senhor Jesus Cristo, sobre esta Vossa serva, criatura Vossa, o Vosso braço e a Vossa graça e dignai-vos livrá-la de todos os que lhe têm ódio, como livrastes Abraão das mãos dos Chaldeus, seu filho Issac da consciência do sacrifício, José da tirania de seus irmãos, Noé do dilúvio Universal, Loth do incêndio de Sodoma,Moisés e Araão vossos servos e todo o povo de Israel do poder do Faraó e da escravidão do Egipto, David das mãos de Saul e do gigante Golias, Susana do crime e testemunho falso, Judith do suberbo e impuro Holofernes, Daniel da cova dos leões, os três mancebos Sidrath, Misach e Abdemago da fornalha ardente, Jonas do ventre da baleia, a filha de Cananea da vexação do demónio, Adão da pena do inferno, Pedro das ondas do mar e Paulo das prisões e dos cárceres. Assim amabilíssimo Senhor Jesus Cristo, filho de Deus vivo, atendei também ao meu pedido e vinde com presteza em meu socorro pela Vossa Encarnação e nascimento, pela fome, pela sede, pelo frio, pelo calor, pelos trabalhos e aflições, pelas salivas e bofetadas, pelos açoites e coroa de espinhos, pelos cravos fel e vinagre e pela cruel morte que Vós padecestes, pela lança que trespassou o vosso peito e pelas sete palavras que na cruz dissestes em primeiro lugar a Deus Padre Omnipotente: Perdoai-lhe Senhor que não sabem o que fazem. Depois ao bom ladrão que estava convosco na crucificação. Digo-te na verdade que hoje estarás comigo no Paraíso. Depois ao Pai: Heli, heli lamma sabactani. Depois a Vossa mãe: Mulher eis aqui o teu filho. Depois ao discípulo: Eis aqui a tua mãe mostrando que cuidavas dos Vossos amigos. Depois dissestes: Tenho sede porque desejavas a nossa salvação e das almas santas que estavam no Limbo. Depois a Vosso Pai: Nas Vossas mãos encomendo o meu espírito. E por fim exclamastes: Tudo está consumado porque estavam concluídos todos os Vossos trabalhos e dores. Dignai-Vos pois Senhor que desde esta hora por diante, jamais esta criatura sofra desta moléstia que tanto a mortifica e eu Vos rogo por todas estas causas e pela Vossa descida ao Limbo, pela Vossa Ressurreição gloriosa, pelas muitas consolações que destes aos Vossos discípulos, pela Vossa admirável ascensão, pela vinda do espírito, pelo tremendo dia do juízo como também por todos os benefícios que tenho recebido da Vossa bondade, porque Vós me criastes do nada e me concedestes a Vossa santa fé. Por tudo isso meu Redentor, meu Senhor Jesus Cristo, humildemente Vos peço que lanceis a Vossa bênção sobre esta criatura enferma. Meu Deus e meu Senhor compadecei-vos dela. Ó meu Deus de Abraão, ó Deus de Isaac e Deus de Jacob, compadecei-vos desta criatura Vossa serva, mandai-a para seu socorro o Vosso S. Miguel Arcanjo para que lhe dê saúde e a defenda desta miséria da carne e do espírito. E vós S. Miguel, Santo Arcanjo de Cristo, defendei e cuai esta serva do Senhor que vós mereceste do Senhor ser bem aventurado e o poder para livrar as criaturas de todos os perigos.

Eis aqui a cruz do Senhor que vence e reina. Ó Salvador do mundo, salvai-a. Salvador do mundo ajudai-me Vós pelo Vosso sangue e pela Vossa cruz que me remiu. Salvai-nos e curai-nos de todos os males e moléstias tanto do corpo como do espírito. Ó Deus Santo, ó Deus forte, ó Deus imortal tende misericórdia de nós. Cruz de Cristo salvai-nos, cruz de Cristo protegei-nos, cruz de Cristo defendei-me. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amem

Terminada esta oração Margarida coloca a mão direita sobre a fronte da doente, deita-lhe água benta na cabeça ao mesmo tempo que lhe diz:

-Confia, estás nas mãos do Senhor, Ele ouviu as minhas preces e nada de mal te vai acontecer!

A mulher marejada de lágrimas pegou nas mãos de Margarida e levou-as à boca num roçar de lábios que pareceu um beijo.

O táxi arranca em direcção a Fontão e em Louredo fica uma mulher a quem a bênção da bruxa limpou um grande mal e salvou de morte certa.

Cada vez mais perto do fim de Agosto, a paisagem campestre vai mudando de tons que agora são predominantemente de amarelos torrado, castanho e vermelho escuro. Os milhos de espigas arreganhadas ao último sol de verão, perderam o verde forte que condicionou a paisagem por algum tempo e são agora canas espetadas nos campos com folhagens trigueiras. Os choupos que marginam o pequeno curso de água que desce do monte, deixam cair as folhas amarelecidas sacudidos pelo vento. Tudo se adivinha nesta manhã húmida que nada tem a ver com a secura de alguns dias atrás. Respira-se já a nostalgia de Outono em Fontão onde já se calaram os ecos das romarias e o estoirar dos foguetes. Algumas ilusões ou morreram ou ficaram adiadas por mais um ano. Algumas vingaram no calor do verão e no próximo hão-de dar os frutos prometidos neste. É a vida simples desta terra muito embora os seus habitantes tenham alguma intervenção nos actos de sobrevivência, é a Deus que entregam a maior das responsabilidades. Fazem-no com a mesma certeza com que Margarida pratica os seus rituais sem qualquer sombra de dúvida. O céu dará o pão alimento da boca e do corpo, o mesmo céu dará a paz o alimento da alma. Se algumas vezes o tempo não permite colheitas fartas, aceitam com resignação natural a perda dessa fatia que pode vir a fazer falta.

- Faça-se a vontade do Senhor!

É esta a frase que se houve em tempos de ruvina e de tragédia. O consolo das mágoas que angustias aqui ninguém tem, está dentro daquelas quatro paredes de granito onde o musgo se agarra onde repousa o Sacrário do Senhor. Consta ser sítio de milagres de tantos que o povo já lhe perdeu a memória mas mesmo assim gratificados pela generosidade desta gente. Um presunto do melhor porco, quatro ou cinco salpicões, uma orelheira, um almude de vinho, uma rasa de milho ou até uma canada de azeite, são entregues à confraria para leiloar e o produto render em favor das festas aos santos.

Povo generoso que dá o que precisa mas que julga e sente que Deus lhes acrescenta o que fica.

As primeiras gotas de chuva visitam a terra num orvalhar medroso. Pingam os beirais das casas e dos canastros onde repousa o milho. Aproxima-se o Outono em cada partida de andorinha em cada abandonar de ninho pelas rolas migratórias. Tempo de partida das aves e dos emigrantes que teimaram em ficar mais tempo cedendo ao apelo da terra.

Hoje o estudante incumbiu-se de uma tarefa diferente. O seu pensamento aviva-lhe a imagem do velho diabo. Todos os dias o esperou nas ruas de Fontão mas ele nunca mais apareceu.

- Moro nos penedos dos mortos!

Tinha de saber toda a verdade e propôs-se subir o monte até ao local.

Subiu o morro com dificuldade e já perto deparou com dois enormes penedos onde julgou ter guarida o velho andrajoso. Mas nada o local estava deserto e só um lobo o contemplava em cima da pedra. Jorge estremeceu de medo por julgar que a fera o poderia atacar. O bicho rosnou uma ameaça mais parecido a um uivo lancinante que ecoou no espaço da serra. Era um som familiar ao estudante que logo se reportou ao quarto da Boavista àquela noite trágica e distante.

-É só o diabo!

Ganha significado a frase do taberneiro neste momento solene. Ninguém fala no diabo, ninguém quer falar no diabo e dizem que é ter sorte cruzar com ele duas vezes.

-Passam-se meses sem que apareça por aqui!

Jorge tenta perceber admitindo que se o bem existe representado por Margarida seria natural haver também alguém a representar o mal. Simples conjecturas de comparação ou forma ridícula de satisfazer a curiosidade inquietante que se apoderou dele.

Fitaram-se os dois por breves momentos, o lobo quieto e Jorge a iniciar a corrida monte abaixo aflito. Olhou mais uma vez para trás mas o nevoeiro cobria meia encosta transformando a serra numa nuvem cinzenta.

Margarida sentada no beiral da casa olha os campos agora solitários. Há nos seus olhos uma nostalgia que o tempo trouxe nos silêncios diferentes que geram inquietação nos corações dos lavradores. Esses novos cheiros, acres e macios amainaram as fainas e dão sossego às almas que já sonham com novas sementeiras. Tudo cicloso onde nada se altera e permanece fiel através do tempo mudando apenas as personagens que se vão movimentando neste palco rural. Talvez seja nisto em que Margarida pensa. No fundo ela é uma lavradeira que guarda as emoções dessa condição sem se poder libertar disso. Pensa no hoje, no ontem, no tempo em que lhe corria nas veias um sangue de juventude impulsivo que desconhecia as transformações da vida e do corpo e se lançava no mundo sem preocupações de maior. Abraçada à natureza, entristece com ela sem razão aparente. Também ela, reduzida à condição de simples mortal, se inquieta e perde nas encruzilhadas de um destino que desconhece e lhe vai pregando algumas partidas.

A Rosa veio com uma encomenda que a deixou abalada. Dentro de minutos partirá em socorro de alguém possesso algures para os lados da Régua.

Quando Jorge chega à quinta de Fontão, estranha não ver ninguém por ali. Aproximou-se mais da casa e começou a ouvir a voz de Margarida em oração:

-Sempre esperei este momento de fraqueza Senhor! Sempre roguei a Vosso Filho Jesus Cristo, para afastar de mim este cálice. Como na hora da sua Santa morte, Ele Vos pediu com o coração desfeito pelos pecados do mundo, também eu Vos peço Senhor meu que não me abandoneis nesta hora tão difícil para mim. Dai-me mais uma vez forças Senhor para enfrentar o demónio que só Vos Rei de todo o Universo podereis vencer. Em nome de Vossa Santíssima Mãe, Vos peço e imploro que mandeis em meu auxílio os Teus exércitos celestiais. Que soem as trombetas do Senhor por toda a terra, que tremam os mares, que trema todo o universo porque o Senhor é Rei e salvador do mundo. Ninguém é mais forte que o Senhor meu Deus. Ele que sofreu os padecimentos do calvário ouvirá as minhas preces e virá em meu auxílio. Chamo-te Pai Celeste, chamo-te Santíssima Trindade, chamo-te Divino Espírito Santo. Ámen

Margarida aparece ao cimo das escadas. Nas mãos não se lhe vê a habitual cesta dos preparos e em vez dela, trás um crucifixo de tamanho invulgar. Desce devagar e o estudante repara num ar de preocupação naquele rosto de mulher habituado a serenar as aflições dos outros.

O táxi chegou e foi buscar a Rosa à beira da Igreja. A viagem foi longa, feita em silêncio que nem a Rosa nem Margarida ousaram qualquer comentário.

Chegaram a uma localidade denominada Arreigada e mesmo às portas de uma capela erigida a uma centena de metros do centro da aldeia onde já algumas pessoas aguardavam a chegada da bruxa.

-Bom dia senhor padre, a sua bênção!

-Viva Margarida estão todos à tua espera!

-Então o que é que se passa aqui senhor abade!?

-É um rapazito está possesso e nada resultou até agora. Estão quatro homens a segurá-lo pois está muito agitado, coisa assim nunca me passou pelas mãos!

-Eu vou entrar e acalma-lo, depois o senhor entra e começa a oração!

-Assim seja Margarida, vamos a isso!

A bruxa avança para a entrada da capela e já na soleira da porta o doente entra em altos roncos estrebuchando com animal ferido. Os homens que o seguram, sustentam cordas que passam em volta do tronco da criatura. O possesso espuma abundantemente da boca, os olhos desorbitados estalam numa cara transfigurada que ostenta um riso ignóbil. A cena é verdadeiramente dantesca e desumana. Como é possível que uma criatura tão frágil adquira semelhante força.

Jorge surpreende-se mais uma vez ao retroceder a estas formas de primitivismo que julgava já não existirem. O seu cérebro recusa-se a admitir como verdadeira as cenas que está a viver neste momento. Só pode ser um sonho! As grossas gotas de suor que lhe escorrem da testa, fazem-no recuperar a realidade brutal que tem pela frente. Sacode a cabeça como se quisesse afastar esta visão macabra e no entanto persistem as causas no quadro que tem pela frente e pronuncia a frase que revela o limite do seu pensamento:

-Não é possível!

Margarida aproxima-se do rapaz que se torna ainda mais agressivo empunhando o crucifixo determinada em por fim às causas diabólicas que julga ali existirem:

-Em nome do Pai do Filho e do Espírito Santo. Em nome de S. Bartolomeu, de Santo Agostinho, de S. Caetano, de Santo André Avelino, eu te renego anjo mau que pretendes introduzir-te em mim e perverter-me. Pelo poder da cruz de Cristo, pelo poder de suas divinas chagas, eu te esconjuro maldito para que não possas peturbar a minha alma sossegada. Ámen

A bruxa citou esta oração três vezes ao mesmo tempo que ia fazendo o sinal da crua sobre o peito. O padre ia espargindo água benta sobre o possesso que manifestamente se tornou ainda mais violento tornando difícil aos quatro homens segurá-lo e começa a esconjuração:

CONTINUA

Manuel Araujo da Cunha
Enviado por Manuel Araujo da Cunha em 16/11/2006
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