Andrezza Iriri (Romance, Cap. I)

Com certeza algo ainda me surpreende

O barulho da descarga no vaso sanitário. Como transcrevê-lo com o uso da linguagem escrita? Um escritor, mas escritor mesmo, diria que isso seria desnecessário. Uma bobagem. Mas ele não era escritor. Assim podia continuar ouvindo o barulho e olhando a água escorrer pelas paredes do vaso. Sem precisar reproduzi-lo através de palavras ou outros sinais gráficos. E sem se preocupar também em acionar a descarga, para, aproveitando o tempo, se dirigir logo ao espelho sobre o lavatório e ajeitar o cabelo, usar o desodorante nas axilas ou simplesmente ficar fitando o próprio rosto, como em todas as manhãs, em busca daquilo que não iria encontrar.

Quando o barulho cessou, ele já não era o mesmo diante do espelho. Ao qual finalmente se dirigira. Não pensava realmente em nada. Lembrou-se de que isso é que seria “meditar”. Não pensava nem nela, em quem estivera pensando, embora inconscientemente, enquanto ouvia o barulho da descarga e via as águas escorrendo pelas paredes do vaso.

Nem pentes ou escovas no armário. Para quê? Os poucos cabelos podiam ser rapidamente ajeitados com os próprios dedos, depois de levemente massageados com óleo de amêndoa. Era assim há anos, quando começaram a rarear os cabelos. Ninguém notava na rua que ele não usava mais pentes ou escovas. O pente com a marca do clube pelo qual torcia. O que também não acontecia mais. Os estádios estavam cheios de alienados. Embora o estado de alienação fosse o mais recomendável para os nossos dias. Eu e esse meu papo vulgar. Que Izamara detestava. Observou que hoje até mesmo as crianças podiam recorrer a esse tipo de raciocínio.

Poeira por todos os cantos da casa. Um apartamento de sala e quarto. Pentelhos no chão do banheiro, devidamente recolhidos por suas mãos ainda hábeis, para serem colocados no vaso. Um dia varreria e lavaria devidamente o chão do banheiro. E limparia toda a casa. Apesar de se lembrar que a velhice já vinha chegando. E que os velhos não limpam suas casas.

Mas havia sempre a possibilidade de se contratar uma faxineira. Que poderia servir para alguma coisa mais que uma simples limpeza. Pretensões ridículas que daqui a pouco não fariam mais sentido. Quando ele resolvesse achar que a sua cabeça já não era a de um adolescente. Que era o que o fazia sentir-se mais novo. Ou quando ele voltasse a perceber que ela já não estava mais ali para chamá-lo de babaca.

Resolve descer, caminhar um pouco, após escovar os dentes conforme Esperidião havia recomendado. “Escova-se a gengiva, Juvenal. Sempre de cima para baixo. Como se você estivesse varrendo”. Esperidião, seu dentista, vivia queixando-se da coluna. Mas garantia que Juvenal não conseguiria perder a barriga nunca mais. Parecia um agouro. Por isso era preciso caminhar, pelo menos. Para que ele tivesse chance de provar o contrário.

O ideal seria caminhar à beira da praia. O que seria bom pela manhã. Mas aqui pelo menos vejo mais gente em dias de semana, por se tratar de uma rua bem movimentada. Bermuda, camiseta de malha, tênis e meia servem pra’qui também. Um ponto em comum com a beira da praia.

Sai do prédio e toma o lado esquerdo. A mania de querer escolher o lado certo. Percorre um trecho de 150m da calçada. Quase todas as lojas abertas. Resistem aos shoppings. Numa delas a vitrine tem no vidro a palavra “telefones”, na cor branca, escrita na conformação aproximada de um semicírculo. Poderia parecer uma rua num subúrbio de Nova York. Como ele teria visto num filme antigo. Ao final dos 150m, na esquina de uma outra rua de movimentação razoável também, ficava o bar do caldo-de-cana. Em nada parecido com o bar, em frente à estação de trem, num dos subúrbios da Rede Ferroviária, em que tomava caldo-de-cana com seu pai quando menino. De onde estava, observou que havia uma aglomeração em torno de algumas pessoas que pareciam dançar com pequenos pedaços de pau, com uma corda e uma espécie de bola na ponta, que levavam ao chão para provocar, de maneira intermitente, um barulho surdo.

Decidiu se aproximar. Meteu-se no meio das pessoas e, sem se posicionar na frente de todos, notou que se tratavam de bate-bolas os responsáveis pelo showzinho improvisado. Faziam uma algazarra danada, fantasiados com aqueles macacões estampados, de cores berrantes, que lhes cobriam todo o corpo. Mas não é Carnaval nem nada? A cabeça ficava escondida por uma espécie de meia translúcida, envolvendo o rosto em que se destacavam a boca e os olhos, cujo contorno podia-se notar que estava marcado por uma grossa pintura de cor branca. E as porradas no chão com aquela espécie de cabaça ou bexiga, presa a uma vareta de pouco mais de 0,60m.

A fantasia impedia a identificação dos bate-bolas, também prejudicada pela movimentação constante deles, mexendo o tempo todo com tudo e com todos. Divertindo os curiosos. Eram talvez uns dez. Depois de algum tempo, Juvenal notou que, pela movimentação e os passos aparentemente aleatórios do grupo, os bate-bolas obedeciam a um líder. Que ocupava essa posição apesar de não ser o mais alto de todos. Detendo-se mais na observação e atuação do comandante, percebeu que se tratava de uma mulher, embora não fossem exatamente volumosos os seios denunciadores dessa condição. Pernas grossas deviam esconder-se sob o macacão. Ancas não muito salientes.

A essa altura a aglomeração já estava praticamente desfeita, embora os bate-bolas continuassem atuando com o mesmo entusiasmo. Logicamente as brincadeiras direcionaram-se, com mais intensidade agora, para os que continuavam prestigiando o espetáculo. As pancadas no chão se aproximaram mais de Juvenal, que passou a ter a atenção quase que exclusiva da líder do grupo. Até porque, embora ele não soubesse, ela já vinha observando-o desde que ele se metera entre as pessoas aglomeradas para saber o que estava acontecendo.

À proporção que se intensificaram mais as brincadeiras entre a líder dos bate-bolas e Juvenal, as pessoas remanescentes foram se retirando. Até que sobraram somente Juvenal e os bate-bolas, que praticamente o envolveram, em frente à esquina do bar do caldo-de-cana.

Achando-se sozinho e, por isso mesmo, considerando inusitada a situação, Juvenal conseguiu furar o bloqueio e se afastar com discrição. Tomou a rua que fazia esquina com a rua de seu prédio. Mas os bate-bolas o seguiram, mantendo-se a líder do grupo sempre mais próxima dele. Diante da cena, as pessoas na calçada se limitavam a sorrir do que parecia ser uma perseguição inofensiva, porque se dava de forma engraçada. A líder do grupo, uma verdadeira palhaça, permitindo-se o exercício de algumas cambalhotas e até acrobacias, sem se afastar do incrédulo Juvenal. Que se mostrava agora mais assustado. As pessoas na rua de repente tinham sumido.

A brincadeira foi se estendendo pela calçada até o pavimento ser interceptado pela travessa que Juvenal pretendeu transpor. Tratava-se de uma via secundária que Juvenal nunca tinha utilizado, apesar de residir na área por mais de vinte anos. Lembrou-se desse fato ao perceber que os bate-bolas estavam dispostos a não permitir que ele atravessasse a via para continuar andando pela rua de maior movimento. Quê que esses caras estão querendo? Nunca entrei nessa rua. Será que vou ter que fazer isso agora? Fazer a vontade deles?

A rua da chuva. Porque a única vez que se sentira atraído para percorrê-la tinha acontecido num dia de chuva fina e contínua. A travessa não tinha mais que cinco metros de largura, de muro a muro, sendo ladeada por dois prédios altos de tijolinho aparente, na esquina com a rua anterior – que Juvenal era forçado agora a abandonar. Nesse trecho, portanto, a travessa começava escura. Junto com a chuva fina daquele dia, formava-se o conjunto que tinha motivado Juvenal a andar por aquele logradouro pela primeira vez. Olhar no piso em asfalto o brilho provocado pela chuva fina que não parava de cair. Nunca soube porque não chegou efetivamente a entrar na travessa. Mas percebia agora que teria que fazê-lo. E o pior é que não estava chovendo. Fazia um sol de rachar.

A brincadeira dos bate-bolas continuava. Eles não ligaram para a intenção de Juvenal de continuar seguindo pela rua de maior movimento. Continuaram a conduzi-lo pela travessa em que se fazia sentir com mais intensidade o sol forte. Juvenal decidiu não reagir. Afinal eram dez e podia ser que de fato estivessem apenas brincando. Além do mais, a essa altura, a mais ou menos vinte metros da esquina com a rua de maior movimento, já não havia quase ninguém por perto na travessa. Andaram por mais vinte metros ao som daquele barulho, agora inteiramente sem graça, das cabaças sobre a calçada. Nesse ponto, os bate-bolas obrigaram-no a parar em frente a um vão cujo portão de ferro baixo, pintado de preto, encontrava-se aberto. Ao som dos barulhos surdos no chão, Juvenal viu-se obrigado a transpor o portão, na soleira do qual se iniciava uma escada que conduzia a níveis mais baixos que o da travessa. Quando chegou ao que poderia ser uns três metros abaixo do nível da travessa, Juvenal deparou-se com uma porta de madeira, com fechadura de aço inoxidável e olho mágico. A porta foi aberta rapidamente por um dos bate-bolas. Sendo mantida entreaberta depois que eles entraram. Estamos sozinhos aqui. Eles nem precisam fechar tudo. Talvez ninguém saiba que esse porão aqui existe. Quê porra é essa, meu Deus?

Juvenal deparou-se com um salão vazio. 20m2 talvez. Ligeiras marcas vermelhas, que poderiam ser de sangue, no piso cerâmico do salão. O barulho dos bate-bolas torna-se ensurdecedor. E não pára, a despeito de os bate-bolas de repente se acharem agora sem seus macacões à frente de Juvenal. Vestiam suas roupas comuns, calças e camisas. O que assumira a posição de líder aproxima-se mais de Juvenal. Era uma mulher, aliás a única do grupo, não muito alta. Jovem, morena clara, cabelos curtos, de calça jeans e camiseta regata branca. Mantém ainda na face a pintura grossa de cor branca em volta dos olhos e da boca, o que dificulta um pouco a identificação plena de seu rosto. Mostra-lhe um dos seios. Pequeno, porém firme, suntuoso e bonito, apesar do tamanho. O bico grosso e vermelho estava enrijecido.

-Odnahlo em avatseecov!

Os olhos de Juvenal se arregalaram. A linguagem estranha, articulada com certa morosidade, era proferida de uma forma que parecia nada ter a ver com brincadeiras. Ou não? Claro que não. Porque estavam ali sozinhos. Se fosse um show, teria que haver platéia. Seriam ciganos? Seres de um outro lugar? Replicantes?

-Odnahlo em avatseecov!, a líder repetiu com seriedade, a voz de ressonância um pouco gutural.

Ainda apalermado, mas com a certeza de que a coisa não estava sendo dita com o fim de provocar risos, Juvenal reuniu forças para responder:

-Moça, não estou entendendo nada.

-Odnajesed em avatseecov!, disse a líder dos bate-bolas, mostrando agora o seio esquerdo, de bico grosso e rígido também, mas com a ponta levemente voltada para dentro.

-Não sei o que é isso, moça! Não posso dizer nada!, respondeu Juvenal, esforçando-se para não revelar o desejo de fitar mais demoradamente aqueles seios e seus mamilos. Não seria recomendável.

-Sotiep suem revaireuq!, falou a líder, enquanto acariciava os seios, detendo-se com a manipulação dos dedos no de bico dobrado.

-Ah, meu Deus. Só faltava essa, Juvenal falou baixinho, desviando os olhos para o chão com alguma dificuldade.

Continuam espoucando no piso cerâmico do salão as batidas das cabaças. Os bate-bolas todos riem, com exceção da líder. Não eram de outro planeta. Esse negócio de OVNI já era. Seres alienígenas não usam calças jeans. Nem teriam esse indefectível aspecto de seres humanos. Isso deve ser sacanagem comigo. Mas enquanto pensava, Juvenal via que se tornava cada vez mais imperativa a necessidade de sair dali. A brincadeira estava indo longe demais. Ele estava sozinho no meio desses malucos. Poderia tratar-se de um seqüestro relâmpago. Embora eles estivessem perdendo muito tempo. E estivessem em número de dez.

-Mela o revaireuq!, Juvenal ouviu a voz da líder, num tom bem mais alto, parecendo uma ameaça. Talvez tivesse ficado aborrecida com o fato de ele ter falado baixinho. O barulho no chão foi muito mais ensurdecedor.

-Mela o revaireuq!, repetiu a líder, em tom mais elevado ainda.

-Não, não, moça! Desculpe-me se disse alguma coisa indevida, respondeu assustado Juvenal, identificando na fala da líder o claro tom de ameaça.

-Etromae melaodmela! Etromae melaodmela! Há, há, há, há, há..., ouviu-se de novo a voz da líder dos bate-bolas, que estourou com força a sua cabaça quase que sobre um dos pés de Juvenal.

E todos os bate-bolas ficaram sérios e calados. O calor a essa altura já era insuportável. A única janela do salão, de vidro, almofada e veneziana, 1,50m de largura, estava totalmente fechada. Juvenal ainda tentou se preocupar com a altura do pé-direito, mas desistiu. Viu que tinha coisa mais importante em que se deter. A porta entreaberta deixava passar um filete de raio de sol, que era forte lá fora, o suficiente para garantir a necessária iluminação do ambiente.

-Não tem ninguém aqui que possa traduzir esse troço?, indagou Juvenal em tom de súplica, querendo tirar proveito da risada da líder, embora soubesse que se tratava de uma pergunta inócua. E certamente inoportuna naquele momento.

-Etromae melaodmela!, disse mais uma vez a mulher, retirando do bolso de trás da calça jeans um punhal de cabo de madre-pérola, luzidio como o provável brilho do sol, pelo lado de fora, na fechadura de aço inoxidável da porta do salão.

Juvenal não precisou reconhecer no fulgor dos olhos da moça que ele seria o alvo da ação daquele punhal. E viu também que se tratava de uma situação limite, pois se achava acossado contra a parede, num ponto distando cerca de três metros da única porta do salão. Valendo-se de um dos equipamentos dos bate-bolas, que um deles havia esquecido a pouco mais de um metro de onde estava, Juvenal movimentou-o com força em todas as direções, abrindo um clarão entre os dez bate-bolas, tendo o cuidado de não permitir que a cabaça que utilizava fosse cortada pelo punhal que a líder manejava com destreza. Conseguiu mantê-los afastados por dois minutos, tempo suficiente para, tendo como base a trilha deixada pelo raio de sol que se insurgira pela porta entreaberta, conduzir a luta nessa direção até alcançar a porta e por fim a escada, subindo então os degraus em desabalada carreira para ganhar finalmente a rua. Não tendo escapado, contudo, ao chegar à porta, de uma forte bate-bolada na ponta da orelha, que lhe iria render fortes dores naquela região por toda a semana. Chegou ainda a ouvir risos debochados ao subir a escada, após a porrada no pé da orelha. E lá de cima, já na soleira do portão, ao se virar rapidamente, conseguiu ver o rosto da jovem dos seios bonitos que pretendera feri-lo com o punhal. Como todos os outros ela tinha os lábios envoltos numa tinta grossa branca e os olhos também, em torno dos quais se notavam ainda pesadas olheiras azuis.

Juvenal voltou correndo para casa. Entrou no prédio antigo sem cumprimentar o porteiro, o que nunca fizera. Depois falo com ele. Por sorte o elevador estava no térreo. Acionou o quinto andar sem olhar para os lados. Quê puta sufoco. Mas tinha ficado barato.

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 16/05/2011
Reeditado em 18/05/2011
Código do texto: T2972994
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