Andrezza Iriri (Romance, Cap. VI)

-Vó, vó! Sou eu, vó! Tamu chegando!

-Oi, minha filhinha! Que bom que você já veio, disse D. Tita, correndo para abraçar a neta, enquanto Andrezza fechava o portão.

-Mamãe foi me buscar. Chegou na horinha.

-Tá bem, querida. E você, minha filha? Novidades? Conseguiu alguma coisa?

-Hoje foi só cadastro. Agora vou ter que esperar ser chamada. Torcer pra que seja pra casa de uma grã-fina lá da zona sul, respondeu Andrezza, sentando-se no sofá de dois lugares da sala. Parecia cansada.

Juliana correu para o quarto, onde logo achou sobre o berço, sem o cercado lateral, a boneca de pano de que não se separava nunca.

-Quer um copo d’água, minha filha?

-Não, mãe. Tudo bem. Tô vendo que você teve visitas, disse Andrezza, ao notar três copos sobre a pequena mesa da sala ainda não recolhidos.

-Sua tia e sua prima estiveram aqui hoje. Vieram me apresentar o namorado de Anelice.

-Foi isso mesmo ou vieram saber da nossa vida?

-Não fale assim, Andrezza. Você sabe que se minha irmã não puder ajudar, não vai nos atrapalhar nunca.

-Tia Mocinha, tudo bem. É a minha segunda mãe. Mas a filhinha dela é fogo. Fala demais.

-Duvido que Anelice queira o nosso mal. É uma boa menina. Sempre muito trabalhadeira, correndo atrás. Cuida da vida dela.

-É, mas às vezes se mete na dos outros. Devia ajudar mais, se pudesse, e falar menos.

-Tá tocando a vida dela direitinho, insistiu D. Tita, parecendo de propósito. Parece até que melhorou depois da morte do marido. Nada falta a ela e a Angélica. Está há mais de três anos, se não me engano, naquele escritório de advocacia e se dá muito bem com a doutora. Agora arranjou um namorado que vai até alugar uma casa maior para ela e a filha. Aliás, é aqui por perto.

-Hi... Vêm pra perto da gente, é?, indagou Andrezza, misturando deboche com pouco caso pelo falso interesse na notícia.

-Só vêm ela e a filha. Mocinha continua na Aldeia.

-É uma pena. Muito mais saudável minha tia aqui por perto, prosseguiu Andrezza, tentando mostrar-se indiferente. Aposto que esse namorado dela é casado.

-Agora acho que vou fazer como você: é problema dela, disse a mãe, em tom de reprovação. Casado ou não o caso é que o cara tá chegando junto. Não sei se você pode dizer o mesmo com...

-Pode parar por aí, mãe, interrompeu Andrezza. Num vem dando exemplo, não. Ela tem a vida dela e eu a minha! Não me acho melhor que ela, mas não quero que venham me dizer que ela é melhor que eu. Tá faltando alguma coisa aqui dentro dessa casa? Se a filhinha dela estuda, a minha também. Num vem não, mãe, concluiu Andrezza, permitindo que o tom elevado da voz transmitisse a crescente irritação que a deixara arfante.

Levantando-se logo em seguida do sofá da sala, em direção ao único quarto da casa, Andrezza permitiu que a mãe optasse pelo silêncio, parecendo ter ficado inibida com a insolência demonstrada pela filha. Na verdade D. Tita preferiu preservar a neta, que acabava de chegar à sala, vindo sentar-se no lugar anteriormente ocupado pela mãe. A avó apressou-se em ligar a TV de 29 polegadas, antes mesmo que a neta pedisse.

Andrezza deitou-se vestida na cama de casal que às vezes ocupava com a mãe, livrando-se apenas das sandálias. Os olhos presos no teto. Sempre a porra da comparação. Foda-se a Anelice. Que Deus a ajude, caralho. Toco o meu barco sem me preocupar em dar conselho a ninguém. Por que têm que dizer o que é melhor para mim? Mas o quê faço com o coroa? E logo aquele coroa, meu Deus. Que puta coincidência! Ainda bem que num deu em nada aquela parada co’s cara do Morro do Cerol que nunca mais vi. O puto do coroa não se assustou. Conseguiu dar umas rabanadas, meteu dez no viado e saiu fora. Ainda bem. Depois, veio aquele dia. Eu tava um lixo. Doida pra chegar em casa. Uma carona, mas só a carona, tava de bom tamanho. Mas o coroa foi abusado. Veio logo com aquele beijo. E como é educado. Poucas vezes fui tratada dessa maneira. Abrindo a porta do carro pra mim. Interessando-se pela minha família. Tratando minha filha por Ju, como eu e mamãe fazemos, depois de eu ter falado o nome da menina. Andrezza prosseguia na tentativa de encontrar uma razão, além da chance de obtenção de alguma vantagem, que justificasse a primeira saída com Juvenal. Já que não contava a do dia em que se conheceram. Tinha sido apenas uma carona.

É evidente que ele deve ter uma situação tranqüila. Tem um bom carro. Ouro nos braços e no pescoço. E deve ser verdade que não tenha mulher. Mas tudo tem que ser na hora certa. Não sei se parou na minha logo direto. Homem é aquilo. Só querem fuder primeiro. Mas parece que não é chegado a mentiras. Não deve ser casado mesmo.

E aí veio a figura da prima. Certamente namorando um homem casado, mas tocando a sua vida direitinho, naquela avaliação irritante de sua mãe. Casa alugada, a filha em escola particular, emprego certo e outras paradas. E ainda com um otário agora que iria montar casa nova pra ela. Andrezza sentia a presença indisfarçável do amargo sabor da inveja. Que, apesar de não poder muitas vezes evitar, era combatido por ela com todo o vigor.

Nesse momento ouviram-se palmas no portão. Andrezza, ainda deitada, já sabia de quem se tratava, pela maneira específica da batida de palmas.

-Drizza, o Pedro taí!, veio dizer-lhe sua mãe, não passando da porta do quarto.

-Tá bem, mãe. Diga pra ele esperar um pouco que estou acabando de me vestir, informou a filha num tom de voz bem mais moderado.

D. Tita já estava ficando ansiosa com os quase dez minutos que Andrezza estava levando para se trocar. E Pedro lá fora esperando. Só entrava em casa depois que ela consentisse. Geniosa desde menina. Tal como o maluco do pai dela. Que desejava imensamente que nosso filho fosse homem. O que não tinha ficado muito longe das suas pretensões. Andrezza às vezes parecia um macho. A começar pelo seu tom de voz. Garanto que o filho que ele já deve ter feito com outra por aí não é mais macho que ela.

D. Tita ficou mais intrigada ainda com o fato de sua filha ter saído do quarto com a mesma roupa com que chegara em casa. Pedro Crivo tinha esperado à toa.

-E aí, Drizza? Bonita e cheirosa como sempre, comentou Pedro Crivo.

-Qual é, Mais Um? Dando uma de galanteador agora?

-Enquanto isso você me ofende, né? Tudo bem. Sei que sou só mais um mesmo na sua vida.

-Se falar mais, vou acabar chorando. Tá legal, vou falar como você gosta: PC.

-Melhorou um pouco. E aí? Vamo dar um rolé?

-Tô muito a fim não. Andei paca hoje na cidade. Tô bem cansada. Muito a fim de um ronco, valeu?

-Podemo dormir lá em cima. A cama num é tão macia, mas você nunca reclamou.

-Pô, num dá não, cara. Num tô numa boa. A Ju num tá legal. Tive uma arengação com minha mãe. Tudo contra, certo?

-Correu atrás daquela parada na cidade?

-Isso aí. Se eu descolar uma casa maneira pra trabalhar, a gente pode armar direitinho.

-Se você fez o cadastro, eles vão chamar. E aí é só torcer pra que seja um AP com muito bagulho dentro, dólar, ouro, computador e o caralho.

-É isso aí. Fácil, fácil como da primeira vez.

-Aí, mas sem precisá de dá bola pro patrão, certo?

-Não, vou dar a bunda pra ele, valeu?

-Pô, Drizza. Tava só brincando, respondeu Pedro Crivo, colocando-se na defensiva.

-Desrespeito num é brincadeira. Já venho de uma parada indigesta com minha mãe e tu ainda solta essa, malandro?

-Ô sangue brabo! É que tu sabe que páro na tua. Gosto mesmo.

-Esse negócio de gostar é foda. Por trás disso nego fala um monte de merda e faz muito mais merda ainda.

-Tá bem, tá bem, concordou Pedro Crivo. Tu deve estar cansada mesmo. Com todo esse bom humor! Chegou há muito tempo?

-Meia hora talvez.

-A van tava muito cheia?

-Não vim de van. E você já deve saber bem disso.

-Eu num disse nada, Drizza. Você parece que hoje só tá querendo bronca, novamente Pedro Crivo se defendia.

-Nada disso. É que primeiro, a pergunta foi boba. Começa afirmando uma coisa pra ter a confirmação de outra. Isso é desconfiança. Segundo, deve ter sido o babaca do Inglês, que agora tá dando uma de teu olheiro, que me viu passando de carro pela Santos Cardoso.

Pedro nada falou. Sentiu-se envergonhado, mas ao mesmo tempo orgulhoso da namorada, pela demonstração da habitual disposição diante do que lhe incomodava e do laivo de inteligência, de que Pedro nunca duvidara.

-Vim de carro, sim, continuou Andrezza, olhando nos olhos de Pedro Crivo. Um coroa com o dobro da minha idade me deixou lá em cima na Santos Cardoso. Tava cansada pra caralho. Foi apenas uma carona. Num preciso nem te dizer que ele num vai arrumar nada comigo. Mas num vamo tirar o mel da boca do coroa, certo? Além do mais, ele pode render um trabalho legal pra gente, completou Andrezza, procurando ser o mais convincente possível.

O frio se faz sentir com mais intensidade nas regiões de maior vegetação, nas zonas menos habitadas. Juvenal sentia a confirmação disso ao passar pela larga Avenida Santos Cardoso, que praticamente ligava as localidades de Vila Vazia e Aldeia, antes de desembocar na estrada que conduzia ao centro da cidade. Vinha chovendo bastante nessa primeira semana de junho, ao contrário do que normalmente acontece no inverno. Este início de noite de sexta-feira não era uma exceção.

Juvenal chegou a pensar que Andrezza pudesse sugerir que ele não fosse embora, depois que a deixasse em casa. Afinal, pouco antes de deixarem o motel, lhe dera uma pulseira de ouro, como uma das que usava no pulso direito, e dois vestidinhos para Juliana, além de uma nova bonequinha de pano para a menina. No entanto, não achava que isso pudesse se transformar numa condição para que surgisse o convite para a sua permanência na casa da namorada. Nem Andrezza, em nenhum momento, lhe deu essa esperança. Ao contrário, ao sair com ele do motel e perceber que a chuva iria aumentar, Andrezza tratou de o apressar. Temia que encontrasse a casa alagada quando chegasse, por se situar o terreno num ponto baixo, assim como a rua de terra, em relação à estrada asfaltada. Juvenal achava, contudo, que na verdade Andrezza sentia vergonha de lhe mostrar que residia numa casa simples e humilde. Que ele não saberia entender. Que iria apenas reparar. Ou que talvez ela achasse que não era ainda a hora de ele conhecer sua filha e sua mãe. Por isso, apressara-o para que chegasse e fosse logo embora. A tempo de se livrar do temporal.

A chuva, cada vez mais intensa, prejudicava bastante a visibilidade, por mais possantes que fossem os faróis do carro. O limpador do pára-brisa na última velocidade. O ar quente ligado num volume elevado, para manter o ambiente aquecido e os vidros desembaçados, garantindo maior visibilidade. Pelo menos talvez eu esteja a salvo dos bandidos. Eles não costumam atacar com chuva. Aliás, Andrezza diz que não há bandidos por aqui.

Com a iluminação reduzida pela chuva constante, apesar de todo o posteamento com as suas luminárias ao longo da estrada em funcionamento, era forçoso dirigir em marcha reduzida. Para não ser surpreendido por um pedaço de um tronco de árvore, por exemplo, como este atravessado no meio da via. Cerca de dez minutos depois de ter beijado a boca macia de Andrezza.

Juvenal teve que frear o carro. Viu logo que teria que saltar para tentar empurrar o obstáculo de modo a que pudesse liberar um espaço mínimo por onde prosseguir.

Mal se agachou para afastar a tora para o lado, surgiram três indivíduos como por encanto, provavelmente vindos do mato. Dois vestiam capa preta e o outro trazia uma sombrinha colorida.

-A gente ajuda, doutor!

Realmente o tronco foi afastado e o carro prosseguiu viagem. Só que com o homem da sombrinha na direção, um dos que vestiam capa preta na frente com o motorista e o outro atrás, mantendo Juvenal a seu lado sob a mira de uma pistola.

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 25/05/2011
Código do texto: T2991761
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